Uma discussão moral sobre os custos da crise da Covid-19
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por Arthur Cristóvão Prado
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A pandemia da Covid-19 tem provocado mudanças rápidas e profundas nas relações econômicas, sociais e jurídicas em todo o mundo. No Brasil e alhures, o Estado tem procurado mitigar o impacto da doença e do isolamento com políticas públicas pagas por meio de um enorme déficit orçamentário. Há pouca polêmica sobre a necessidade dessas medidas, mas muita disputa sobre como elas devem ser financiadas no médio e longo prazo.
Geralmente recorremos a economistas para nos ajudar a tomar decisões como as que o Estado brasileiro precisará fazer em breve, que consistem em escolher de que maneira um determinado ônus – o custo financeiro das medidas de combate à crise – deve ser distribuído pela sociedade. As várias propostas, como redução temporária da remuneração de servidores públicos, a instituição de empréstimos compulsórios, majoração na alíquota do imposto de renda e instituição de um tributo sobre grandes fortunas (IGF), são analisadas no discurso econômico sobretudo em termos das consequências que teriam para a eficiência econômica ou a desigualdade social. É possível, por exemplo, que reconheçamos que um imposto sobre fortunas seria fiscalmente justo, mas não se queira implementá-lo porque uma de suas consequências seria a fuga do capital dos muitos ricos, levando a perdas de investimentos e de empregos, que piorariam a vida de todos nós.
Previsões econômicas como essa frequentemente são mais controversas, inclusive entre economistas, do que aparentam no discurso de quem as apresenta. Mas, mesmo que confiemos nelas, talvez exista um bom motivo para recebê-las com algum cuidado.
Isso é o que defende o filósofo moral canadense G. A. Cohen, que foi professor na Universidade de Oxford, na Inglaterra. Em um de seus trabalhos,[1] Cohen discute os cortes no imposto de renda que o governo Thatcher, na Inglaterra, propôs em 1988 para a faixa salarial superior – para os ricos, em suma. O principal argumento em favor da medida era que a redução dos impostos faria com que os ricos tivessem um incentivo para trabalhar mais, agregando ao produto social um valor maior do que o que adviria do pagamento de impostos. O discurso, portanto, tomava a forma de um conselho, direcionado não aos ricos, mas a todos os ingleses. É como se eles dissessem: “vocês deveriam baixar nossos impostos, porque, se o fizerem, todos estaremos em uma situação melhor, inclusive os pobres”.
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Esse é um argumento dotado de bastante apelo intuitivo: é difícil ser contra uma medida que melhora a vida (ou, pelo menos, o bem-estar financeiro) de todos nós. Mas ela também tem o mérito de satisfazer o critério de justiça distributiva propugnado pela famosa teoria do filósofo John Rawls, que passou a ser reconhecida como um dos mais importantes sistemas de pensamento em ciência política normativa desde sua publicação na obra A Theory of Justice, em 1973, e até hoje continua a ser extremamente difundida e relevante. Rawls é tido como um liberal de esquerda: sua teoria concilia, de modo elegante, uma proteção ampla a liberdades individuais com uma preocupação igualitária forte. Entre outras coisas, a Justiça como Equidade – esse é o nome da teoria de Rawls – defende que decisões distributivas devem satisfazer ao chamado “princípio da diferença”, segundo o qual distribuições de bens pela sociedade podem ser consideradas justas quando melhorem a condição dos menos favorecidos, ainda que resultem em aumentos de desigualdade. Assim, nenhum aumento de desigualdade é admissível se piorar o bem-estar dos muito pobres (ainda que melhore muito mais o bem-estar de outras pessoas), mas qualquer aumento de desigualdade que resulte em uma melhora para a vida dos sujeitos menos privilegiados de uma dada sociedade deve ser considerado justo. Isso inclui, se aceitarmos as premissas econômicas de seus defensores, os cortes de imposto propostos pelo governo Thatcher: mesmo que os ricos fiquem muito mais ricos em consequência deles, se for verdade que os pobres fiquem (pelo menos um pouco) menos pobres, o princípio da diferença terá sido satisfeito. Isso fornecia um respaldo moral à medida por meio de um marco teórico que era aceito, inclusive, por atores políticos da esquerda.
Mas isso basta para que nos sintamos convencidos pelo argumento dos ricos? Cohen argumenta que não. Para entender o porquê, podemos decompor seu raciocínio em um silogismo (S1). Sua estrutura será a seguinte:
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Premissa maior (normativa): uma medida é justa caso melhore a vida dos mais pobres, ainda que aumente desigualdade.
Premissa menor (factual): a redução do imposto de renda dos ricos fará que eles trabalhem mais, agregando tanto valor ao produto social que a vida de todos melhorará, inclusive a dos pobres.
Conclusão: a redução do imposto é justa.
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No entanto, deveria causar-nos algum estranhamento que a premissa factual, ainda que seja verdadeira, depende do comportamento dos próprios sujeitos que a enunciam. Em sua estrutura, o argumento dos ricos não é diferente de uma chantagem ou ameaça. Isso fica mais claro se imaginarmos uma chantagem mais óbvia, como em um sequestro. Digamos que uma criança foi sequestrada e os sequestradores exigem dos pais o pagamento de um resgate, sob pena de matá-la. Os sequestradores talvez digam: “se vocês não nos pagarem uma soma em dinheiro, mataremos seu filho”. A estrutura dessa ameaça também pode ser decomposta em um silogismo (S2):
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Premissa maior (normativa): pais devem cuidar do bem-estar de seus filhos.
Premissa menor (factual): se os pais não pagarem o resgate, seu filho morrerá.
Conclusão: os pais devem pagar o resgate.
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Se não houver meio de impedir os sequestradores, e se os pais preferirem a vida de seu filho ao dinheiro do resgate, então a conclusão será verdadeira: o melhor a fazer é pagar o resgate. Se enunciada por um terceiro – um amigo dos pais, digamos –, a exposição desse raciocínio pode, de fato, ser um conselho. Mas, enunciada pelos sequestradores, ela será uma ameaça ou chantagem, e ninguém razoável a chamaria de conselho.
Em S1, do mesmo modo, se transferirmos para os ricos a enunciação da consequência de um determinado imposto sobre suas fortunas, sua estrutura também será a de uma chantagem. Poderíamos imaginar que eles dissessem: “se vocês tributarem nossas fortunas, moveremos elas do Brasil para um banco secreto no estrangeiro e todos vocês ficarão mais pobres”. Se sua intenção for sincera e não houver meios de impedi-los, então pode ser verdade que estaremos melhor – se tudo o que for importante para nós for nosso bem-estar econômico – sem o imposto. Mas é impossível vê-lo como um conselho bem-intencionado.
Isso é assim porque a formulação tradicional de argumentos econômicos toma o comportamento dos agentes que serão influenciados por incentivos como um dado sociológico. Um economista prevê se um sujeito trabalhará mais ou menos em virtude de uma mudança nas leis tributárias de modo semelhante a como um biólogo prevê a taxa de crescimento de uma colônia de bactérias, ou um físico prevê a trajetória de uma partícula conhecendo certas informações sobre sua posição e velocidade, por exemplo. Ao fazê-lo, o economista age pressupondo que não há entre ricos e pobres qualquer vínculo de comunidade; ele trata os ricos como alienígenas completamente desinteressados nos demais sujeitos ou como autômatos. Mas o comportamento que o economista pretende prever depende da vontade humana, motivo pelo qual, se a previsão for enunciada pelo próprio sujeito detentor da vontade prevista, ela se torna absurda.
A proposta que Cohen formula a partir dessa discussão é que políticas públicas devam passar em um “teste interpessoal”: para que elas sejam válidas, devem reter sua moralidade independentemente de quem as enuncie. Os cortes de impostos propostos por Thatcher não passam no teste. Argumentos contrários a impostos sobre grandes patrimônios, incluindo o IGF, que se baseiem nos incentivos que provocam, também não. Ambos os raciocínios podem ser traduzidos na estrutura de S2, e, nisso, são semelhantes à ameaça de sequestradores.
Isso significa que devemos ignorar economistas e agir como paladinos incorruptíveis, fazendo justiça fiscal à custa de empregos e investimentos? Não necessariamente. Por um lado, podemos avaliar que o ganho econômico de atender às prescrições dos economistas não vale custo moral de formular políticas públicas injustas, cobrado em termos do nosso senso de justiça e nosso respeito próprio. Por outro, podemos preferir preservar um nível mínimo de bem-estar em um país que, como o Brasil, lida com miséria extrema e fome mesmo fora de pandemias, ao invés de encarar o imenso custo humano que recessão e desemprego poderiam acarretar. De todo, se o argumento de Cohen tiver sido convincente, devemos sentir-nos chantageados, e não aconselhados, quando um fundo de investimento afirma que o IGF, tributo sobre heranças ou imposto de renda sobre dividendos causará fuga de capitais. E isso também mostra que o lugar de enunciação importa. É verdade que alguns servidores públicos recebem benefícios injustos, e que sua redução, nesses casos, seria uma medida fiscal justa. Mas quando um grande investidor sugere diminuir vencimentos de servidores, estes podem legitimamente desconfiar de suas intenções: talvez sua preocupação não seja com o bem-estar dos pobres (se fosse, por que ele não defenderia a tributação do próprio patrimônio?), mas desviar a atenção do Estado e da opinião pública para uma fonte de recursos cuja tributação não o afete.
Tudo isso, e não só previsões econômicas feitas a toque de caixa, deve nortear nossas discussões sobre como distribuir os custos da crise da Covid-19 no Brasil.
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Nota:
[1] COHEN, Gerald Allan. “Incentives, Inequality, and Community.” In The Tanner Lectures on Human Values, 13:263–329. Salt Lake City: University of Utah Press, 1992.