Quando li A Cidade das Mulheres, livro escrito entre 1404 e 1405 pela franco-italiana Christine de Pizan, considerada a primeira mulher escritora profissional do Ocidente, fiquei profundamente impactada e logo pensei: essa obra instigante precisa ser mais conhecida no Brasil. Não só pelo pioneirismo, mas pela combinação rara entre erudição, ironia fina e uma capacidade incomum de pensar por si mesma em uma defesa justa, forte e equilibrada das mulheres. Depois, busquei pelas demais obra nos arquivos da Biblioteca Nacional da França, onde se encontram os originais, indisponíveis para consulta direta, mas digitalizados. São 15 livros manuscritos, além de baladas, poemas e tratados de educação e política. Ainda que seja difícil a leitura dos manuscritos, em sua maioria em francês, pude observar as iluminuras que acompanham algumas edições.
Christine de Pizan é conhecida, traduzida e estudada na Europa; o mesmo não se pode dizer por aqui. Um dos primeiros esforços foi feito pela pesquisadora Luciana Calado, em 2006, ao produzir uma tese sobre a obra da autora pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE)1, e depois pela pesquisadora Lucimara Leite, em 2015, ao publicar uma biografia de Pizan (Christine de Pizan: Uma Resistência; Chiado Editora). Em outubro deste ano, um importante passo foi dado pela Editora 34, que lançou no Brasil o livro A Cidade das Mulheres. Com tradução do jornalista e editor Jorge Henrique Bastos e introdução de Eric Hicks e Thérèse Moreau, a edição contempla notas cuidadosas para a compreensão da obra e dá, enfim, acesso mais amplo a um dos livros mais irreverentes, criativos e eruditos da autora. Mas o que uma obra escrita há mais de seiscentos anos tem a nos dizer hoje?
Antecipo: mais do que imaginam. Christine de Pizan não é uma mulher do passado: ela suscita questões e respostas que sequer formulamos hoje.
Pizan nasceu em Veneza, em 1364, mas ficou pouco na Itália. O pai, Thomas de Pizan, um ilustre professor da cidade de Bolonha, foi convidado pelo então rei da França, Carlos V, para fazer parte de sua corte. Um parêntese: a cidade de Bolonha foi sede da universidade mais antiga da Europa e ficou conhecida por ser uma sociedade progressista em relação às mulheres. Não sem razão, muitas bolonhesas destacaram-se profissional e artisticamente, revelando a entrelaçada relação entre educação, liberdade de gênero e excelência profissional. A informação não me parece menor, na medida em que explica, sociologicamente, as razões que levaram o pai de Christine a incentivá-la a estudar, na contramão da maioria dos homens de sua época (e mesmo a contragosto de sua mãe).
Pizan mudou-se com a família para Paris, quando tinha apenas quatro anos. Lá cresceu em uma das cortes mais ilustradas da França e teve acesso à famosa biblioteca de Carlos V. Aos 15 anos, casou-se com o jovem Etienne Castel, escolhido por seu pai. Apesar do arranjo matrimonial (comum naquela época), a relação foi muito bem-sucedida. Provavelmente, o pai escolheu Etienne tendo em vista a abertura dele às tendências intelectuais de sua filha. Etienne era um jovem ilustrado e inteligente, e ascendeu socialmente tornando-se secretário do rei Carlos V.
Assim como o pai, o marido incentiva Pizan a seguir a sua paixão. Ávida por conhecimento, Pizan dominou cinco idiomas (grego, latim, francês, italiano e um pouco de inglês). Leu quase todos os clássicos dessas línguas e tornou-se a primeira defensora pública das mulheres ao publicar, em 1405, Le Livre de la Cité des Dames, que agora temos a oportunidade de ler em português.
Porém, a transição para a escrita não foi pacífica. Ocorreu, aliás, no momento mais difícil de sua vida. Seu pai morre em 1386 e, três anos depois, ela perde o marido, com quem vivera ao longo de uma década. Com apenas 25 anos de idade, três filhos e sem recursos financeiros, Pizan encontra na escrita uma forma de expressar sua dor e um meio de sustentar sua família. Em uma balada diz: “Diversas vezes com rosto choroso/ Desde o dia que a alegria me foi retirada/Quando me levaste o belo e bom e sábio/ A morte abandonou-me em tormento tal/ Que muitas vezes desejo, furiosa/ Que meus males queixosos sejam por ti aliviados/” (Balada IX). A dor penosa do luto reverbera nos leitores das suas baladas, e ela continuou escrevendo outras, como aquela em que manifesta o desinteresse por sua existência, dizendo: “Maldita vida que dura tanto/ Pois, nada mais me apetece/ Apenas morrer, continuar a viver não tem mais sentido/ Depois que morreu aquele que me deixava em vida/” (Balada XV).
O luto, que perdurou por cinco anos, foi, aos poucos, acolhido e amenizado pela dedicação à escrita e pelo retorno dos leitores. Pizan recebe encomendas de nobres, inclusive do rei. Os textos, que até então foram a via encontrada para manifestar seu insuportável sofrimento, passam a ser também a sua fonte de sustento. Quando escreve A Cidade das Mulheres, entre 1404 e 1405, já era uma reconhecida e respeitada escritora de sua época — e se autoafirmava como tal. Dois indícios disso são, primeiro, a sua inserção no texto, como uma escritora profissional. Já na abertura, relata: “Sentada um dia em meu gabinete, cercada por inúmeros livros, conforme meu hábito, já que o estudo das artes liberais é um costume que rege a minha vida (…). Abandonei os textos difíceis que lia, e procurei espairecer com a leitura de algum poeta”.
Um segundo indício são as luxuosas iluminuras, em geral três imagens, que passam a integrar as edições a partir da terceira, publicada ainda em 1405, seguindo até 1414. Na primeira iluminura, vemos a própria Christine de Pizan, vestida luxuosamente de azul, em seu gabinete de leitura, rodeada de livros. Uma imagem que servia não só para ilustrar, mas para reafirmar sua posição como uma intelectual.
Pizan, porém, não está a sós na imagem. Diante dela, apresentam-se três mulheres ou alegorias: a Razão, a Justiça e a Retidão. Ao lado dessa imagem, como em uma sequência narrativa, vemos Pizan e uma das damas, a Razão, carregando tijolos e construindo um muro de uma futura cidade: A Cidade das Mulheres. Essa foi a maneira inventiva com que Pizan arquitetou o livro. Narra a misteriosa aparição das entidades que surgem para dar-lhe uma missão e responder a uma inquietação intelectual da autora, que é também a questão central do livro: Por que os homens maldizem as mulheres? Quais são as razões da misoginia? O erro está mesmo nas mulheres ou são os homens que erram?
A partir de então, o livro apresenta uma série de inteligentes (e mesmo irônicos) diálogos entre a autora e as três damas, que refutam, com exemplos e reflexões muito originais, a misoginia. A começar pela invocação da dúvida. A Razão provoca Pizan: “Certamente, pareces acreditar que tudo o que afirmam os filósofos é artigo de fé e não podem errar. (…) Não sabes que são as melhores coisas aquelas sobre as quais mais se discute e debate?”.
Essa, aliás, é uma impressionante capacidade de Pizan: diante de tantos autores que atacaram as mulheres — e “a lista é demasiado longa” —, ela não se intimida e mostra as contradições de grandes autores e filósofos como Ovídio, Cícero e Aristóteles (pelo qual ela lamenta, afirmando como um homem tão culto escreveu tantas “asneiras” sobre a mulher). A Razão — que fala no livro como uma espécie de superego da própria autora — demonstra como os filósofos, teólogos e eruditos discordaram entre si sobre muitos assuntos. Tal capacidade de observar as contradições e mesmo elaborar uma crítica sobre os textos é fruto não só da erudição de Pizan mas do seu genuíno talento de pensar por si mesma. O que fica evidente quando diz: “propus a mim mesma decidir, em sã consciência, se os argumentos reunidos por tantos varões insignes poderiam estar equivocados”.
Guiando-se pela razão, justiça e retidão, ela consegue enfrentar todas as questões, mesmo as de cunho religioso (tão caras a ela, uma católica). Eva? Nasceu da costela de Adão e não de seu pé. Deus indicava assim que “ela permaneceria ao seu lado como a sua companheira, não [para] estar aos seus pés como uma escrava, e que ele haveria de amá-la como à sua própria carne”.
Sobre a defesa do célebre orador romano Marco Túlio Cícero, segundo o qual as mulheres deveriam servir aos homens, ela rebate: “o maior é aquele ou aquela que detém mais méritos. A superioridade ou a inferioridade de alguém não está no corpo, não atende ao seu sexo, mas na perfeição de seus hábitos e qualidades”.
Na sequência, ela questiona a Razão: se as mulheres são tão capazes, por que não podem ser juízas ou governantes? Ela afirma que se trata mais de um impedimento dos homens do que de uma incapacidade das mulheres. Pois “as mulheres são bastante inteligentes para estudar direito (…). Como poderemos ver adiante, a história gerara muitas mulheres (…) que foram grandes filósofas, suscetíveis de reger disciplinas muito mais complexas, requintadas e altivas (…). Por outro lado, se se quer afirmar que as mulheres não possuem nenhuma disposição natural para a política e o exercício do poder, citaria o exemplo de muitas mulheres ilustres que reinaram no passado”. E o faz, narrando as trajetórias de mulheres como Semíramis, que reina na Pérsia, na Ásia e no Egito (sendo comparada a Alexandre, o Grande). Zenóbia (rainha da Síria no século II a.C.), Artemísia (rainha da Ásia Menor no século V a.C.), Fredegunda (rainha da França no ano 597 d.C.). Dentre várias outras citadas que demonstram, na prática, e em reinados bem-sucedidos, que “a mulher inteligente pode desempenhar qualquer tarefa”.
Não só nos altos postos como também na ciência, identificando como principal entrave o impedimento social imposto pelos homens de que elas estudem. Então, Pizan indaga: “Por que eles fazem isso?”. A dama Retidão responde com imparcialidade: “Nem todos os homens, sobretudo os mais cultos, acham mal que as mulheres estudem. Se é verdade que pensam assim os que possuem uma formação inferior, é porque não gostariam de ver que muitas mulheres sabem mais do que eles”.
Pizan percebe no diálogo com as três virtudes que alguns homens (não todos) são movidos por sentimentos mesquinhos e não só por nobres princípios. O que fica patente quando a Razão enumera as diversas e múltiplas razões que levam os homens a odiarem as mulheres: “Alguns foram impelidos pelos seus vícios, outros devido à invalidez do corpo [cita a impotência sexual de Ovídio e a deformação física de Aristóteles], outros por pura inveja e numa medida maior, porque gostam de vituperar as pessoas. Por fim, há outros que, querendo demonstrar o quanto leram, baseiam-se no que encontraram nos livros e limitam-se a citar tais autores, repetindo o que já foi dito”.
Nem os clérigos estão isentos. Eis que Pizan muda de tom no livro. Passa das perguntas ingênuas e da ignorância para uma sensação de revolta. Grita: “Que se calem, pois! Que se calem daqui por diante, esses clérigos que difamam as mulheres! Que se calem, todos os cúmplices e aliados que falam mal delas (…)! Que baixem os olhos de vergonha por terem ousado mentir tanto em seus livros, quando se vê que a verdade contradiz o que eles dizem (…)”.
Eis que os argumentos e os exemplos de mulheres ganham forma. O livro — a cidade — está pronto, edificado no “Campo das Letras”. Usando a “enxada da inteligência”, Christine de Pizan não só cavou fundo mas também edificou a muralha e as casas utilizando como “tijolos” uma série de mulheres exemplares. Guiada pela Razão, a Justiça e a Retidão, oferece às mulheres de ontem, de hoje e de amanhã uma obra atemporal, uma fortaleza, para que elas não só se refugiem mas se inspirem e avancem sem medo de buscar prestígio e aprimoramento intelectual.
Nota
- O trabalho originou a publicação de uma tradução do livro, sob o título “A Cidade das Damas”, pela Editora Mulheres (2012). ↩︎
Isabelle Anchieta é escritora e socióloga. É autora do livro Revolucionárias: Joana D’Arc e Maria Quitéria (Planeta) e da trilogia Imagens da Mulher no Ocidente Moderno (Edusp).
Leia um excerto de A Cidade das Mulheres, de Christine de Pizan.