A complexidade da normatividade

Um ensaio do Prof. Denis Coitinho sobre a urgência em se diferenciar a autoridade normativa da esfera privada em contraposição à autoridade normativa da esfera pública; um ensaio sobre a complexidade da normatividade.

por Denis Coitinho

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A ideia básica deste ensaio é dar continuidade ao que propus como uma teoria moral mista, que toma como complementares os aspectos normativos de uma ética contratualista e de uma ética das virtudes para melhor lidar com certos problemas morais e políticos bastante complexos. Em Contrato e Virtudes (Loyola, 2016), tratei, sobretudo, dos problemas da responsabilidade moral e da justificação da punição, além de apresentar as características metaéticas centrais dessa proposta, faltando detalhar o modelo ontológico dessa teoria. Agora, o foco recai sobre os problemas da fonte da normatividade, sorte moral, fundamentação da democracia e direitos humanos, desacordo moral e as capacidades da agência moral, além de tratar novamente da questão da punição. Inicia com a defesa de uma ontologia de segunda natureza e se desenvolve com um esclarecimento de uma concepção específica tanto de agência moral quanto de normatividade.

A ideia central que defendo é a respeito da urgência em se diferenciar a autoridade normativa da esfera privada em contraposição à autoridade normativa da esfera pública, pensando mais especificamente no âmbito da moralidade, e procurar conectar essas duas esferas em uma teoria mista que faça uso de critérios prescritivos tanto de uma ética das virtudes quanto de uma ética neocontratualista. O ponto central será defender que apenas uma teoria moral e política mista poderá harmonizar adequadamente essas duas exigências, a saber, uma exigência normativa tanto em primeira quanto em segunda pessoa. Veja-se um exemplo do que estou considerando. Quando um agente é demandado a ser resiliente, por exemplo, ou mesmo a ter lealdade ou ser moderado, a autoridade em questão é claramente pessoal, de forma que seria o próprio agente a ter que exigir de si mesmo um certo tipo de comportamento e caráter virtuoso, sendo a felicidade uma questão que envolveria particularmente a deliberação e a decisão individual. Por outro lado, quando os agentes são demandados a obedecerem à lei, por exemplo, o código de trânsito brasileiro, que condena os atos de imperícia, negligência e imprudência, a autoridade em questão não parece ser pessoal, mas social, de forma que seria a própria deliberação da comunidade que exigiria do sujeito um certo tipo de comprometimento e atitude, e que isso é que garantiria a felicidade da coletividade.

O problema é que as teorias tradicionais, tanto as morais como as políticas, não parecem dar conta adequadamente dessa dualidade normativa, apenas de forma negativa, isto é, ou desconsiderando o âmbito da moralidade privada para saber o que seria o correto ou justo, ou reduzindo toda complexidade da normatividade pública à moralidade privada. Repare-se nas teorias utilitaristas, kantianas ou mesmo nas teorias neocontratualistas. Elas fazem uma separação entre a moralidade privada e pública, é claro, mas a exigência normativa ao agente moral recairia, primordialmente, sobre uma perspectiva claramente pública, de forma que o ato correto ou justo seria aquele permitido por um princípio que tivesse as características de trazer a maximização dos resultados, ser universalvelmente desejável e não ser razoavelmente rejeitado, respectivamente. Note o papel aqui dos procedimentos de espectador imparcial, imperativo categórico ou mesmo posição original. Por outro lado, uma teoria das virtudes ou mesmo uma teoria comunitarista, determinaria a correção e a justiça por uma correlação ao bem, o que eliminaria toda importante distinção entre o público e o privado. Minha convicção é que uma teoria moral e política mais eficiente deveria considerar com seriedade essa diferença entre a esfera privada e pública da moralidade, mas em uma direção de conexão, de forma a poder contar com certas virtudes privadas que seriam coerentes com certas virtudes públicas. Ao longo dos capítulos, irei propor que harmonizar certas virtudes privadas com certas virtudes públicas ou mesmo princípios seria o melhor caminho para a resolução de alguns problemas práticos complexos. Por exemplo, que para garantir a fundamentação adequada da democracia seria necessário conectar coerentemente as virtudes da integridade e autonomia com as virtudes da razoabilidade e tolerância. Também, que os cidadãos deveriam possuir igualmente aidôs e dikê como laço de aproximação entre os homens e como princípio ordenador das cidades para a garantia tanto da estabilidade pessoal quanto coletiva, bem como um gestor competente precisaria possuir a virtude da integridade aliada com a responsabilidade social.

Veja-se que essa complexidade normativa que quero chamar atenção parece estar intimamente ligada com uma compreensão muito particular de agência moral, de forma que as teorias tradicionais tomariam os agentes como podendo agir diferentemente e que estariam isentos de sorte moral, sem determinações causais, constitutivas e circunstanciais como uma das bases de seu raciocínio moral, tomando a decisão ética como um ato exclusivamente individual e voluntário. Alternativamente, a concepção de agência moral defendida aqui considerará como relevantes os aspectos aleatórios à vontade do sujeito, a identidade coletiva, a intencionalidade comum e o conhecimento moral como intersubjetivo para melhor levar em consideração vários aspectos relevantes da responsabilidade moral, que é individual, por um lado, mas que é coletiva, por outro, ao se pensar em determinados problemas complexos como o da responsabilidade pelos erros do passado, como a escravidão e sexismo, pela responsabilidade com as gerações futuras, com o uso moderado dos recursos naturais ou com a determinação de uma poupança adequada, além do problema de como justificar a relatividade ética e a sorte moral.

Como minha proposta é a de desenvolver uma teoria moral e política mista, que possa conectar diferentes critérios normativos, tanto em primeira pessoa quanto em segunda pessoa, se faz necessário um esclarecimento inicial sobre o papel e o escopo de uma teoria moral. Em minha interpretação, o papel inicial de uma teoria moral e política é esclarecer para os agentes como eles mesmos julgam moralmente as atitudes e caráter dos sujeitos, isto é, através de juízos de aprovação e desaprovação das ações e comprometimentos, elogiando aquelas que se aprova e censurando as que se desaprova e apontar para as possíveis contradições que possa se identificar nesses julgamentos. Por exemplo, um agente censura um ato de corrupção pública, mas não censura tão fortemente um ato de corrupção privado, sendo até leniente com esse tipo de ação que leva em conta o autointeresse. Identificando a contradição, o papel da teoria seria o de oportunizar um método para que as pessoas pudessem revisar os seus juízos morais. A ideia básica é que uma teoria moral possa oferecer certos critérios normativos, tais como princípios ou mesmo virtudes morais, para o agente poder utilizá-los como referência prescritiva para poder corrigir ou revisar as suas crenças morais e isso a partir de um entendimento adequado do próprio fenômeno moral. Por isso, o método do equilíbrio reflexivo terá destaque nessa proposta, bem como os exemplos. Também, é importante frisar que uma teoria normativa, como uma teoria moral contratualista-das virtudes ou uma teoria política liberal-comunitarista, deve ser esclarecida por pressupostos metaéticos, tais como o ontológico, o epistemológico, o semântico e o psicológico, bem como deve servir para resolver certos problemas práticos. Em minha proposta, tento conectar uma ontologia de segunda natureza, um cognitivismo contextualista, uma epistemologia coerentista e uma psicologia moral razoável, e isso para melhor enfrentar certos problemas práticos, tais como o da fundamentação da democracia e dos direitos humanos e a justificação da punição legal.

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H.L.A. Hart (Steve Pyke/Getty Images)

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Outra característica relevante dessa teoria é que ela tomará como interligados os domínios da vida prática, tais como o ético, o político, o jurídico, o econômico, o psicológico, o religioso etc. A ideia é que é mais produtivo ver as conexões entre esses diferentes domínios ao invés de procurar ressaltar suas diferenças específicas. Deixem-me dar um exemplo do que estou falando, observando a relação entre a ética e o direito. É comum tomar esses domínios como estritamente diferentes, e isso porque a ética remeteria os agentes a uma esfera dos valores, que seria puramente subjetiva, interna, enquanto o direito remeteria os indivíduos a uma esfera das leis, que seria fatual, externa e tomada como objetiva. Mas, veja-se que para além dessa interpretação positivista de separação radical entre fatos e valores, pode-se identificar uma série de valores morais nas decisões jurídicas, tais como os valores de razoabilidade, liberdade, igualdade, transparência, publicidade etc., da mesma forma que se pode reconhecer um caráter objetivo nas decisões morais, de forma a tomar a crueldade e o sofrimento como errados, bem como considerando a tolerância como correta e condenando algumas formas de discriminação, tais como a discriminação racial e de gênero, e isso sem assumir uma posição jusnaturalista. Creio que a Declaração Universal dos Direitos Humanos mostra muito bem essa realidade, sendo tomada não apenas como um código legal, mas que ofereceria, também, uma forte proteção moral aos cidadãos, garantindo seus direitos. Importante notar que apesar de reconhecer-se a autoridade exclusivamente coercitiva do direito em contraposição a uma autoridade internalista (voluntária) da moralidade, tanto a ética quanto o próprio direito parecem poder ser compreendidos como possuindo uma autoridade normativa interpessoal, uma vez que as suas regras sociais que orientam o comportamento humano com o objetivo de harmonia seriam validadas intersubjetivamente ao invés de validadas de forma objetiva, como nas ciências duras, que precisariam contar com uma forte dimensão verificacionista.

Creio que um dos grandes problemas para se reconhecer o importante papel e a relevância da ética contemporaneamente seja pensar no raciocínio moral em termos de tudo ou nada. Quer dizer, ou o agente deveria saber de forma objetiva o que seria o certo e o errado, o bom e o mau, o justo e o injusto, e agir sempre de forma a aplicar esses critérios em suas ações cotidianas, sem hesitação, ou esse conhecimento seria tomado como impossível e irrealizável, de forma a não se reconhecer a existência mesma de verdades morais objetivas, sendo toda decisão humana perpassada pelas emoções dos agentes, que claramente apontariam para uma dimensão subjetiva da moralidade. Mas, serão essas as únicas interpretações possíveis? Não creio, uma vez que se pode compreender o raciocínio moral em termos de graus e relacionado ao fenômeno de progresso moral. Por exemplo, era comum no passado que os julgamentos morais dos agentes levassem em consideração apenas o seu próprio grupo e, internamente ao grupo, aos que teriam mais poder, não aplicando os critérios normativos de certo e errado ou justo e injusto aos outros indivíduos, isto é, as outras etnias ou povos, às mulheres e mesmo a outras espécies. Exemplos desse tribalismo seriam a escravidão, a discriminação religiosa e sexual, o genocídio, a tortura e até mesmo a não consideração com o sofrimento dos animais não-humanos. Mas, note-se que parece ter ocorrido uma expansão do círculo moral ao longo da história da humanidade, com uma exigência de maior inclusividade, de maneira a se cobrar uma maior consistência dos juízos morais dos agentes, com a remoção das restrições arbitrárias que impediam que se levasse em conta os outros na avaliação normativa. Exemplos dessa expansão do círculo moral pode ser encontrada na garantia dos direitos básicos para as mulheres e afrodescendentes atualmente, bem como com a crescente preocupação com os direitos dos animais não-humanos.

Outro equívoco ainda ligado a essa compreensão do raciocínio moral como tudo ou nada é que ela parece desconsiderar as próprias características da agência humana, tais como as epistemológicas e psicológicas, pois, muitas vezes, o agente parece saber aquilo que seria o correto, mas não mostra ter força motivacional suficiente para realizar a ação. Chama-se a isso de acrasia ou fraqueza da vontade, de forma que alguém teria conhecimento do que seria o certo a se fazer, como por exemplo, sabendo que o correto seria agir moderadamente, não comendo ou bebendo em demasia e fazendo exercícios físicos regulares, mas não teria a disposição apropriada para realmente fazer exercícios e não comer e beber em excesso. Veja-se que em uma concepção intelectualista, como a socrático-platônica, o conhecimento do bem deveria obrigar necessariamente os agentes à ação. Mas, a questão não parece ser assim tão simples como pretendida pelo intelectualismo, uma vez que se pode reconhecer até mesmo como legítima uma certa limitação disposicional, de forma a geralmente se sentir compaixão pelos acráticos ao invés de censurá-los severamente. Não é esse o caso de pessoas com adição a drogas? Embora saibam que o seu vício é errado, geralmente não conseguem parar de consumir uma certa substância, tal como cocaína, heroína ou mesmo crack. O ponto que quero chamar atenção é que a forma com que a comunidade moral reage frente a casos de acrasia não é o de uma censura total ao agente, mas, ao contrário, haveria uma certa compreensão da dificuldade em sempre se agir a partir do conhecimento de certas razões morais.

Veja-se que em casos de acrasia invertida o agente é até mesmo elogiado, como no exemplo de Huckleberry Finn, protagonista da obra homônima de Mark Twain, que ajuda Jim a fugir da escravidão, mas não considera correto ajudar um escravo a fugir. Em casos de acrasia invertida, o agente age racionalmente e até mesmo moralmente, mas o que ele faz seria contrário ao seu melhor julgamento. Mas, o que esse fenômeno parece revelar? Creio que isso já aponta para um certo reconhecimento das limitações da agência humana, de forma a se poder relevar moderadamente a fraqueza da vontade dos agentes e até mesmo certos tipos de ignorância moral, como no caso de se poder desculpar os antigos donos de escravos ou mesmo os machistas do século XVIII por ignorarem que a escravidão e sexismo eram atos errados, uma vez que se poderia tomar esse tipo de ignorância como uma limitação epistêmica da agência para se conhecer o certo e errado sem nenhuma referência ao contexto. Seria diferente no caso de alguém hoje em dia não saber que a escravidão e o sexismo são errados. Essa ignorância seria legitimamente censurada, e isso porque a existência e reconhecimento de certos padrões normativos-morais, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos ou mesmo as Constituições nacionais democráticas, por exemplo, possibilitariam o contexto apropriado para o agente poder identificar que o desrespeito à dignidade humana, bem como a desconsideração da liberdade e igualdade às mulheres deve ser tomado como algo errado.

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Trecho do livro recém lançado por Edições Loyola: Contrato & Virtudes II: Normatividade e Agência Moral. São Paulo: Loyola, 2022.

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(Reprodução)

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