por Denis Coitinho
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Ao ensejo do centenário de nascimento de John Rawls, um dos filósofos políticos mais importantes da segunda metade do século XX, que obteve destaque a partir da publicação de sua obra magna A Theory of Justice, em 1971, creio ser relevante tentar compreender o escopo e as características centrais de sua teoria da justiça, que foi reformulada e reafirmada em Political Liberalism, de 1993, e estipulada em um nível global em The Law of Peoples, obra de 1999 — sobretudo refletir sobre o significado mesmo do termo “fairness”, que problematicamente é traduzido por “equidade” na língua portuguesa.
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A justiça como equidade (fairness) busca estabelecer um critério normativo para determinar aquilo que é o justo, isto é, para aquilo que seria o correto de um ponto de vista público, uma vez que sua aplicação recai sobre a estrutura básica da sociedade, o que inclui as principais instituições políticas e econômicas. Sua estratégia geral é partir das convicções morais públicas compartilhadas em uma sociedade democrática, tais como as convicções de tolerância religiosa, recusa à perseguição e rejeição à escravidão para estabelecer princípios de justiça que descrevam essa concepção política de justiça que contará com os valores de liberdade, igualdade e bem comum a partir de uma escolha simétrica das partes na posição original e, então, testá-los por sua coerência com os juízos morais ponderados dos cidadãos e, também, por sua eficácia em garantir a estabilidade social e legitimidade política. Para Rawls, em Political Liberalism (1996, p. 9):
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“Justiça como equidade (justice as fairness) tenta fazer isso usando uma ideia organizadora fundamental em que todos os ideais e princípios possam estar sistematicamente conectados e relacionados. Essa ideia organizadora é a da sociedade como um sistema equitativo de cooperação social entre pessoas livres e iguais vistas como membros inteiramente cooperativos da sociedade considerando uma vida completa.”
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Mas qual é mesmo o significado de justiça para Rawls? O que significa dizer que a justiça será identificada com a equidade, isto é, com fairness e que estará associada a uma ideia de contrato social? Creio que seja relevante fazer alguns esclarecimentos iniciais a respeito do escopo dessa teoria para evitar interpretar fairness como aquilo que seria o naturalmente justo, como aquilo que seria um corretor do direito positivo associado a uma virtude pessoal, como o que apontaria para o critério normativo da igualdade em um sentido absoluto. No artigo “Justice as fairness”, publicado em 1958, Rawls diz que a justiça
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……….(i) está aplicada às práticas, isto é, ela é tomada apenas como uma virtude das instituições sociais e não como uma virtude das ações particulares das pessoas;
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……….(ii) opera com um sentido usual de justiça, o que significa apenas a eliminação de distinções arbitrárias e o estabelecimento de um equilíbrio entre as reivindicações conflitantes;
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……….(iii) formula princípios morais públicos que pertencem a um modelo liberal de justiça que, por sua vez, está conectado com as convicções políticas socialmente compartilhadas (RAWLS, 1958, pp. 164-165).
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Essa concepção política de justiça pode ser vista na forma do estabelecimento de dois princípios:
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(1) Cada pessoa participante em uma prática, ou afetada por ela, tem um direito igual a mais extensa liberdade compatível com a liberdade de todos, e
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(2) desigualdades são arbitrárias a menos que seja razoável esperar que ela funcione para a vantagem de todos e possibilitando que as posições e cargos estejam abertos para todos os envolvidos dessa prática.
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Importante ressaltar que esses princípios seriam os escolhidos por pessoas que estivessem em uma situação de simetria. Esse aspecto normativo da teoria pode ser visto pelo importante papel que o véu da ignorância desempenha na posição original.
Rawls esclarece, em A Theory of Justice (1971), que a posição original é a situação inicial apropriada que garante que o acordo fundamental alcançado seja justo (fair). A ideia é que pessoas racionais e razoáveis escolheriam esses dois princípios de justiça se o seu conhecimento de sua concepção de bem fosse restrita. O mesmo se dá em um nível global, com a diferença é que as partes escolheriam oito princípios de justiça, garantindo, sobretudo, a liberdade e autonomia dos povos, os direitos humanos, a conduta justa na guerra e o dever de assistência, sendo as partes representantes de povos liberais e razoáveis, que escolheriam estes princípios em uma segunda posição original, tendo o desconhecimento do tamanho do território ou da população e a força relativa das pessoas que representam, por exemplo (The Law of Peoples, 1999, pp. 32-37) . Retornando ao plano nacional, as partes, que são representantes hipotéticos de todas pessoas racionais e razoáveis, apenas saberiam que desejam os bens primários (liberdades e direitos fundamentais, renda e riqueza, autoestima, por exemplo), mas não teriam conhecimento de suas próprias concepções de bem, bem como desconheceriam a sua situação particular na sociedade, como sua classe social, etnia, gênero etc. Nas palavras de Rawls:
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“Se exclui o conhecimento dessas contingências que permite aos indivíduos serem guiados por seus preconceitos. Dessa maneira, se chega ao véu da ignorância de uma forma natural. Este conceito não deve causar nenhuma dificuldade se tivermos em mente as restrições na argumentação que ele pretende expressar. A qualquer momento podemos entrar na posição original simplesmente seguindo um certo procedimento, a saber, argumentando por princípios de justiça de acordo com essas restrições (RAWLS, 1971, p. 19/17 rev.).
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Sendo assim, a justiça é compreendida como uma conexão entre as ideias de liberdade, igualdade e bem comum (RAWLS, 1958, pp. 165-166; 1971, p. 70/53 rev.). Mas, qual a característica central desses princípios? Eles seriam normas abstratas descoladas de toda a realidade fatual? Seriam normas morais absolutas deduzidas da razão de forma apriorística ou seriam normas morais descobertas pelos agentes ao observar algum fenômeno natural? A resposta a essas perguntas é negativa, uma vez que os princípios serão melhor interpretados como sendo regras de um jogo e que são estabelecidos sob certas circunstâncias que valerão como o contexto para a sua construção, como pode-se notar pela diferença de conteúdo entre os princípios de justiça que são escolhidos em um plano nacional ou internacional, não constando o valor do bem comum no plano global, apenas o dever de assistência.
Veja-se que a justiça está associada às práticas políticas e econômicas de uma sociedade democrática liberal contemporânea. Mas o que se entende mesmo por práticas? O termo ‘prática’ tem por significado qualquer forma de atividade especificada por um sistema de regras que definem, por exemplo, o emprego, a forma de propriedade, as penalidades, o valor dos impostos etc. Assim, jogos, rituais, julgamentos, mercados e sistemas de propriedades são práticas. Vejamos o caso de um jogo. As regras devem funcionar como parâmetros ou como normas que dão realidade ao próprio jogo e são sua condição de possibilidade. Por exemplo, as regras que determinam o movimento das peças do jogo de xadrez e de como estas peças podem ser tomadas constituem-se como o próprio jogo e, também, possibilitam que se joguem tais e tais partidas. O resultado será justo em uma partida de xadrez quando os jogadores agirem seguindo as regras. Os jogadores não reclamariam por estar em diferentes posições, como jogar com as peças brancas ou pretas ou ter certos poderes especificados pelas regras, como dar xeque, o que obriga o adversário a ter que sair dessa posição ou perder o jogo, o que seria um xeque mate. Podem considerar o resultado justo quando todos seguem as regras de forma especificada por eles próprios, uma vez que as regras do xadrez são uma criação humana e não uma determinação a priori absoluta. Da mesma forma, fairness pode ser compreendida como um conjunto de regras, os dois princípios de justiça, que orientam o jogo político e econômico dos cidadãos em uma sociedade democrática contemporânea. Tal qual num jogo de xadrez, se pode jogar com regras criadas pelos próprios participantes do jogo político e econômico e isso seria mais eficiente do que tentar estabelecer as regras a partir de um ponto de vista absoluto, fora do próprio mundo. Na justiça como equidade, as regras são construídas a partir de um ponto de vista social, isto é, são construídos na posição original sob o véu da ignorância (RAWLS, 1996, p. 23).
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É importante ressaltar, também, que a teoria de Rawls se utiliza de um sentido usual de justiça, o que parece apontar apenas para a eliminação de distinções arbitrárias e o estabelecimento de um equilíbrio entre reivindicações conflitantes. Dessa maneira, fairness significaria somente “jogo limpo”. Parece fundamental para a justiça o conceito de fairness que está relacionado ao direito entre as pessoas que estão cooperando ou competindo umas contra as outras. Aqui, fairness significa o dever que pessoas tomadas como livres e iguais têm de jogar limpo e isto implica, inicialmente, seguir as regras que elas mesmas estabeleceram visando sua convivência harmoniosa. Para Rawls:
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“Agora se os participantes em uma prática aceitam estas regras como justas (fair) e não têm nenhuma reclamação a fazer contra elas, surge um dever prima facie (e um correspondente direito prima facie) entre as partes em agir de acordo com a prática e exigir o seu cumprimento” (RAWLS, 1958, p. 179).
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Outra importante característica dos princípios de justiça é que eles não são derivados de princípios a priori da razão ou mesmo conhecidos por uma intuição racional especial. Antes, eles são estabelecidos por certas circunstâncias bem específicas, a saber: pessoas que possuem interesses e necessidades e uma capacidade de agir cooperativamente ou moralmente, considerando a existência de uma escassez moderada de recursos. A ideia geral do procedimento é a de que se as pessoas estiverem em uma situação de simetria, elas escolherão os princípios que defendem a liberdade, a igualdade e o bem comum para o regramento de suas práticas políticas e econômicas em razão desses princípios melhor descreverem o seu próprio senso de justiça, que pode ser entendido como o compartilhamento de certas crenças morais-políticas que apontam para a aprovação de uma restrição aos interesses puramente privados (egoísticos). Os princípios de justiça, assim, funcionariam como restrições escolhidas pelos envolvidos que governariam os direitos e deveres em suas práticas comuns, os aceitando como uma limitação de seus direitos sobre o outros (RAWLS, 1958, p. 174).
Com isso em mãos, creio que se possa identificar o conceito de fairness como um conceito ético que tem densidade, não sendo puramente formal (thick e não thin), em razão dele possuir um importante aspecto descritivo a partir das próprias práticas da justiça e uma relevante situação contextual para sua determinação dada pelo procedimento de construção. Mas seria esse critério objetivo ou ele seria apenas o resultado das emoções dos agentes envolvidos na sua construção? E qual seria o seu significado? Ele poderia ser tomado como verdadeiro ou seria um critério puramente arbitrário? Para responder a essas questões farei uso de um ensaio de Rawls ainda não publicado, intitulado “A brief inquiry into nature and function of ethical theory” (John Rawls’s Archives), de 1946, ano em que Rawls inicia o seu doutorado em Princeton.
Nesse ensaio, Rawls defende uma teoria que ele chama de “Utilitarismo Imperativo” e que serve para determinar quais atos se pode considerar como “correto” (right) ou “errado” (wrong) a partir do próprio uso que se faz dessas palavras morais por seus usuários. A ideia geral parece ser a de fazer deduções a partir de juízos morais reais de certo tipo de pessoas e testar essas deduções contra esses juízos morais. Ele defende aqui o seguinte princípio: “[…] dado duas ações de igual grau de otimização e igual frequência relativa, o ato que será mais apreciado será o que tiver maior ocorrência contextual” (RAWLS, 1946, p. 41). Essa ocorrência contextual significaria a frequência que tais ações seriam encontradas na vida social. Por exemplo: ser fiel, manter a promessa e falar a verdade seriam ações corretas em razão de apontarem para uma certa regularidade observada a partir de um ponto de vista social. O ponto central de Rawls é estabelecer uma contraposição ao emotivismo que diz que quando usamos as palavras “correto” e “errado” apenas se estaria expressando as próprias emoções do agente e que isto seria relativo a cada um. Ele diz que isso não é relevante para uma teoria moral que está preocupa no uso social de critérios morais. Por isso, Rawls não concorda com Moore e Ross em considerar os termos morais “correto”, “errado” e “bom” como indefiníveis em razão da qualidade a que esses termos se refeririam serem indefiníveis. Para ele, isso é apenas um pseudo-problema, uma vez que ele defenderá que se pode definir um conceito moral como “correto” por um equivalente moral de como as pessoas compreendem o que seria o “correto”. Toma isso como um fato linguístico, como um fato sobre a forma das pessoas usarem as palavras “correto”, “errado”, “bom” e assim por diante e não como um fato sobre a irredutibilidade de “correto” como uma qualidade objetiva de coisas (RAWLS, 1946, p. 23).
Outro ponto importante desse ensaio é a afirmação de que, como a linguagem moral é imperativa, não faz sentido requerer a verdade ou a falsidade dos juízos morais. Antes, seria preferível exigir a sua razoabilidade, sensatez ou racionalidade. Rawls diz que “assumindo que a teoria do utilitarismo imperativo seja correta, isto parece claro que declarações éticas não são verdadeiras ou falsas no mesmo sentido em que declarações fatuais o são” (RAWLS, 1946, p. 59). Não se diz, por exemplo, que o comando de fechar a porta seja falso quando a porta já está fechada, mas, ao contrário, se diz simplesmente que este comando não é sensato, que não é razoável. É o mesmo no caso moral. Quando se diz que se deve ser tolerante em tal e tal circunstância, não se deve perguntar se isso seria verdadeiro, mas se seria razoável. E a razoabilidade aqui implicaria naquilo em que todos os envolvidos poderiam aceitar, isto é, implicaria na aceitabilidade das regras pelos próprios agentes (RAWLS, 1946, pp. 58-60).
O que é importante destacar nesse ensaio que já apresenta o fio condutor do que viria a ser a teoria da justiça como equidade é que a objetividade defendida não contará com nenhuma entidade metafísica fora da estrutura mental do agente. Preferencialmente, estará associada com um procedimento para deliberar acertadamente sobre as regras que reproduzem um ponto de vista social. Também, que o significado de um termo moral como “correto” será determinado a partir do próprio uso que é feito pelos envolvidos, não sendo tomado como o que é verdadeiro, mas como aquilo que pode ser visto como razoável.
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