por Gabriel Nocchi Macedo
Os textos gregos e latinos antigos que, hoje em dia, se leem em inúmeras línguas, representam uma ínfima parte da produção literária da Antiguidade clássica: estima-se que apenas cerca 10% da literatura composta entre a época arcaica (século VIII a.C.) e o fim do Império Romano Ocidental (século V d.C.) foi conservada. As raras descobertas, em sítios arqueológicos ou estantes de bibliotecas, que aumentam modestamente esse corpus reduzido, são de grande importância e atraem, cada vez mais, uma atenção mediática que mostra ao público que o novo também pode ser antigo.
Uma das mais significativas descobertas do início do século XXI foi feita no monastério dos Vlatades em Salonica, onde o pesquisador francês Antoine Pietrobelli encontrou, em um manuscrito do século XV, dois textos inéditos do célebre médico-filósofo grego Cláudio Galeno de Pérgamo (129 – c.216 d.C.), considerado, junto a Hipócrates (c. 460 – c. 370 a.C.), o maior médico da Antiguidade. Nascido em uma família de amadores da ciência (seu pai era arquiteto), Galeno recebeu uma longa formação em matemática, arquitetura, filosofia e medicina em diversas partes do mundo grego, da Síria a Alexandria, passando por Chipre e Corinto. Em Roma, onde viveu durante três períodos interrompidos por retornos à sua cidade natal, Galeno obteve fama e fortuna, sendo convocado pelos imperadores Lúcio Vero (reino: 161-169) e Marco Aurélio (reino: 161-180) e tornando-se médico particular do futuro imperador Cômodo (reino 180-192). Sua produção literária foi imensa e variada, tratando, além de medicina, de filosofia, gramática, crítica literária e retórica. Seus tratados exerceram uma grande influência no desenvolvimento das ciências médicas tanto no ocidente—durante a Idade Média, muitos de seus textos eram lidos em tradução latina—quanto no oriente, onde foram traduzidos, a partir do século IX, para árabe, siríaco e hebraico.
Um dos textos descobertos no manuscrito de Salonica é um curto ensaio, em forma epistolar, cujo título—Peri alypias—traduzir-se-ia “Da ausência de sofrimento”. Nesse texto, Galeno se propõe a responder a uma questão de seu correspondente (cuja identidade nos é desconhecida): quais exercícios, discursos ou doutrinas o preparam a jamais sofrer? À época em que a pergunta foi feita, o médico de Pérgamo havia passado por grandes adversidades, mas, para a surpresa de seu amigo, não se mostrava perturbado. A maior das desventuras foi sem dúvida o grande incêndio em Roma, na primavera de 192. Entre as construções consumidas pelo fogo, encontravam-se os armazéns da Via Sacra onde Galeno havia depositado parte de seus bens:
“Tu mesmo dizes que viste que não me comovi nem um pouco, e o que me aconteceu recentemente é pior que tudo que ocorreu antes, visto que foram destruídos no grande incêndio todos os meus bens depositados nos armazéns da Via Sacra. Tu dizes saber quantos e quais eram [esses bens], mas também que um de teus mensageiros disse que eu não sofri, mas continuei sereno, seguindo meus hábitos como antes.”
Galeno relata que o incêndio destruiu seu ouro, prata e objetos preciosos, além de vários remédios, preparações farmacológicas, e instrumentos medicais. A grande perda, porém, foi a de seus livros, muitos dos quais ele mesmo havia escrito. Além disso, o fogo propagou-se por outras regiões de Roma e destruiu todos as bibliotecas do Palatino, onde havia livros únicos, dos quais nenhuma outra cópia existia:
“Além desses livros, eu perdi àquele dia todos os livros copiados em exemplares de boa qualidade, após correção de palavras confusas, fruto de erros durante a cópia; pois eu decidi realizar minhas próprias edições, estudando as palavras com a máxima precisão, para que não houvesse nada em excesso e nada em falta (…) Tais eram os livros de Teófrasto, de Aristóteles, de Eudemos, de Kleitomachos, de Phanias e a maior parte dos livros de Crísipo e todos aqueles dos médicos antigos.”
Leitores e bibliófilos podem achar a impassibilidade de Galeno face à perda dos livros um tanto curiosa, quando pensam que, na Antiguidade, livros eram confeccionados e copiados à mão. À ausência de sofrimento, o autor dá duas explicações. Na primeira, usa como exemplo uma estória envolvendo o filósofo Aristippos de Cirene (c. 435 – c. 360 a.C.):
“[Aristippos] possuía quatro campos no seu país e perdeu um deles em alguma desgraça, restando-lhe três. Quando um de seus concidadãos o encontrou, quis compadecer-se de sua perda. Aristippos, porém, riu e disse: ‘Por que deverias te compadecer de mim que tenho três campos, quando tu não tens nenhum? Não deveria eu me compadecer de ti?'”
Perdas, segundo Galeno, não devem causar aflição quando nos resta o suficiente para viver, mesmo se é pouco. Os bens que o fogo não destruiu lhe bastam e o não sofrer é prova da sua grandeza de alma. Quem sofre são os insaciáveis a quem as “coisas humanas”, a riqueza, nunca são o suficiente.
Em seguida, Galeno explica como ‘exercita-se’ a não sofrer, citando versos do Teseu de Eurípides (uma peça da qual só se conhecem fragmentos):
fr. 964 Jouan-Van Looy
Como eu aprendi de um sábio,
pensei em aflições e desgraças,
impondo-me a mim mesmo o exílio da pátria
a morte prematura e outros caminhos aos males,
para que, se um dia eu devesse passar pelas penas que imaginei,
elas não me mordessem a alma repentinamente
Ou seja, contemplando as adversidades que podem ocorrer, a alma se prepara: se lhe é possível não sofrer pelas piores desgraças imagináveis, ela é capaz de não sofrer por desgraças menores que realmente acontecem. O médico menciona seu próprio caso na corte de Cômodo. Galeno imagina que o imperador pode-lhe impor graves penas às quais já condenou outras pessoas inocentes, o exílio e a confiscação total dos bens. Preparado às penas extremas, ele não sofre ao perder só uma parte de seus bens, sem os quais pode sobreviver.
A ética de Galeno não é dogmática, à medida que não segue uniformemente uma única doutrina filosófica. O autor fora educado nas quatro grandes escolas filosóficas de seu tempo: o platonismo (ao qual aderia, mas não obedecia cegamente), o peripatetismo, o epicurismo e o estoicismo. Ele critica a concepção epicuriana do bem como a simples ausência de dor física e mental. E também discorda do estoico Musônio Rufo, que pedia a Zeus que lhe mandasse adversidades para colocar à prova a sua resistência à dor. Para Galeno, a impassibilidade total, a tolerância de males intoleráveis, é impossível:
“Eu não sei dizer se existe de fato um sábio que seja absolutamente impassível, mas sei com certeza que não sou assim. Eu desprezo a perda de bens materiais até o ponto em que, privado de tudo, eu seria enviado a uma ilha deserta, e a dor física até o ponto de não pretender desprezar o touro de Fálaris . Sofrerei se minha pátria for devastada ou se um amigo for perseguido por um tirano, ou por algo semelhante. Eu rezo aos deuses para que nada da sorte me aconteça e é porque não me aconteceu até agora que tu não me vês sofrer.”
Trata-se, portanto, de atribuir às coisas o seu devido valor e, acima de tudo, reconhecer que o bem maior é o conhecimento das “coisas divinas e humanas”, que vai além do prazer e da resistência à dor, e permite identificar os limites da natureza humana. Graças a uma rigorosa introspecção, Galeno é ciente de seus próprios limites e pode, através do seu ‘exercício’, fortificar seu corpo e sua alma contra as aflições. O sofrimento, por sua vez, é consequência da falta desse conhecimento, que leva o homem a ser controlado por seus apetites e ambições.
“(…) um homem demasiado apegado [às honrarias, à riqueza e ao poder político] é obrigado a levar a vida mais infeliz possível, pois não tem a mínima ideia do que seja a virtude da alma, aumentando os vícios que há nela e sofrendo incessantemente, porque não é capaz de atingir aquilo que planejou. De fato, os maiores desejos têm um objetivo insaciável, de sorte que, em estado normal, não se pode confiar neles nem naqueles que confiam neles.”
O tratado se termina com uma anedota sobre um homem rico que nem dividia sua fortuna com outros nem a gastava para seu próprio prazer. O caso inspirou Galeno a escrever um livro intitulado “Sobre os ricos que amam seu dinheiro”, do qual ele promete mandar um exemplar ao seu correspondente. Nenhuma cópia dessa obra chegou até nós, infelizmente. Como “Da ausência de sofrimento”, ela seria sem dúvida mais uma valiosa lição que os antigos nos poderiam ensinar. Resta a esperar por novas descobertas.