Conhecendo manuscritos gregos raros: as Coleções Especiais da Universidade de Princeton

Mestranda em Filosofia pela USP, a pesquisadora Daniela Fernandes acaba de retornar de uma temporada na Universidade de Princeton. Inspirada pelas coleções da instituição, ela apresenta uma série especial, em três capítulos, sobre manuscritos gregos raros. No primeiro texto da série, leia uma entrevista com David T. Jenkins, bibliotecário de Estudos Clássicos, Helênicos e Linguística da universidade americana.

Aprender o caminho até a sala das Coleções Especiais da Universidade de Princeton, localizada no terceiro subsolo da inesgotável Harvey S. Firestone Memorial Library — ou, simplesmente, a Firestone — foi uma das minhas primeiras tarefas chegando ao campus. Já esperava encontrar uma preciosidade do alvo de meus esforços intelectuais nos últimos anos: Princeton MS.173, o manuscrito raro das obras do Organon de Aristóteles. Algo que poderia ser apenas uma visita pontual transformou-se na descoberta do universo dos manuscritos gregos raros. 

Buscando aproveitar ao máximo minha estada, entrei em contato com David T. Jenkins, bibliotecário de Estudos Clássicos, Helênicos e Linguística, com quem tive a oportunidade de conversar a respeito de perspectivas para desenvolvimento de pesquisas acadêmicas na área, além de conhecer mais a respeito do acervo e recursos para estudantes e pesquisadores que necessitam desses materiais em suas pesquisas. Após nossa conversa, David muito gentilmente aceitou ser entrevistado para o Estado da Arte, compartilhando conosco os bastidores do trabalho que vem sendo realizado com os manuscritos gregos da biblioteca, além do dia a dia de um bizantinista na Universidade de Princeton. 

A Firestone no campus da Universidade de Princeton. Crédito: John Phelan/Wikimedia Commons.

Iniciando pela sua trajetória acadêmica, como começou nos estudos bizantinos? Há algum autor ou inspiração em particular que influenciou sua decisão de se tornar um bizantinista?
Eu me considero um bizantinista “acidental”, uma vez que nunca pensei em me tornar um, até me candidatar a um emprego que exigia alguma formação nesta área. No meu caso, fiz graduação em Clássicos e, então, complementei meus estudos na pós-graduação com estudos especializados em grego antigo. 

Poderia nos contar mais a respeito da sua experiência trabalhando como bibliotecário — primeiro, na Universidade de Notre Dame e, posteriormente, na Universidade de Princeton como bibliotecário da área de Clássicos, Estudos Helênicos e Linguística?

Fui contratado pela biblioteca da Universidade de Notre Dame em 1998, para me tornar o primeiro bibliotecário de Estudos Bizantinos. A Notre Dame tinha recentemente comprado a famosa biblioteca pessoal do bizantinista Milton Anastos, com cerca de 40 mil volumes, e precisavam de um bibliotecário para integrar essa coleção ao acervo deles. Tornei-me um bizantinista da noite para o dia, e logo passei a me familiarizar com a bibliografia da área de estudos bizantinos. Dez anos mais tarde, em 2009, surgiu uma vaga de emprego em Princeton. Embora eu estivesse feliz em Notre Dame e não procurasse outro cargo, inúmeros colegas imediatamente me contataram, pois os requisitos da vaga eram especificamente alinhados à minha experiência e e aos meus interesses. Certamente, não me arrependo dessa mudança.

Como é um dia na vida de um bizantinista e bibliotecário na Universidade de Princeton?

O cargo é frequentemente descrito como “seletor” e “interlocutor de área”. Isso quer dizer que sou o principal responsável por: 1) selecionar e organizar o material de pesquisa nas áreas designadas para mim, e 2) ensinar, auxiliar e solucionar problemas em nome dos usuários que acessam esse material. Além disso, estou envolvido em projetos relacionados à digitalização e divulgação. Também dedico tempo à atualização e ao desenvolvimento das minhas pesquisas acadêmicas.

Quais foram os maiores desafios que você enfrentou ao longo de sua carreira? Quais são os principais obstáculos que um aspirante a bizantinista — nos Estados Unidos e no mundo inteiro — deve esperar enfrentar se decidir seguir essa carreira?

Um bibliotecário acadêmico trabalha no contexto de uma grande organização de serviços, que envolvem muitos interesses concorrentes. Navegar por esse ambiente costuma ser muito desafiador. Como bizantinista, sempre tive sorte, pois trabalhei em universidades que apoiam a disciplina. Sempre tive colegas bizantinistas por perto. Algo que geralmente não ocorre com outras pessoas, pois o campo é muito pequeno e há poucas oportunidades profissionais. Um aspirante a bizantinista deve ser muito realista quanto às perspectivas de emprego, e deve pensar em adquirir experiências relacionadas à área que ampliem seu alcance.

Uma vez que você é um bibliotecário e bizantinista experiente, suponho que ao longo do semestre deva receber um grande número de estudantes e pesquisadores, certo? Em geral, quais são os principais conselhos que oferece àqueles que te procuram?

Frequentemente, presto consultoria a pós-graduandos e pesquisadores visitantes. Concentrei minha experiência nos próprios textos primários, de modo que, com frequência, auxilio a leitura e compreensão do grego bizantino, além de questões relacionadas a paleografia e manuscritos gregos.

Passando para a impressionante coleção de manuscritos bizantinos da Universidade de Princeton: quais são, em sua opinião, os destaques da coleção? E o que recomendaria a alguém que queira aproveitar ao máximo o que a Princeton University Library tem a oferecer?

Temos cerca de 50 manuscritos da Era Bizantina, incluindo vários Evangelhos repletos de iluminuras, além de outros comentários teológicos. Dignos de nota são um manuscrito do século 10, dos comentários de São João Crisóstomo ao Evangelho de Mateus, e um do século 11 da Escada da Divina Ascensão de João Clímaco. Digitalizamos muitos dos nossos manuscritos em alta resolução, incluindo esses que acabei de mencionar. 

Sala de estudos da Firestone. Crédito: Princeton University.

Você tem algum favorito? E, caso tenha, poderia nos contar um pouco mais sobre ele?

Meu favorito é um manuscrito raríssimo do século 13, do Organon de Aristóteles, repleto de diagramas e comentários nas margens. Organon é o nome medieval de uma coleção especificamente dos tratados lógicos de Aristóteles, primeiramente aqueles que desenvolvem sua compreensão do silogismo. Essas obras de Aristóteles despertaram grande interesse de estudiosos bizantinos, que as comentaram extensivamente. Nosso manuscrito é um exemplo notável, repleto de comentários e diagramas que demonstram as diferentes combinações silogísticas, diagramas que nunca aparecem nas edições modernas impressas dessas obras.

Deixando de lado os mais famosos, há algum manuscrito ou material menos conhecido no acervo que mereça mais atenção de pesquisadores e estudantes? 

Recentemente, adquirimos uma importante coleção de moedas e selos bizantinos, e estamos trabalhando em colaboração com a Dumbarton Oaks na descrição e catalogação dessa coleção.

Além dos manuscritos raros e preciosidades da biblioteca, gostaria de expandir a pergunta para autores e bibliografias em sentido mais amplo: há algum autor em particular ao qual os classicistas e bizantinistas — bem como estudantes e aqueles que desejam se tornar pesquisadores um dia — deveriam prestar mais atenção? 

Todos nós temos nossos autores favoritos, tanto primários quanto secundários. Acho que o polímata Michael Psellos, do século 11, ainda é uma figura subestimada na história intelectual do ocidente. Admiro autores como os irmãos Choniates e Eustathios de Thessaloniki, dos registros mais formais da prosa bizantina. Outro autor que merece mais atenção é João Ítalos. Quanto aos pesquisadores modernos que trabalham na área, imediatamente me vêm à mente Paul Magdalino e Anthony Kaldellis.

Além do acervo impressionante disponível na Universidade de Princeton, atualmente estudantes e pesquisadores do mundo inteiro podem acessar alguns manuscritos online, graças ao trabalho incrível realizado nos últimos anos. Poderia nos contar mais sobre seu trabalho relacionado à digitalização de manuscritos gregos? Quais são os principais desafios que esse trabalho envolve?

O banco de dados para informações sobre manuscritos gregos é o Pinakes, organizado na França. Há aproximadamente dez anos, iniciei um banco de dados complementar chamado Digitized Greek Manuscripts, que rastreia links relacionados apenas aos manuscritos totalmente digitalizados e de livre acesso. Esse banco de dados oferece algumas informações que o Pinakes não fornece, e foi projetado para que os usuários tenham acesso a imagens digitais o mais rápido possível. Esse banco de dados está associado a outro, Modern Language Translations of Byzantine Sources (traduções de fontes bizantinas em línguas modernas), cujo título, espero eu, seja autoexplicativo.

Que recursos você recomenda para estudantes e pesquisadores em geral?

Oxford Dictionary of Byzantium, embora publicado em 1991, ainda é extremamente útil. Mas, para meus interesses, não há recurso mais importante do que o Thesaurus Linguae Graecae (TLG), que é o banco de dados de todos os textos literários clássicos e de quase todos os bizantinos também. Trabalho com o TLG todos os dias.

Por fim, poderia compartilhar conosco informações a  respeito de algum projeto em que esteja trabalhando atualmente? Quais são seus interesses acadêmicos no momento?

Tenho lido amplamente textos literários dos séculos 10 a 13. Ainda que me esforce, meus interesses acabam sempre em questões filosóficas, geralmente relacionadas à incomensurabilidade, ao paradoxo e ao infinito. Além disso, estou cada vez mais interessado em questões estilísticas de prosa e na formação retórica que está por trás da produção desses textos.


No próximo texto da série, que será publicado em junho, exploraremos uma breve seleção de manuscritos raros que fazem parte do acervo da Universidade de Princeton.

Em julho, o terceiro e último texto abordará a realidade brasileira para explorar as perspectivas de preservação de manuscritos raros em território nacional.


Daniela Fernandes Cruz é mestranda em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP), bacharel em Letras pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Atualmente, desenvolve pesquisa sobre a metafísica e filosofia da ciência de Aristóteles com financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp).

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