As razões tautológicas da contingência

Tempo passado, tempo presente, história e existência e finitude. As razões tautológicas da contingência, por Augusto de Carvalho.

por Augusto de Carvalho

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Há uma plêiade nada negligenciável de jovens estudiosos brasileiros que se dedicam às relações teóricas entre a história e o tempo. De pontos de vista variados, esses pensadores e pensadoras evidenciam aquilo que é presumível como certo, a saber a precedência do passado, sua função causal, como anterior, mas também sua natureza fundacional, como razão da realidade. Eles respondem a um problema até então pouco explorado, qual seja a reavaliação da ideia de tempo passado fixada pela tradição (meta)física: a ideia de que o passado não possui nenhuma ou poucas qualidades especiais em relação à totalidade dos modos de ser do tempo, visto que o passado seria simplesmente o lugar ou a posição anterior à existência, uma de suas modulações, ao lado do presente—o centro gravitacional da ideia de tempo—, e do futuro—a instância das preocupações humanas.

A noção de que o tempo passado, não o presente, seria o átomo da existência está sugerida pelas investigações fenomenológicas de Breno Mendes, pelas análises existenciais de Walderez Ramalho, pelas proposições meta-históricas de Lorena Lopes, pela metafísica do tempo de Tomaz de Tassis, bem como na antropologia histórica de Guilherme Bianchi. Em comum, tais investigações têm o gênio de dispor ideias próprias sobre o significado do passado para a historicidade a partir de um minucioso exame dos respectivos objetos de estudo. Breno Mendes, ao lembrar que os fenômenos da história são naturalmente hermenêuticos, mostra que não há como a narratividade histórica prescindir da relação elementar com o passado. Walderez Ramalho demonstra que há uma diferença qualitativa entre distintas maneiras de se experimentar o tempo, mas que em todas elas—sejam cronológicas (segundo uma ordem) ou kairológicas (segundo um sentido)—o material mobilizado para configurar qualquer experiência temporal é sempre do passado. Lorena Lopes, por sua vez, ressalta que não há como escapar com a tradição, mesmo no confronto com a matéria passada transmitida, pois, seja qual for sua forma, é dali que algum significado pode surgir. Tomaz de Tassis, por meio de uma profunda análise filológica dos Yoga S?tra de Patañjali, apresenta a dialética inerente ao par temporalidade-eternidade como a manifestação das duas faces de um mesmo fenômeno, a passagem do tempo. Por fim, e não menos importante, Guilherme Bianchi destaca a diferença cultural—ou natural, dirá o perspectivismo—entre as maneiras de se conceitualizar fatores temporais. A partir de um diligente trabalho sobre perspectivas ameríndias acerca da temporalidade, o que poderia supor uma aparente falha conceitual para designar o tempo passado termina por expor modos heterogêneos ou não convencionais de se referir ao que passou, expandindo e não restringindo a ideia de passado como fundamento dos fenômenos temporais, tal como a história, ou do próprio tempo como fato antropológico.

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A posição antropológica inessencial da humanidade

O mais recente artigo de Guilherme Bianchi, “Não mais yanaconas modernos”: tempo e legitimação histórica em um experimento historiográfico Misak (Cauca – Colômbia) (2020), ensina que a palavra em misak para passado, merrap, significa tanto temporalmente passado quanto espacialmente à frente. Amparado por uma bibliografia especializada, Bianchi afirma que relacionar o tempo passado com o espaço à frente é uma conclusão mais ou menos lógica dos Misak, pois os vestígios do passado são visíveis e disponíveis ao conhecimento, logo, estando a nossa frente; diferentemente do futuro, que por suas qualidades incertas e seu conteúdo ainda por se revelar, por não oferecer vestígios concretos, mas somente probabilidades, estaria encoberto, inacessível à percepção, fora do campo de visão, logo, espacialmente atrás.

A paridade entre o tempo passado e o espaço à frente—algo inverso ao estabelecido pelo senso comum—é relativamente usual em línguas ameríndias, o que poderia sugerir uma marca singular relevante dessas culturas. A propósito, a busca por elementos linguísticos excêntricos em relação ao eixo ocidental(izado) entre grupos culturais não-ocidentais ou não-ocidentalizados, conquanto, não é atípica. Nesse sentido, um caso que se tornou muito conhecido, por contrariar a tese do dispositivo recursivo de Noam Chomsky, e que poderia abalar a convicção sobre a universalidade de determinadas características dos fenômenos do tempo, refere-se à língua e aos costumes Pirahã, povo amazônico que vive às margens do rio Maici. Em Limitações culturais da gramática e cognição Pirahã (2005), o linguista Daniel L. Everett demonstra que a língua Pirahã não possui marcadores temporais exatos, especialmente em relação à ação de um passado perfeito ou finalizado, capazes de indicar uma ação acabada. Segundo Everett, « não há nem mesmo uma única estória sobre o passado mais antigo contada por algum Pirahã, a não ser fragmentos de estórias tupis e portuguesas (nem sempre entendidas assim) », embora haja de forma imprecisa e restrita, « algumas estórias sobre o passado, mas somente sobre uma ou duas gerações anteriores ».

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Daniel L. Everett

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O olhar antropológico de Everett e Bianchi, que equipara língua e cultura—metodologia motivada pela hipótese Sapir-Whorf—, e cujo foco incide nas particularidades e diferenças entre uma e outra perspectiva, certamente possui o mérito de abalar as certezas sobre nossa relação intuitiva e normativa com a existência, ao enriquecer o conhecimento acerca das múltiplas formas de se nomear o real. As descobertas da antropologia aparam as arestas de nossa imagem do mundo e expandem nossa ideia sobre a forma da realidade. Não obstante, ainda que a trivialização das normas e das intuições sejam desafiadas pela antropologia, não se deve deduzir por isso que a descoberta da diferença entre os modos de visar a existência encerram problemas de natureza (meta)física, tal como o tempo. A ênfase no particular antropológico, por vezes, implica em um questionamento da legitimidade da (meta)física, já que « não há nenhum universal que não contenha uma existência que o negue », tal qual a perspicaz fórmula lacaniana. Não se resolve uma questão (meta)física, porém, por meio da descrição da pluralidade quase infinita das maneiras de sua manifestação, muito menos se pode inferir que em função de suas expressões plurais proceda a impossibilidade de uma investigação lógica a respeito do tema. Não há uma consequência natural de um ponto de vista sobre o outro. Afinal, apenas porque toda perspectiva possui uma origem e características particulares, isso não implica inevitavelmente que ela não possa ter, eventualmente, validade universal—haja vista a ciência moderna. O que pode se depreender da investigação de Everett, por exemplo, não resulta em nenhum obstáculo para o estudo (meta)físico do tempo, pois indiferentemente ao fato da língua Pirahã não operacionalizar linguisticamente algumas ferramentas de ordem temporal, isso não concorre para a conclusão de que o tempo deixa de ser um componente fundamental da existência Pirahã, ou mesmo humana em geral. Bem ao contrário, Everett nos fornece dados que indicam com precisão a incongruência, entre a antropologia e a ontologia ao mostrar que, apesar de não possuírem dispositivos linguísticos para falar sobre o passado em geral, os Pirahã, ainda assim, têm histórias sobre o passado, contadas a partir de outras ferramentas linguísticas disponíveis em sua língua.

Embora o ponto de vista antropológico tenha conseguido retificar a longa tradição ontológica sobre a essência humana—sobretudo em relação à noção europeia de homem—, antagonizar ontologia e antropologia pode não ser um procedimento adequado, a não ser que seja plausível creditar a Immanuel Kant a ideia definitiva de epistemologia, segundo a qual a percepção humana e sua autocompreensão são a única via para o conhecimento—por meio de uma «correlação» hipersubjetiva e fechada, tal qual descreve Quentin Meillassoux. Caso não se encontre nenhum prejuízo em abandonar a pergunta sobre a humanidade do humano, para colocar a questão nos termos de Martin Heidegger, ou que se acredite ser possível encontrar alguma resposta categórica à citada questão heideggeriana no assim chamado «exótico» mundo das descobertas da etnografia—à maneira que Odo Marquard, em Elogio ao Politeísmo (1979), ironicamente se refere ao recurso evasivo dos que fiam a solução dos dilemas modernos na fuga, ora nostálgica, ora orientalista, que invariavelmente confere ao estrangeiro recursos fantasiosos pelo simples fato de ser diferente do habitual—, há um alto preço a se pagar. Revogar a ontologia pela afirmação de uma suposta congruência com a antropologia é um nítido erro metodológico. Colocar a ontologia em suspeição por meio da antropologia justifica o equívoco de confinar todo pensamento em uma única vocação, a antropológica; o que de acordo com Markus Gabriel conduz à uma condição narcísica, pois que o humano se vê como o eixo singular da realidade.

A humanidade não precisa se contentar com uma «posição cosmológica»—nas palavras de Max Scheler—autocentrada, em que suas particularidades são a medida de tudo que se encontra ao seu redor, sejam elas características particulares de um europeu ou de um ameríndio. De encontro a certos corolários da antropologia filosófica, uma análise ontológica sobre fenômenos fundamentais, tais como os de ordem temporal, demonstra que a autocompreensão humana não está atada ao humanismo antropocêntrico que a conduziu e formulou.

Certamente, o humano é a medida antropológica da realidade. Sua excentricidade—duplamente tipificada: ele tem um corpo e é um corpo—, segundo Helmuth Plessner em As fases do orgânico e o homem (1928), é atestada pela objetificação das qualidades e habilidades humanas, processo autocompreensivo que define sua própria identidade, algo sensivelmente acelerado pelo método científico e o exame da natureza da consciência. Desse prisma, a sociologia do tempo de Niklas Luhmann e a metateoria do tempo histórico de Reinhart Koselleck destacam-se como dois de seus mais bem-sucedidos produtos. Mas a dimensão antropológica, mesmo após expandir a ideia de natureza que a ampara—através das indispensáveis contribuições de Plessner e, atualmente, da tendência perspectivista, de Tânia Stolze Lima e Eduardo Viveiros de Castro—, não se sobrepõe fatalmente à ontologia, posto que ela não é absoluta. O antropológico é por definição inacabado, sujeito à contingência e suas múltiplas formas, faz justiça à natureza aberta da existência. Caso contrário, o gênero humano estaria fadado a desconhecer tudo o que não é efeito de sua própria presença e trabalho, isto é, de sua autocompreensão. Embora a consciência seja ainda relativamente misteriosa à toda sorte de observação, mesmo para os recentes avanços da neurociência, sabemos que a mente humana definitivamente não é um cárcere, mas um avançado aparato que serve à amplificação de cada processo (auto)compreensivo. Não por acaso a humanidade é caracterizada antropologicamente pela criativa abertura-ao-mundo, diz Scheler; ou, conforme o jargão heideggeriano, o humano é um construtor-de-mundos.

Ainda que Plessner considere qualquer análise ontológica falaciosa, argumentando em Poder e Natureza Humana (1931) que a fenomenologia existencial tomaria a parte pelo todo por meio de um procedimento apriorístico sobre a ideia de humanidade, a antropologia filosófica possui mais em comum com a tradição heideggeriana, a qual nomeadamente condena, do que ela supõe. Heidegger, em sua ontologia fundamental, o foco exato de Ser e Tempo (1927), ao demonstrar a equivalência entre a ideia de ser e a ideia de tempo, não ata o conceito mais geral de tempo aos fatores antropológicos da realidade, muito menos parte de alguma ideia apriorística sobre o humano para tanto. Ao fixar o fato da morte no centro da discussão sobre a temporalidade, bem ao contrário, o filósofo apresenta uma limitação existencial que excede o humano, pois não é apenas a humanidade que participa de um início e um fim, mas sim tudo aquilo que simplesmente existe—de outros seres vivos ao universo físico. Quer dizer, no tratado de 1927, distingue-se o problema ontológico e metafísico do tempo, como um problema sobre os inícios e fins da existência. Além disso, Heidegger retira a noção mais abstrata de ser do mundo substantivo—na tradição filosófica, desde Aristóteles definido pelo seu predicado ou propriedade: o ser é sempre o singular ser de algo. Na ontologia fundamental, longe disso, o ser é pensado por si mesmo a partir do que Heidegger chamou de «diferença ontológica»—devidamente exposta em Da Essência do Fundamento, um pequeno tratado de 1929—, não mais como substantivo singular da existência de algo concreto, mas como verbo abstrato sempre transitivo, ou melhor, incompleto. Diferentemente daquilo que a lente antropológica de Plessner enxergou, Heidegger, dessa maneira, reforma a ontologia ao esclarecer que não há a priori existencial, dada a característica verbal e transitiva, isto é, inacabada e indeterminada de qualquer ideia sobre a existência. Essa reforma da ontologia é o resultado da equação improvável entre as ideias de ser e de tempo—a rigor, logicamente inconciliáveis—, cuja natureza reciproca seria a raiz de qualquer fundamento. A dissolução do caráter paradoxal da relação entre ser e tempo, de acordo com Hedwig Conrad-Martius, seria a chave-mestra para compreender a proposta heideggeriana. E a despeito dos breves excursos antropológicos presentes no trabalho de 1927, os quais servem para ilustrar os teoremas da ontologia fundamental ali examinados, por meios diferentes, Plessner e Heidegger terminam por demonstrar o mesmo: a inessencialidade do humano.

Por conseguinte, e voltando a atenção ao tema central deste ensaio, não se trata aqui de desqualificar uma antropologia do tempo, a qual produz contribuições incontestáveis para a compreensão da temporalidade humana. O trabalho indispensável de Johannes Fabian, Tempo e o Outro (1983), a título de exemplo, torou-se célebre porque expõe de maneira clara e através da pesquisa antropológica até que ponto o manuseio conceitual de fenômenos de ordem temporal pode ser politicamente orientado—ou gerar implicações políticas. Mas é preciso assumir que há fatores além do antropológico organizando e desorganizando a realidade—causas físicas e razões metafísicas muitas vezes independentes, bem como uma ontologia que ampara a existência de noções de natureza abstrata, tais como ser e tempo. O tempo, antes de um elemento antropológico ou transcendental, é um princípio, uma adversidade lógica da ontologia, simultaneamente causa e razão da existência.

Da posição antropológica, portanto, não decorre a inevitável impossibilidade ontológica do tempo, já que o humano, quem poderia constranger essa abordagem, não é sua única dimensão. Apesar da humanidade participar do tempo, o tempo não é do humano, mas excede sua existência. Os sentidos da antropologia, então, não invalidam a metafísica—a parcela cultural de toda ciência não contamina necessariamente suas conclusões mais gerais—, da mesma maneira que a ontologia não invalida a antropologia, ao passo que do humano não se deriva nenhuma essência. Mas porque a antropologia não descobre nenhuma essência, dado que o humano, seu parâmetro, não é de classe essencial, isso não significa que não haja uma essência do tempo, princípio que reconhecidamente não se enquadra na mencionada posição excêntrica da humanidade.

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Martin Heidegger

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A posição ontológica ambivalente do passado—o anterior e o posterior

Ao estudioso das dimensões temporais da realidade, seja qual for sua perspectiva—antropológica, sociológica, psicológica, ontológica, fenomenológica, biológica, geológica, cosmológica, etc.—, independentemente da polissemia que caracteriza o termo tempo, é notório que as teorias sobre a temporalidade, sejam elas de origem física ou metafísica, pouco questionaram sua arquitetura mais rudimentar: alega-se que tempo é o resultado, num agora, de uma relação entre um antes e um depois, ou tempo é uma ordem relacional estática entre passado (o anterior), presente (o agora) e futuro (o depois); referências imediatas a formulações da ontologia Clássica, que se encontram nomeadamente na Física e na Metafísica de Aristóteles.

É claro que muito foi dito sobre fenômenos de ordem temporal antes de Aristóteles e fora do ambiente filosófico Clássico, mas é Aristóteles o primeiro a formalizar uma ontologia sistemática do tempo, bem como a ideia de tempo da tradição ontológica—que resulta em boa parte nas noções de tempo modernas—tem uma origem particularmente aristotélica, segundo a qual tempo é o número de um movimento segundo um antes e um depois, sendo o agora aquilo que unifica e separa o tempo, cujo axioma lógico se concentra na fórmula antes-depois. O movimento em questão é simultaneamente cosmológico—evidentemente físico—e psicológico—intuído pela mente ou consciência. Essas propriedades do tempo se solidificaram e atravessaram toda a tradição filosófica. Elas sobrevivem ainda hoje enquanto norma da nossa autocompreensão temporal, e mesmo de alguns pressupostos essenciais que amparam a física e a metafísica do tempo cientificamente orientadas—o que contempla os notórios avanços das ciências físicas, da relatividade de Albert Einstein às mais recentes teorias sobre a natureza do tempo de Julian Barbour e Lee Smolin, por exemplo. Nesse sentido, tanto para a literatura científica e filosófica dedicada ao problema do tempo quanto para a nossa autocompreensão temporal ordinária, o passado permanece ocupando a posição anterior à realidade, uma vez que a partir de certa noção ordenada do significado do tempo, o que passou é sempre algo anterior, grosso modo, foi, pois não é mais.

A despeito da concepção filosófico-científica, e precisamente do ponto de vista antropológico, livre de seu solo antropocêntrico, como no caso dos Misak inicialmente apresentado, é razoável declarar que a imagem do passado reduzida ao seu sentido anterior revela somente um de seus aspectos. Uma breve reavaliação antropológico-linguística sugere à lógica e à (meta)física do tempo que a dimensão do passado não se limita ao que o modelo aristotélico determina, mas é paradoxalmente encontrada, outrossim, em sua posteridade.

No interior dos fundamentos linguísticos da tradição europeia, tanto na língua grega antiga como na latina, registra-se o paradoxo anunciado: o passado, simultaneamente, como o anterior e o posterior, espacialmente atrás e à frente. No grego, o advérbio e a preposição ????? [páros] remetem tanto à expressão de tempo passado—ou ao que passou—, quanto também, quando indica lugar, ao antes ou ao depois, prima facie, de modo contraditório. No latim, præt?r??, indica tanto o tempo passado, præteritum tempus, ação de passar, prætereo, ou o passado, præterita, como também, concernente a lugar, significa diante ou à frente, bem como o antes, præt?r ou ante—variações do advérbio e preposição præ, de modo novamente paradoxal. Isto é, as línguas grega e latina, as quais organizam uma parte expressiva das raízes linguísticas europeias, permitem pensar o conceito de passado não somente como o anterior, mas também como o posterior.

O hebraico—relevante do ponto de vista das dinâmicas culturais cristãs e sua expansão—é mais uma testemunha da dimensão ou posição ambivalente do passado. Para a língua hebraica antiga, o nome masculino ?????? [qedem], além de significar a abstração temporal passado, tempo anterior, tempo originário, denota o lugar espacial à frente. Qedem possui um sentido primário espacial em vários registros da antiguidade meso-oriental, pois para o mundo semita antigo, o oriente ou leste—direção do nascer do sol, aquele que orienta a humanidade em suas jornadas—, igualmente qedem, equivale à acepção espacial à frente, da mesma maneira que ocidente ou oeste equivalem a atrás; além de sul ser a direita e o norte a esquerda. Amós Oz e sua filha, Fania Oz-Salzberger, em Os Judeus e as Palavras (2012), ressaltam que graças ao Rabi Adin Steinsaltz—importante tradutor e estudioso do Talmud—sabemos que, ainda hoje, o orador judeu está sempre com as costas voltadas ao futuro, e com o tempo passado diante de si. Uma imagem subversiva do tempo também presente na língua árabe, cuja raiz proto-semita q-d-m, que dá origem a diversas expressões ambíguas de um ângulo espaço-temporal, é compartilhada com o hebraico. Em árabe, o tempo passado [qad?m] simultaneamente procede da e precede a existência.

A indeterminação e inconsistência terminológica sobre o passado, por conseguinte, não se restringe às línguas antigas e seus sentidos arcaicos, os quais, todavia, iluminam aspectos da ideia de tempo escondidos sob a poeira da sobrenomeação, principalmente sua dimensão posterior. Poderíamos ainda elencar, ao lado do hebraico e do árabe, outras línguas modernas tais como o inglês, e mesmo duas línguas asiáticas, o japonês e o chinês—representativas de panoramas culturais radicalmente distintos—, visto que as três mantêm alguma ambiguidade espaço-temporal do passado em palavras hodiernas. O termo inglês before, a título de exemplo, comporta tanto o significado de temporalmente anterior a algo como espacialmente posterior a algo, à frente, diante. De modo similar, o caractere ?—em japonês, mae, em mandarim, qián—contém os mesmos significados espaço-temporais ambíguos de before.

Em síntese, essa curta inspeção linguística não apenas apresenta maneiras claramente plurais de autocompreensão da temporalidade humana, mas também provoca o pensamento a reavaliar, dos pontos de vista tanto analítico quanto sintético, a ideia de que o passado não representa apenas a anterioridade—termo que, aliás, já carrega uma ambiguidade em sua própria estrutura, no afixo ante, prefixo que se refere ao anterior, mas que, como preposição, especifica o ato de estar à frente ou diante. A posição do passado, mais do que ambígua, é claramente ambivalente. As dimensões primárias do passado são mutuamente excludentes, são incertas e contraditórias assim como os fenômenos gerais do tempo se constituem. Inconsistência que reflete, deste modo, a própria extensão total do tempo segundo a ontologia, como o anterior e também o posterior.

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Da essência ambivalente do passado—uma ontologia da contingência

Distinguir de maneira antropológica as diversas formas de nomear o tempo é um exercício ético de humanização do excêntrico, daquilo que existe fora do meu eixo existencial—humanização do próprio conceito de humano. Além do mais, a antropologia auxilia a tarefa (meta)física de acessar as características lógicas dos fenômenos de ordem temporal. O resultado imediato, neste caso, é assimilar a dupla dimensão ontológica do tempo passado como ao mesmo tempo o anterior e o posterior. A afirmação de que existimos sempre no interior do tempo denota, assim, que habitamos a existência sempre diante de um tempo preciso, o passado. Assim como temos e somos um corpo, temos e somos passados. E para compreender a posição antinômica da passagem do tempo, que possuímos e nos possui, não seria suficiente exibir as formas plurais de sua compreensão. É preciso avaliar o sentido de sua essência ambivalente.

Tendo em vista a ambivalência do passado, é plausível afirmar que a fórmula elementar do tempo, a citada síntese antes-depois, pode significar, então, passado-passado. Essa conclusão é intuitiva, bastando o exame fenomenológico sobre o problema. Esse ponto de vista deriva de duas conclusões lógicas sobre o tempo: o tempo pode se direcionar rumo ao passado, como a cadeia futuro-presente-passado—o que torna o passado o [1] depois, o futuro do presente; concomitantemente, o tempo pode se direcionar rumo ao futuro, como a cadeia passado-presente-futuro—o que torna o passado o [2] antes, a origem do presente. O passado, assim, é explicado como o tempo do qual se origina a existência—pode-se alegar que tudo vem de algum passado—, mas também como o resultado final da experiência temporal—o que existe fatalmente se tornará futuramente passado. Ou seja, de forma análoga à análise antropológica sobre a mesma questão, simultaneamente, o passado é a origem [2] e o fim [1] da direção causal e dos muitos sentidos do tempo—nem tudo que precede é uma causa, claro, mas toda causa precede. O antes-depois aristotélico, até então representado também como passado-futuro, ou futuro-passado, adquire uma nova forma lógica, qual seja passado-passado.

A ambiguidade virtuosa do passado, algo semelhante à ambiguidade virtuosa das metáforas poéticas destacadas por William Empson em Sete Tipos de Ambiguidade (1930), não corrompe sua coerência. Ao contrário, da virtude ambivalente e incerta do passado, compreende-se a sua essência, a sua natureza probabilística e múltipla, porque sempre há maneiras diversas de se interpretá-lo e vive-lo, em razão dessa dimensão conflituosa, que expressa a lógica esquizofrênica, desagregadora, mas concomitantemente ordenada do tempo: passado-passado. Ou melhor, a ambivalência do passado, que é antes e também depois, é o princípio que anima a ausência de um sentido único para o tempo, pois há, na verdade, variados sentidos à disposição, passados interpolando-se—ora condiciona a existência, ora é condicionado pela sua própria contingência; ainda assim, mesmo que de modo múltiplo, sempre orientando continuamente os seus sentidos ou o significado do contingente, de passado a passado.

Ao encontro da fórmula paradoxal passado-passado, por um lado, as filosofias que se dedicaram à percepção e experiência do tempo se aproximaram em diversas ocasiões de uma definição intuitiva da temporalidade humana, a qual enfatizou a conservação ou retenção do passado—de acordo com Henri Bergson e Edmund Husserl, respectivamente—como um fenômeno psicológico primordial da consciência, distinguindo precisamente o passado como o modo principal da passagem do tempo. Por outro lado, as ciências físicas também estabeleceram a passagem do tempo como um resultado da qualidade entrópica do universo—rigorosamente observada e provada desde os estudos de Ludwig Boltzmann. Conquanto e a rigor, a Física não contradiz a conclusão sobre a forma metafísica do tempo, definida como passado-passado. Indiferentemente às causas físicas que demonstram o processo de funcionamento mais básico de todo estado material, cuja natureza instável invariavelmente procura se dispersar sempre numa única direção temporal, rumo a macro ou micro estados com menor concentração de energia, da entropia e da consequente obediência à lei de conservação de energia procede um fato: a passagem ou a transitoriedade como uma norma universal. Em outras palavras, embora uma ala importante de físicos e filósofos reduzam a realidade do passado às condições relativas e intuitivas da psicologia humana, a existência do passado e seu efeito metafísico podem ser depreendidos não somente da indução psicológica sobre as variações antropológicas e linguísticas acerca do tempo, mas são também assegurados pela dedução física sobre a natureza entrópica do universo, na medida em que o produto imediato da entropia é o fenômeno evidente da passagem, causa e razão da existência do passado. Enfim, formaliza-se uma ontologia da contingência apesar da antropologia, de maneira similar a proposta realista do já mencionado Meillassoux, em Após a finitude (2006).

A contingência é o fenômeno que perturba a organização (meta)física da realidade. Não obstante, como o diz A. N. Whitehead e Hilda Oakeley, é uma tarefa da metafísica esclarecer o seu significado, sobretudo os porquês de sua realidade não impedir a perseverança das formas organizadas do real. De Aristóteles a Einstein, passando por Agostinho e Husserl, tentou-se dar consistência ao que, por definição, não seria consistente: a contingência do tempo. Não por acaso as tentativas mais coerentes de se organizar uma essência do tempo terminaram por negá-la—como evidencia o famoso texto de J. E. McTaggart, sobre a irrealidade do tempo. Mas por que não assumir que é a inconsistência ou a contradição a exata essência da contingência do tempo? O que aparenta falta de lógica, longe disso, pode conter um princípio a ser considerado.

O abismo absoluto do contingente não se restringe à percepção humana, mas é um dado ontológico, uma vez que possui uma fisionomia existencial, uma imagem limitadora da razão, a qual estabelece uma identidade, a saber passado é igual a passado. Isso explicaria de um ponto de vista especulativo porque há instabilidade e estabilidade, dispersão e unidade, porque há mudança e permanência, porque a passagem persiste como um evento infinito, mesmo que sua imagem seja visível, tenha uma forma, seja finita. Se o tempo é antes de mais nada o motivo da contingência, quer dizer, dentre outras coisas, a ordem da desordem, essa fundamental ausência de ordem de suas razões espelha a tautologia de seu princípio: passado-passado. Essa tautologia—passado é passado—não significa aqui mera redundância, conforme poderia pressupor uma leitura apressada; ao contrário, o tautológico representa o momento em que se alcança determinada identidade dentro de uma ordem lógica. No domínio ontológico, portanto, passado-passado seria a essência ou identidade da contingência; uma expressão consistente do tempo.

A análise ontológica do tempo passado, finalmente, oferece uma resposta à pergunta pela identidade ou essência da contingência. Muito além da causa precedente, o passado seria igualmente a razão primária da qual procede o aspecto contingente da realidade, pois o tempo passa e permanece igualmente passando porque sempre o passado se torna novamente passado. Uma imagem tautológica que não retrata nenhuma inconsistência ou vício da razão, mas significa uma consequência lógica, isto é, um teorema da ontologia fundamental: dado que o passado é o antes e o depois, o que precede e mesmo assim sucede, o início e o fim do tempo, as margens temporais da realidade, essa posição incerta e ambivalente constitui a unidade da passagem, da contingência como um princípio metafísico limitador, uma condição ontológica adversa a ser observada por toda (meta)física do tempo.

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Crianças Misak (Wikimedia Commons)

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