por Celina Alcântara Brod
David Hume foi um filósofo cujas reflexões acerca dos assuntos humanos estavam voltadas mais para como as coisas são ao invés de o que elas são: como produzimos conhecimento sobre os fatos? Como nós, homens passionais e racionais, interagimos? Como formamos sentimentos morais? Como a política acontece? Diferente de: o que é a moral? O que é a política? O que é o conhecimento? As respostas para a segunda classe de perguntas ocorrem apenas obliquamente, como um subproduto das primeiras, mas não estão nelas a bússola norteadora da filosofia experimental do iluminista escocês.
O que muda junto com as perguntas? Numa investigação em que o como é o ângulo adotado pelo filósofo, as inferências resultantes tendem a manter-se nos limites da experiência, haverá mais observação do que elucubração, ou seja, o filósofo que indaga como algo é tende a ser menos ambicioso e mais resignado do que os pensadores que buscam essencialmente dizer o que as coisas são. Debruçado nesta perspectiva genuinamente curiosa, Hume afirma que “o homem é uma espécie inventiva”. Somos animais que constroem artifícios, esquemas de signos, esquemas de valores e de regras, que lentamente e gradualmente adquirem estabilidade e produzem ordens de interações complexas, que vão desde à moeda até a linguagem.
Através da linguagem afirmamos e reafirmamos tais esquemas uns aos outros, atribuindo a nós mesmos e a terceiros expectativas quanto aos efeitos destas engenhocas abstratas, sendo a justiça a mais fundamental e necessária delas. A justiça é uma virtude artificial, pois o bem resultante depende da existência da convenção, diferente das virtudes naturais que se manifestam sem qualquer artifício entre indivíduos. Para que haja ordem social é preciso que haja primeiramente princípios estáveis para lidar com a propriedade: um acordo cujas regras garantem a estabilidade de nossas posses, transferências com consentimento e o cumprimento de promessas. É a partir da sedimentação desta invenção social que palavras como obrigação, direito e propriedade possuem algum sentido semântico.
Quando o assunto é o estabelecimento das sociedades, com suas regras, deveres e autoridade, o hábito junto aos benefícios mútuos que resultam das normas é o que explica boa parte da sua perpetuação. Em Hume, a palavra que resume o processo de nossas convenções é aquiescência, não escolha. Não escolhemos praticamente nenhuma de nossas ordens sociais mais habituais, nem há qualquer consentimento ou pacto assinado. Se existe qualquer contrato, este acontece de forma lenta e gradual.
Este olhar empírico sob a ação humana despojou a razão de um suposto protagonismo. Hume salientou a força da experiência, da observação e dos princípios associativos da imaginação na criação de nossas ferramentas de convívio. Nossa espécie consegue gerar normas imparciais de conduta e convenções que estabelecem nossas prioridades e os interesses vitais que temos em comum. Isto é, aderimos a tais regras como “dois homens que puxam os remos de um barco o fazem-no por acordo ou convenção, embora não tenham nunca trocado promessas a respeito.” O auto interesse é, portanto, responsável pela produção das regras de justiça.
A justiça surge como “um remédio para o que há de irregular e inconveniente nos afetos.” Mas qual inconveniência? Nossa forte tendência em privilegiar nossos círculos estreitos, ou seja, “os homens naturalmente amam seus filhos mais que seus sobrinhos, seus sobrinhos mais que seus primos, seus primos mais que estranhos “, observou Hume. É em função desta afeição desigual de nossa estrutura psicológica – uma simpatia parcial, que produz virtudes naturais bem como contrariedade de paixões- e a escassez de bens, que a justiça se faz necessária. Inventamos regras que restringem nosso auto-interesse impetuoso e que conseguem estender nossa simpatia para além de nossos afetos contíguos. O costume nos torna sensíveis às suas vantagens e com isso apreciamos os artifícios que conseguem preservar os bens de nossos círculos estreitos ao mesmo tempo que preservam os bens daqueles que nos são estranhos.
A teoria das convenções de Hume é extremamente original, pois nela natural e artificial interseccionam a vida social e a articulação de nossa imparcialidade compartilhada; uma amálgama que proporciona mutualismo, coordenação, manejo de conflitos, distribuição de autoridade e liberdade. Um esquema que não seria tão eficaz na produção de ordenação e previsibilidade se tivesse sido planejado ou deliberado.
Se Hobbes enxergava a possibilidade da ordem “numa só e mesma pessoa, realizada por um pacto de cada homem com todos os homens “, em que a vontade de muitos seria submetida a vontade de um, Hume em contrapartida, mostrava que ações individuais e auto interessadas geram cooperação e coordenação rumo às vantagens-mútuas. O filósofo das paixões afirma que sociedades simples e pequenas podem funcionar sem a existência de um governo, de modo que todos executam a observância de regras e códigos de convívio.
A linguagem transforma a intenção de integralizar as simpatias em acordos, em que não mais é preciso que homens efetuem a violência, a avidez, a tirania ou a escravidão. O instinto da parcialidade ganha com o estabelecimento destes artifícios outra direção, em que a troca, o consentimento e a negociação garantem a paz promovida pelo entendimento coletivo dos benefícios de conservar tais convenções. Essa nova simpatia ampliada, a qual podemos chamar de justiça, não é impressa nos homens a partir de promessas, pactos, contratos ou posições originais rawlsianas, mas através de um longo processo. Colocando de forma mais simples: uma engenhoca milagrosa apreendida e mantida por cadeias transgeracionais de entendimento causal que produzem ordens complexas.
Para Hume, o Governo executa a justiça e possibilita a observância das regras em sociedades numerosas, tal utilidade torna-se seu próprio fundamento, consequentemente obediência e autoridade não são cláusulas condicionais de uma promessa e sim ligações políticas, fruto do tempo e particularidade das relações. O governo deve, portanto, garantir tal convenção fundamental. Neste sentido, é possível afirmar que a legitimidade da autoridade política se baseia na expectativa daqueles que a obedecem, isto é, a proteção contra a violência, contra o uso arbitrário do poder e a garantia da fidelidade das promessas.
Aprendemos com Hume que a vasta complexidade das interações sociais, a linguagem, nossas promessas, acordos bem como nossas trocas comerciais são estruturas interativas que não poderiam estar encapsuladas na mente de algum pensador fantástico, muito menos terem sido implementadas por pessoas com más ou boas intenções. Há que se ter maturidade para compreender que aquilo que observamos não é diferente do que somos. A ordem que se produz, se produz no caos e permanece ainda caos latente, uma vez que o homem é em si conflito de paixões. Embora tenhamos a capacidade de formar conhecimento sobre os fatos e ordená-los, somos no fundo, como todo e qualquer outro animal, jogado ao mundo sem poder controlar nosso destino. Somos muito mais guiados por juízos pré-reflexivos e hábito do que os racionalistas ou engenheiros sociais gostariam.
Uma perspectiva mais cética, quanto aos alcances da razão, entende que nossa racionalidade opera dentro dos limites de nossa estrutura passional. Nossas faculdades cognitivas são eficientes na forma como relacionam as ideias, extraindo princípios gerais e probabilidades, mas ainda sim somos infinitamente ignorantes e movidos por paixões. Não podemos esquecer que o mesmo pensamento que relaciona ideias para encontrar fórmulas químicas que venham a curar doenças também produz bomba atômica, campos de concentração e facções políticas corruptas. É neste sentido que Hume afirma que “não é contrário a razão eu preferir a destruição do mundo inteiro a um arranhão em meu dedo”. Em outras palavras, as ações humanas são indissociáveis de motivos viciosos ou virtuosos, o conflito não se dá entre razão e paixão, mas entre paixões. Hume provavelmente diria que, o que faltava aos genocidas do século XX, não era racionalidade ou a capacidade de demonstrar se dois mais dois igual a quatro é falso ou verdadeiro, mas paixões calmas, ou melhor, virtudes produzidas por um ponto de vista geral e empático.
É importante ressaltar que as convenções não são estáticas, elas ganham modificações ao longo do tempo a partir de novas observações e interações, assim como nosso conhecimento a respeito de fatos no mundo. As únicas convenções que para Hume irão invariavelmente resistir aos testes dos tempos, por serem fundamentais, são as convenções que possibilitam que a própria sociedade subsista, a saber, uma justiça que garanta a paz para que os indivíduos interajam livremente em suas atividades sociais e econômicas.
Encarar tais premissas significa compreender que qualquer teoria ou ideia que busque mudar drasticamente a maneira dos homens são, além de prepotentes e provavelmente censuradoras, um capricho; uma utopia moral ressentida. Contudo, isto não significa que não podemos variar e refinar nossa situação, é possível e desejável pensar em instituições e esquemas de signos inteligentes o suficiente que nos protejam de nós mesmos; que nos previnam de patifes e de burocratas megalomaníacos. Estamos falando de leis que limitem o uso do poder e sua intromissão nas atividades humanas, afinal, como escreveu Hume: “é impossível para as artes e as ciências surgir primeiramente em qualquer povo a menos que este goze das vantagens de um governo livre.”
Precaução e cautela quando a disposição de poder nunca é demais, basta lembrar que de tempos em tempos, surge no palco da História, homens que não se conformam com a diversidade dos fins humanos, e abusam de suas políticas de fé que, segundo Michael Oakeshott, se depender delas “a sociedade se tornará um panopticon; e seus governantes serão panoverseers”. Diante da precariedade e limitações humana, Hume alerta-nos que deveríamos, ao pensar em instituições políticas, supor todo homem um patife; quem iria aqui e agora discordar de Hume e colocar sua mão no fogo por aqueles que nos governam?