por Filipe Campello, em parceria com a ANPOF
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Na polêmica que se sucedeu ao entusiasmo de Caetano Veloso pelo filósofo italiano Domenico Losurdo, me surpreendeu a quase irrelevância da filosofia. Prepararam uma festa de aniversário, e só esqueceram de convidar a aniversariante. Mas nisso que se chamou de stalinismo odara, essa ausência é sintomática.
Jones Manoel, que fez Caetano despertar de seu sono dogmático, é um historiador que encontrou em Losurdo uma espécie da prova que procurava para fundamentar sua crítica ao liberalismo. O tipo de argumento refere-se ao plano de fatos históricos. Não por acaso, Losurdo dá o título de Contra-história do liberalismo ao seu livro que ficou mais em evidência nesse debate.
Acontece que nem a história nem o que dela resulta traz por si só si uma verdade moral inconteste. E é aí que entra a filosofia, que traz para a análise histórica ao menos duas contribuições.
A primeira delas — no que se chama propriamente de filosofia da história — consiste em mostrar que a própria construção da história não é neutra nem do ponto de vista epistemológico nem axiológico — ou seja, o passado não é um fato dado objetivamente, mas depende da narrativa que oferecemos a ele. Enquanto espelha os critérios que hoje utilizamos para narrar o passado, ele acaba dizendo muito do presente.
A reconstrução da história é, então, objeto de disputa, enquanto ela já contém intrinsecamente um valor. Métodos como genealogia, arqueologia ou reconstrução são exemplos de como a filosofia olha para a história. Ao assumir que o presente é resultado de um amplo e complexo processo histórico que envolve disputas — inclusive o que nelas cumprem os interesses em jogo —, a filosofia sai da ingenuidade de tomar a história como um teatro sem atores.
É nesse sentido que é importante se contar uma contra-história, outras histórias, ouvir novas e novas narrativas, não somente para poder confrontar a maneira como nós hoje nos referimos ao passado, como também para entender melhor como o passado continua atuando e performando no presente. A filosofia deve então ouvir e trazer para si cada vez mais novos relatos, sob o risco de se apegar a noções arrogantes de universalidade que dizem muito sobre seu provincianismo.
Mas narrativas históricas não trazem em si os critérios que permitem confrontá-las moralmente. Não basta apenas comparar fatos históricos, tentando encontrar na história cases de sucesso. Tomar como exitoso ou não determinados acontecimentos depende do que se chama de critérios normativos. Nisto consiste uma segunda contribuição da filosofia à história: argumentos filosóficos referem-se a este âmbito normativo — ou seja, que não apenas descrevem fatos históricos (ou o que o mundo supostamente é), senão refletem sobre como ele deveria ser. Concepções do que é o justo, quais modelos de Estado ou de instituições políticas são preferíveis, quais ações são moralmente defensáveis, etc. — tudo isso não está dado historicamente, mas requer um tipo de embate constante e de justificativas que extrapolam a própria análise histórica. Parafraseando Kant: história sem filosofia é cega, filosofia sem história é vazia.
É isso que faz por exemplo Hannah Arendt, ao defender que o potencial transformador da revolução francesa foi esvaziado quando a ação política dos revolucionários é substituída pela promessa de uma marcha irrefreável da história. Para Arendt, desprender-se das ilusões desse necessitarismo de traços metafísicos significaria levar a sério o jogo de interesses que escrevem a história.
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Mas a própria Arendt se viu vítima de sua posição, passando a ser interpretada como principal culpada desse imbróglio da equiparação entre nazismo e stalinismo. O que se esquece é que a análise de Arendt não é histórica, mas filosófica. Como ela interpreta as revoluções e o totalitarismo não deve ser lido como lemos livros de história, mas de filosofia. Se há algum viés questionável em sua análise, ele precisa ser confrontado igualmente a partir de argumentos filosóficos (ou seja, normativos), e não apenas históricos.
A reflexão filosófica não pode se resumir a uma análise de conjuntura. Refutar uma teoria apenas com base em fatos históricos significa incorrer em uma falácia genealógica. E é essa a confusão que, ao meu ver, tem sido feita ao se comparar liberalismo e socialismo, encapsulando argumentos normativos em fatos históricos. Se se quer criticar o liberalismo, ao invés de reduzi-lo à história das democracias ocidentais, a questão deve ser, antes: qual o problema das ideias liberais?
Esse é o tipo de discussão que me parece, de fato, filosoficamente produtivo. É quando por exemplo nos perguntamos o que levou Adam Smith a escrever uma teoria dos sentimentos morais como análise prévia ao seu projeto de economia política em A riqueza das nações: Essa ligação entre a teoria moral e a teoria econômica — o assim chamado “Adam Smith-Problem” — é filosoficamente instigante porque reflete sobre questões normativas relacionadas ao liberalismo econômico, em que conceitos como simpatia e solidariedade eram vistos por Smith como pressupostos morais do livre mercado.
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É esse mesmo tipo de questionamento que deve ser feito em relação ao colonialismo e ao racismo: eles são contradições internas ou desdobramentos de ideias liberais? Tenho defendido que eles são efeitos colaterais decorrentes de um pressuposto de racionalidade e universalidade herdadas do iluminismo europeu. Ao se colocar numa postura de superioridade a partir de determinados critérios de racionalidade, boa parte da filosofia europeia, apesar de sua defesa de noções como justiça, liberdade e igualdade, acabou por dar vazão a uma postura colonialista pronta a levar a luz da razão a todos os povos, quando não torná-los escravos. Esse equivalente no plano político pode até ser visto como uma espécie de instrumentalização daquelas ideias, mas que, de um modo ou de outro, encontrou nelas um tipo de legitimação para suas políticas expansionistas e imperialistas. Chega a ser estarrecedor — é preciso reconhecer —, que países europeus, no alto de seu esclarecimento racional, se reúnam em 1884 em Berlim para decidir como vão partilhar a África.
A tradição liberal, como outras, foi refém dos paradoxos de suas próprias ideias. Mas ideias só podem ser refutadas por novas ideias. É ingênuo culpar Adam Smith pelo fato de os Estados Unidos terem entrado em guerra com o Vietnã ou por ter invadido o Iraque, assim como não faz sentido acusar Marx pelo stalinismo.
Essa mesma crítica interna vale para posições mais à esquerda, com o risco de se apegar ao fascínio da superioridade moral, que vê a si próprios como arautos salvacionistas da humanidade. Pelo contrário, ao assumir a contingência da história, com todos os seus interesses políticos e disputas de poder, eu prefiro ficar com o benefício da dúvida: Se respostas não estão dadas, a régua mais confiável é a do próprio conflito inerente ao pluralismo democrático.
Precisamos abandonar uma visão essencialista da história, de pretender que o passado traga em si respostas para o futuro, e assim poder encontrar na filosofia a possibilidade de abrir novas perspectivas e novos vocabulários para alargamento de nossa imaginação política.
Apesar de suas contradições, é isso que vejo como estimulante no que chamo de aposta liberal: assumir de maneira incontornável o conflito próprio da pluralidade de visões de mundo. Esse é um tipo de postura que inclusive permite a crítica interna aos efeitos colaterais das ideais liberais sem precisar recorrer às mesmas imagens do passado. É o que, aliás, faz o próprio Marx, quando escreve no 18 Brumário que “a revolução social do século XIX não pode tirar sua poesia do passado, e sim do futuro . . . Ela deve deixar que os mortos enterrem seus mortos”. Para conseguir lidar, de fato, com a contingência da história, continuamos precisando, no plano teórico, da filosofia, e no plano prático, do conflito político.
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