por Denis Coitinho
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Acompanhando com apreensão as manifestações anti-democráticas ocorridas neste sete de setembro, penso que refletir sobre as nossas discordâncias morais e políticas pode nos ajudar a compreender melhor o escopo do conhecimento moral.
Iniciamos com o reconhecimento da complexidade da normatividade, uma vez que cotidianamente usamos crite?rios normativos diferentes para situac?o?es diversas. Por exemplo, quando alguém diz “Voce? deveria ser solidário”, necessitamos contar com o comprometimento do agente com um certo tipo de vida moral virtuosa para a obrigac?a?o, uma vez que na?o haveria um direito correspondente ao auxílio que pudesse ser universalmente exigido. Por outro lado, quando alguém diz “Você deve ser tolerante e civilizado”, podemos compreender essa exigência como uma obrigac?ão perfeita, que é externa a? motivac?a?o do sujeito.
E isso parece nos conduzir a uma importante distinção entre moralidade privada e pública. Quando julgamos um caso em um a?mbito de moralidade privada, como para saber se as pessoas devem ser leais aos seus amigos, na?o apelamos usualmente para um princi?pio universal objetivo, como o da reciprocidade, e parece ser aceita?vel socialmente as diferentes respostas que os indivi?duos dara?o a esse tipo de dilema. Por exemplo, alguns serão leais, mas os desleais na?o sera?o vistos pela comunidade como tendo um grave de?ficit moral por esse comportamento. Entretanto, quando julgamos um caso de moralidade pu?blica, como para saber se e? justo ou na?o a tortura vemos como problema?ticas as razo?es puramente particulares que poderiam ser apresentadas para subsidiar uma certa decisa?o, e a reivindicac?a?o pelo uso de princi?pios, como os de liberdade, igualdade e dignidade humana, se constituí como uma soluc?a?o habitual, implicando que os agentes que torturarem ou defenderem a tortura sera?o merecedores de forte reprovac?a?o.
Mas o que isso parece mostrar? Que o problema na?o se resumiria à exequibilidade das pessoas usarem ou na?o crite?rios normativos para o julgamento de uma ac?a?o, mas, antes, que a dificuldade pode estar em querer exigir apenas um crite?rio ou conjunto de crite?rios semelhantes para situac?o?es diferenciadas, tais como a maximizac?a?o do bem-estar, deveres universais ou mesmo virtudes morais. Exemplifico o que estou dizendo. A intemperanc?a pode sofrer algum tipo de censura, mas que na?o teria a mesma intensidade considerando um caso de corrupc?a?o no sistema pu?blico de sau?de. De forma similar, a infidelidade e? um trac?o comportamental reprovável, podendo gerar ressentimento, mas um caso de incivilidade no tra?nsito que causa dano e?, de maneira mais forte, um tipo de padra?o comportamental que e? rejeitado drasticamente pela comunidade, e que se expressa tanto na forma de censura moral como na forma de punic?a?o legal.
Dito isso, creio que uma das questo?es centrais que devemos enfrentar para tratar deste urgente problema da complexidade normativa seja esclarecer inicialmente o que e? e como se daria o conhecimento moral. Um dos principais erros que se pode cometer ao se interpretar o conhecimento no campo da moralidade e? querer toma?-lo como um conhecimento de tudo ou nada, isto e?, ou se saberia infalivelmente o que e? certo e errado, bom e mau, justo e injusto em cada situac?a?o cotidiana ou se teria que decidir o que fazer de forma puramente subjetiva, sem poder contar com nenhum crite?rio normativo objetivamente garantido para auxiliar nas deliberac?o?es morais cotidianas. Creio que essa maneira de abordar a questa?o encobre a pro?pria especificidade da e?tica que, como ja? dizia Aristo?teles na Ética Nicomachea, na?o pode ser considerada com o mesmo grau de exatida?o como a matema?tica e a fi?sica, mas, ainda assim, pode ser classificada sob o domi?nio da cie?ncia, mesmo que da cie?ncia pra?tica. Essa especificidade revelaria que a e?tica e? um tipo de conhecimento cercado por diversidade de opinio?es e incertezas sobre o bom e o justo, mas que pode auxiliar os indivi?duos a melhor decidir em casos complexos e agir de forma apropriada, que seria a virtuosa, em raza?o dela indicar a verdade de forma aproximada e em linhas gerais, estando esse conhecimento ligado intrinsecamente a? experie?ncia dos agentes. Aristo?teles exemplifica essa complexidade da e?tica dizendo que a coragem e a riqueza sa?o tomadas geralmente como bens, mas ha? casos de pessoas que pereceram devido a elas. Assim, ja? poderia ser tomado como um tipo de conhecimento o saber que a coragem e a riqueza sa?o bens geralmente, mas que na?o sa?o bens quando forem prejudiciais aos agentes (1094a25-1095a15).
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Esse exemplo ja? mostra que o conhecimento moral pode incluir princi?pios tanto gerais quanto universais e tambe?m a experie?ncia particular dos agentes. Assim, pode incluir princi?pios morais generalizantes que informariam que a coragem e? um bem geralmente, isto e?, na maior parte das vezes. Tambe?m, poderia contar com a experie?ncia de um sujeito particular que pereceu por causa da coragem, talvez em um certo conflito ou ameac?a, ale?m de poder contar, igualmente, com um princi?pio universal que diria que a coragem na?o e? um bem quando for prejudicial ao sujeito. De posse desses princi?pios morais e da experie?ncia, ale?m de contar com uma capacidade deliberativa para pesar as diversas razo?es em um caso e escolher o melhor curso de ac?a?o, que seria o que realizaria o fim bom, o agente poderia decidir agir de forma corajosa, por exemplo, mesmo com o risco dela ser prejudicial, mas pesando as razo?es adequadamente, nas circunsta?ncias especi?ficas que caracterizam uma deliberac?a?o particular.
Veja-se que no caso do agente que estivesse refletindo se deve cumprir ou na?o a promessa feita em uma circunsta?ncia de injustic?a — por exemplo, se deveria pagar uma certa quantia prometida sob a coac?a?o de um criminoso —, esse tipo de racioci?nio poderia auxilia?-lo em sua decisa?o. Ele poderia saber que se deve cumprir a promessa, uma vez que para ser honrado sua palavra teria que ter valor e poderia saber, tambe?m, que a honra e? uma virtude importante para a felicidade. Por outro lado, ele poderia saber que uma circunsta?ncia injusta, como a coerc?a?o, invalidaria toda obrigac?a?o, especialmente na esfera juri?dica. E, assim, poderia decidir por na?o cumprir a promessa nessa situac?a?o, mesmo sabendo que se deve cumprir a promessa geralmente. Esse racioci?nio moral, embora na?o infali?vel, parece ja? capacitar os agentes na resoluc?a?o de problemas que surgem a todo momento e, assim, uma deliberac?a?o moral poderia ser tomada como uma situac?a?o na?o-trivial em que, mesmo na?o se sabendo teoricamente o que se deve fazer, se pode considerar integralmente as questo?es envolvidas e decidir por um certo curso de ac?a?o.
Mas, note-se que o caso na?o e? ta?o simples assim ao se analisar o racioci?nio moral, pois um outro agente poderia decidir por cumprir a promessa mesmo em uma circunsta?ncia de injustic?a. Note-se o caso de So?crates que decidiu cumprir a promessa feita a?s leis, na?o fugindo de Atenas e aceitando a pena de morte, inclusive tendo sido condenado injustamente. Mesmo com o conhecimento de que era alvo de uma condenac?a?o injusta, a sua decisa?o foi numa direc?a?o de uma reprovac?a?o absoluta de qualquer ato injusto, pois sua conscie?ncia na?o poderia conviver com a aceitac?a?o da realizac?a?o de um ato na?o virtuoso. E isso em raza?o de considerar que se deve sempre cumprir as promessas e que nenhuma circunsta?ncia de injustic?a invalidaria alguma obrigac?a?o e dai? a regra de na?o se retribuir uma injustic?a com outra injustic?a (Críton, 49d-54e).
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Isso ja? parece apontar para a necessidade de se fazer uma distinc?a?o entre os desacordos morais superficiais e profundos. Quero sugerir que desacordos superficiais sa?o melhor interpretados como desacordos morais na esfera privada, enquanto desacordos profundos estariam circunscritos a? esfera pu?blica. O exemplo anterior do desacordo sobre o dever de cumprir a promessa ou na?o penso que pode ser classificado, sem muita dificuldade, como um desacordo moral privado e isso em raza?o dele ter relac?a?o direta com aquilo que teria maior importa?ncia na vida dos agentes e na?o na vida de toda a comunidade.
Por exemplo, a decisa?o de ser honrado e cumprir a promessa em todas as situac?o?es ou a decisa?o de na?o cumprir alguma promessa em caso de coac?a?o parece ter uma releva?ncia priorita?ria para a vida do pro?prio indivi?duo, o que revelaria uma autoridade em primeira pessoa para a decisa?o. Seria o mesmo em casos sobre a coragem, moderac?a?o, benevole?ncia ou integridade. Nesse domínio, parecem aceita?veis as deciso?es discordantes dos agentes, de forma que inclusive quem decidisse por descumprir a promessa ou na?o ser corajoso, poderia ver a decisa?o antago?nica como uma atitude legi?tima. Similarmente, parece que mesmo quem decidisse por observar as obrigac?o?es absolutas e ser i?ntegro, poderia considerar aceita?vel a decisa?o contra?ria, sobretudo, pensando em uma perspectiva de pluralismo moral. Nesse a?mbito privado, o desacordo parece mesmo uma questa?o subjetiva e as emoc?o?es e desejos se mostram muito relevantes. Mas, seria o mesmo em uma diverge?ncia no a?mbito pu?blico da moralidade? Na?o parece ser o caso, uma vez que o desacordo pu?blico, ao contra?rio, envolveria o que tem importa?ncia para todos.
Creio que a diferenc?a central de um desacordo moral na esfera pu?blica e? que a autoridade na?o seria mais em primeira pessoa. Isso e? importante porque, como a moralidade pu?blica trata de questo?es que impactam na vida de todos, a autoridade normativa na?o poderia se restringir a?s respostas emocionais dos diversos sujeitos e, assim, comumente se apela ou para crite?rios objetivos, em terceira pessoa ou mesmo para crite?rios intersubjetivos, em segunda pessoa. Repare-se que em um desacordo sobre a correc?a?o ou incorrecão da mutilação genital feminina, da tortura e da escravida?o, para exemplificar, o que parece estar em jogo e? a disputa sobre quais crenc?as se podem tomar como legi?timas e aceita?veis e quais crenc?as devem ser exclui?das da disputa. Por exemplo, a crenc?a da igualdade de ge?nero e integridade na?o serem direitos, dos soldados inimigos na?o serem pessoas ou dos negros serem inferiores aos brancos, seriam tomadas como crenc?as falsas por aqueles que defendem os direitos humanos, isto e?, por aqueles que reconhecem como direitos de todos os membros da fami?lia humana a igualdade de ge?nero, integridade, liberdade e igualdade racial. Isso parece mostrar que ao menos nesse ni?vel profundo de desacordo, em que estariam em jogo questo?es pu?blicas fundamentais, como sa?o os direitos, o racioci?nio moral na?o poderia se reduzir a um processo de decisa?o particular, tendo que contar com verdades morais aceita?veis por todos, o que nos conduziria a uma discussa?o sobre as formas legi?timas de justificac?a?o das convicc?o?es morais.
Se eu estiver correto em considerar que em um desacordo no a?mbito da moralidade pu?blica envolveria uma disputa sobre quais crenc?as morais se poderiam tomar como legi?timas ou aceita?veis e quais crenc?as deveriam ser exclui?das do debate, creio que o pro?ximo passo seria refletir sobre os me?todos de justificac?a?o das convicc?o?es morais e que tipo de verdades objetivas se poderia contar. Penso que o me?todo do equili?brio reflexivo propiciaria a considerac?a?o de um importante aspecto intersubjetivo das verdades morais, de forma a orientar as deciso?es normativas, especialmente na esfera pu?blica, de maneira interpessoal e com proximidade a? cie?ncia. Assim, se poderia ter a justificac?a?o de uma crenc?a moral por sua coere?ncia com um sistema coerente de crenc?as, o que incluiria crenc?as morais ponderadas, isto e?, crenc?as morais que se te?m grande confianc?a, princi?pios morais e crenc?as na?o-morais, tais como crenc?as cienti?ficas e mesmo crenc?as religiosas e ate? metafi?sicas. Veja-se que em uma justificac?a?o desse tipo, o que justificaria a crenc?a que consideraria “a circuncisa?o feminina errada”, seria a sua coere?ncia com um sistema coerente de crenc?as, o que implicaria em ter que contar com crenc?as morais ponderadas, tais como as que afirmariam que “e? errado infligir dano intencional a? pessoas inocentes” e que “e? errado fazer procedimentos ciru?rgicos que na?o tragam benefi?cios para a sau?de da pessoa e que acarretem problemas psicolo?gicos”, ale?m de ter que contar com princi?pios morais que diriam, por exemplo, que “devemos respeitar a igualdade de todos, sem discriminac?a?o de ge?nero” e que “devemos respeitar a integridade dos seres humanos”, ale?m de ter que contar com crenc?as científicas, como as que afirmam que “o prazer sexual e? importante para uma vida satisfato?ria” e que “em um Estado laico, razo?es religiosas na?o devem se sobrepor a?s razo?es morais-poli?ticas”.
Esse me?todo do equili?brio reflexivo parece fazer com que a converge?ncia entre as crenc?as morais em direc?a?o a um padra?o normativo do que seria o correto e justo na?o seja arbitra?rio, uma vez que se poderia contar com a aceitabilidade dos envolvidos para sua validac?a?o, o que remeteria a uma perspectiva intersubjetiva de justificac?a?o. Veja-se que seria diferente no caso de algue?m querer justificar aos outros a sua crenc?a de que “a circuncisa?o feminina e? correta”. Provavelmente, esse agente teria que fundamentar essa convicção em certas crenc?as religiosas que muito dificilmente teriam aceitac?a?o dos envolvidos, tais como, por exemplo, dizer que essa pra?tica “impediria a promiscuidade” e que ela “garantiria a pureza e fidelidade feminina” e isso seria importante em raza?o de certas verdades reveladas, considerando certa tradic?a?o da religia?o isla?mica. Veja-se que aqui as verdades morais estariam fundamentadas em certas crenc?as religiosas que contariam como autojustificadas.
Em um mundo cada vez mais plural, especialmente do ponto de vista religioso e até político, parece temerário querer fazer uso de um modelo fundacionista como esse para a justificação das crenças morais. Parece mais prudente apostar em um tipo de raciocínio moral que possibilite a revisibilidade de nossas crenças e não faça uso de crenças autojustificadas que funcionariam como crenças básicas. Mesmo sendo falível o conhecimento moral da forma que o estamos interpretando, penso que ele já nos mostra que o desacordo moral, sobretudo no âmbito público, não poderia ser tomado como uma prova da inexistência das verdades morais objetivas, uma vez que ele nos auxiliaria fortemente em nossas decisões coletivas. Provavelmente o que o fenômeno em questão nos revele é que o pensamento normativo, sobretudo o moral, ainda precise de aperfeiçoamento. Mas isso só seria um problema para quem toma o conhecimento ético como de tudo ou nada e não como uma questão de graus.
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