O papel das virtudes públicas

A participação política como elemento para o bem-estar e a justiça na política. Por Denis Coitinho, um ensaio sobre democracia e o papel das virtudes públicas.

por Denis Coitinho

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Jason Brennan, em seu livro Contra a Democracia (Against Democracy, Princeton University Press, 2017), afirma que a participação política tende a nos corromper, ao invés de melhorar o nosso caráter intelectual e moral e nos torna inimigos uns dos outros.  Ele inicia o primeiro capítulo da referida obra fazendo uma contraposição entre Mill e Schumpeter. Diz que Mill defendia que o envolvimento político faria os cidadãos mais inteligentes, preocupados com o bem comum, melhor educados e nobres, fazendo com que as pessoas adotassem uma perspectiva de maior alcance, deixando de só pensar nos seus interesses imediatos. Por sua vez, para Schumpeter, o cidadão típico tem uma performance mental baixa no campo político, tendo por foco apenas o seu interesse, tornando-se primitivo novamente com a participação política. Diz, também, que na situação presente em que vivemos, a maioria das formas comuns de engajamento político não apenas falha em tornar as pessoas mais educadas ou virtuosas, mas, também, tendem a tornar as pessoas estúpidas e corruptas. Como elas não se preocupam com a política, sendo, inclusive ignorantes sobre certos temas, quando não absolutamente irracionais, a saída não seria aumentar a participação política, mas, antes, restringi-la (2017, p. 1-3). No último capítulo, conclui a obra dizendo que a política tende a nos fazer odiar uns aos outros e ver os membros do grupo adversário como inimigos, não favorecendo a amizade cívica (2017, p. 231-232).

Olhando certos fatos da política brasileira e mundial, tais como o tensionamento nas redes sociais a respeito da disputa presidencial no Brasil e a guerra da Rússia contra a Ucrânia, por exemplo, é difícil não ficar balançado com sua posição.

O argumento de Brennan parece concluir que devemos nos afastar da política porque ela tanto favorece a estupidez, irracionalidade e ignorância, bem com ela nos torna inimigos uns dos outros e, como não se pode ter estabilidade social sem amizade cívica, o que significa os concidadãos se “verem engajados em um empreendimento cooperativo para vantagem mútua”, devemos evitar “a política tanto quanto possível” (2017, p. 234-235). Esse argumento parece estar relacionado tanto com a concepção de Brennan de conhecimento político como de tudo ou nada, bem como relacionado a sua concepção de política como jogo de soma zero. Mas, ao contrário, se tomarmos o conhecimento como expressão de certas virtudes intelectuais que se adquire com o hábito, através de exercícios repetidos, e se tomarmos a política não como apenas reduzida às disputas eleitorais, mas como uma possibilidade de se alcançar consensos normativos básicos, então, tanto o conhecimento político, que pode ser visto como prudência (sabedoria prática), como a amizade cívica, só serão possíveis com o engajamento político e não com a sua restrição, uma vez que não se pode adquirir nenhuma virtude sem exercício e que as virtudes públicas só podem ser adquiridas na própria esfera política. É difícil imaginar um cenário em que virtudes públicas, tal como a justiça ou a tolerância, por exemplo, seriam cultivadas exclusivamente na esfera privada.

Ao invés de tomar Schumpeter como referência, parto do argumento educacional de Mill, como apresentado em Considerations on Representative Government (Oxford University Press, 1975), como forma de compreender como o engajamento político pode desenvolver as virtudes tanto morais como intelectuais dos agentes.  Mill considera que a atividade política e civil requer que os cidadãos julguem a partir de uma visão imparcial dos interesses dos outros e busquem o bem-comum. Isto requer um pensamento de longa duração, bem como o engajamento em questões morais e de ciência social. Se for isso, então, a atividade política tenderá a aumentar as virtudes cívicas e tornar os cidadãos melhor informados. O argumento de Mill destaca que o engajamento político desenvolveria as habilidades de pensamento crítico dos cidadãos e aumentaria seu conhecimento. Defende corretamente que o envolvimento em política levaria os cidadãos a ter uma perspectiva mais imparcial dos problemas, os levando a ter maior empatia com os concidadãos e desenvolver uma forte preocupação com o bem-comum (1975, p. 196-197).

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Stuart Mill, retratado por G.F. Watts

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O problema levantado por Brennan com o argumento educacional de Mill é que ele precisaria apresentar dados empíricos de que a participação política de fato enobrece e educa os agentes. E a partir de dados sociológicos negativos sobre a democracia deliberativa e dados psicológicos dos viéses cognitivos, Brennan conclui que o argumento educacional não é sólido e, por isso, devemos evitar a participação política (2017, p. 60-73). O problema é que esta abordagem está pretendendo dizer como é a natureza humana e a natureza das relações sociais e que elas seriam inalteráveis, o que revela uma visão um tanto essencialista. Por isso é interessante refletir sobre a especificidade das virtudes, que podem ser vistas como uma segunda natureza, uma vez que elas são adquiridas pelo hábito. No que segue, abordo as virtudes públicas da prudência e da amizade cívica que precisarão do engajamento político para sua aquisição. Para tal, parto de uma definição destas virtudes e procuro analisar sua importância. Por fim, reflito sobre o processo de sua aquisição.

A prudência (phronesis) é definida classicamente como uma disposição para encontrar os meios mais adequados para realizar um fim bom. Para Aristóteles, ela é vista como uma capacidade de deliberar bem sobre o que contribui para a vida boa. Isto implica em estar relacionada com uma capacidade de apreender os fins que são bons e, mais especificamente, a uma capacidade deliberativa para chegar a um resultado bem-sucedido, escolhendo os meios mais eficientes para a realização do fim (Ética Nicomaquéia, 1143b21-25). É uma virtude que parece essencial para a política, uma vez que esta atividade, em geral, implica em identificar os meios necessários para alcançar um fim. Imaginando que o fim de um Estado seja alcançar a prosperidade econômica dos seus cidadãos, bem como garantir a sua segurança, não seria prudente adotar uma política econômica que excluísse a maior parte dos agentes de certos bens como educação, saúde e emprego, por exemplo. Um político prudente poderia identificar mais facilmente que uma política de bem-estar social seria mais adequada para o fim almejado. Não é à toa que Aristóteles considera como um paradigma de agente prudente Péricles, um político grego que foi muito importante para assegurar tanto a prosperidade como a paz em Atenas, em razão de sua capacidade em identificar o bem-comum, sendo esta uma capacidade fundamental para governar bem.

A sua importância do ponto de vista público estaria ligada, em primeiro lugar, com a capacidade de identificação dos meios adequados para se chegar ao fim bom como já referido. Muitos desejam a paz e a prosperidade econômica, mas nem todos conseguem identificar os meios mais adequados para realizar esse fim, isto é, identificar as políticas públicas mais eficientes. Dessa forma, esta seria uma virtude central para um agente público, tal como um legislador ou membro do executivo. Além dessa perspectiva, penso que a prudência é também muito importante para os cidadãos em geral. E isso porque o agente prudente poderia assumir mais facilmente as suas responsabilidades para com os outros, de forma a levar em conta as consequências de seus atos, assumindo mais facilmente os seus deveres de civilidade, tal como respeitar as leis de trânsito, seguir as normas sociais, jurídicas e políticas, bem como atribuir  o mesmo peso aos interesses de todos, demostrando bom julgamento para decidir pelo bem-estar dos concidadãos.

A amizade cívica (politike philia), por sua vez, é uma virtude pública fundamental para garantir a unidade das sociedades e auxiliar no seu cuidado. É uma disposição que implica em uma preocupação mútua em relação ao caráter virtuoso dos cidadãos, isto é, significa desejar o bem do outro pelo próprio bem do outro. Como bem dito por Aristóteles, na Política, a amizade cívica é uma aspiração comum em relação a um padrão e excelência para todos os concidadãos (1295b1-3). Diferentemente da amizade pessoal, o conhecimento íntimo e a proximidade emocional não estão presentes. Com isso, os traços comportamentais são expressos no reconhecimento de normas sociais no que diz respeito ao como devemos tratar as pessoas, isto significando em conhecer a natureza da Constituição e suas qualidades, o nível de apoio entre a população no que é publicamente esperado do agente em sociedade, o que são os seus deveres comuns, entre outros.

A partir desta definição de amizade cívica fica mais claro ver qual seria sua importância. Ela pode ser tomada como condição necessária para a justiça em uma sociedade, uma vez que sem amizade cívica dificilmente se obterá a estabilidade social. E isso porque mesmo que uma sociedade tenha regras de justiça, que garantem a liberdade, igualdade, dignidade dos cidadãos, sem essa disposição para desejar o bem dos outros, compartilhar valores, objetivos e um senso de justiça, dificilmente os agentes seguirão estas regras de justiça que possibilitariam uma vida em comum. E isso parece relevante mesmo quando pensamos em um estado liberal contemporâneo, que faz a distinção entre a esfera privada e pública, mas que exige dos cidadãos certas virtudes políticas, tais como a disposição à civilidade, tolerância, razoabilidade etc.

Agora, a questão mais relevante é refletir sobre o processo de aquisição destas virtudes públicas de prudência e amizade cívica.      Adquirimos as virtudes por um processo de habituação, em que exercícios repetidos formam o caráter do agente, o revestindo de uma segunda natureza. Nem a coragem, moderação ou generosidade são traços de caráter naturais. Eles são adquiridos por um processo de afastamento dos extremos. Por exemplo, na coragem, do afastamento em relação à temeridade, que é o subestimar os perigos, e a covardia, que é superestimá-los. Esse processo se inicia com a disposição do agente, a partir de sua aspiração em ser melhor, é certo, mas há um importante papel social, e isto porque as virtudes são critérios normativos socialmente mediados. É o grupo em uma sociedade que elogia um certo tipo de comportamento e censura outro. Por exemplo, elogia geralmente atos corajosos, moderados, generosos e justos e censura em geral atos covardes, intemperantes, egoístas e injustos. Assim, podemos dizer que adquirir virtudes é um empreendimento coletivo.

Com isso em mente, não e difícil imaginar que o processo de aquisição das virtudes se dará no campo educacional, tanto na educação familiar como no da educação escolar. Além do processo educativo, podemos apontar, também, para o importante papel das instituições políticas e jurídicas. As virtudes dos cidadãos em muito são devedoras das virtudes das instituições públicas de uma sociedade. Sendo elas justas, por exemplo, existirá uma grande possibilidade dos agentes também se tornarem justos. Agora, e a participação política? Ela teria alguma relevância na aquisição destas virtudes em tela? Penso que sim. Tomando a política como não reduzida a uma disputa eleitoral, em que teríamos sempre um ganhador e um perdedor, podemos considerar que o engajamento político favorecerá a aquisição tanto da prudência como da amizade cívica. Vejamos.

Imaginem uma assembleia constituinte. Nela, os cidadãos votam para eleger os legisladores constituintes que terão a tarefa de realizar a Constituição. Depois de eleitos, estes constituintes ouvem parcelas significativas da sociedade, como empresários, professores, comerciantes, agricultores, pecuaristas, sem-teto, sem-terra, ecologistas, grupos LGBTQIA+ etc. A partir destas consultas e trabalhando em comissões vão apresentando o texto como está sendo formulado. Ele sofre críticas de uns, pressões de outros, elogios de muitos e, por fim, a Constituição é promulgada. A participação nesse processo constituinte, penso, favorece o surgimento de amizade cívica, uma vez que o texto que será a referência normativa política central para aquela sociedade teve o envolvimento de todos. Imaginem se um determinado grupo fosse impedido de participar deste processo constituinte, talvez pela razão de ser ignorante e irracional. Como o grupo se sentiria? Provavelmente esta restrição geraria ressentimento ou até mesmo raiva contra aqueles que o impediram de participar. Essa situação de assimetria provavelmente seria determinante para uma baixa autoestima. Mas, fundamentalmente, essa restrição poderia criar uma inimizade cívica.

Vejamos um outro exemplo. Imaginem uma sociedade epistocrática em que os cidadãos não elegem os legisladores e membros do executivo, da mesma forma em que sociedades democráticas não elegemos os juízes, e considerando que estas autoridades públicas têm as mesmas funções que em democracias contemporâneas, isto é, fazer as leis, executar e julgar, mas ao invés de serem eleitos, eles são selecionados por concurso. Mesmo considerando que estas autoridades sejam competentes para garantir o bem-estar de todos, provavelmente os cidadãos teriam bastante dificuldade em reconhecer os seus deveres comuns, isto é, a sua reponsabilidade política e social, como não fazer ações que coloquem o outro em perigo. Como adquirir a virtude da prudência, isto é, da sabedoria prática, estando alheio ao engajamento político? Como a prudência tem uma característica muito peculiar, sendo uma virtude intelectual, mas que é condição de possibilidade tanto para as outras virtudes intelectuais como para as virtudes morais, parece que ela só será cultivada plenamente no domínio público, não sendo suficiente para o seu total florescimento o domínio privado. Será que se Péricles não tivesse podido se engajar politicamente ele teria se tornado um exemplo de agente prudente, isto é, como aquele que tanto consegue identificar o fim bom como conhece os meios adequados para sua realização, pensando especialmente no bem comum? Creio que dificilmente.

A partir do que foi visto, penso que não temos uma razão conclusiva para defender uma restrição da participação política. Ao contrário, talvez fosse adequado considerar que um aumento desta participação produzisse ainda mais bem-estar e justiça.

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Aristóteles por Jusepe de Ribera, 1637

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