O desacordo moral em questão

Em tempos de sociedades fragmentadas, as circunstâncias do pluralismo e da complexidade trazem à tona profundos desacordos morais. Um ensaio de Denis Coitinho sobre o fenômeno dos desacordos — e uma defesa da tese de que o desacordo moral talvez não seja um real desacordo entre valores éticos, mas de outra natureza.

por Denis Coitinho

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(Reprodução: New Yorker/Frank Cotham)

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Vivemos em sociedade complexas. E uma das características desta complexidade é a pluralidade, o que significa dizer que diferentes pessoas possuem pontos de vista distintos sobre os mais diversos temas, tais como os políticos, econômicos, religiosos e até mesmo os temas éticos. É extremamente comum nos depararmos com desacordos morais profundos em nossa sociedade. Por exemplo, para alguns, ações afirmativas são erradas porque feririam o direito a igualdade que todos os cidadãos possuem; para outros, ela é correta, pois seria uma maneira de reparar antigas injustiças. Vejam a polêmica que gerou em nosso meio a ação afirmativa criada pelo Magazine Luiza que estabeleceu um processo seletivo exclusivo para admissão de trainees negros. De um lado, alguns usuários elogiaram a iniciativa, pois a viram como uma forma de corrigir a desigualdade racial no mercado de trabalho brasileiro. De outro, houve os que consideraram a ação crime de racismo, alguns falaram até em racismo reverso, e isto para criticar a decisão da empresa. Outro exemplo que pode ser dado é a respeito dos deveres que se teria em relação aos imigrantes ou refugiados, tais como os haitianos e venezuelanos. Alguns pensam que se teria o dever moral de auxiliá-los, enquanto outros acreditam que não haveria dever algum. Antes, que o dever moral deveria ser prioritário em relação a sua própria população. Mas o que isso poderia significar? Que as crenças que afirmam que “ações afirmativas são corretas”, que “ações afirmativas sempre são injustas”, que “devemos auxiliar os refugiados” e que “não temos deveres benevolentes com estrangeiros” seriam apenas subjetivas, não se podendo falar de verdades objetivas no âmbito moral?

O problema se torna ainda mais dramático se reconhecermos que existem variações de códigos morais de uma sociedade a outra. Por exemplo, nas comunidades ocidentais, a poligamia é tomada como errada, além de ser ilegal, enquanto que para algumas sociedades africanas e do oriente médio de religião muçulmana, a poligamia é legal, além de ser vista como um ato moralmente correto. Estima-se que a poligamia seja aceita em mais de 50 países ao redor do mundo, tais como Marrocos, África do Sul, Arábia Saudita, Etiópia etc., enquanto que no Brasil a poligamia é considerada crime pelo Código Penal Brasileiro, que no seu artigo 235 estipula pena de reclusão de dois a seis anos para quem contrair novo casamento já sendo casado. Também, podemos identificar variações de valoração moral de um período histórico a outro. Por exemplo, hoje a escravidão é considerada errada, mas a trezentos anos atrás esse ato era tomado tanto como legal como correto moralmente. Como poderíamos interpretar essa variação nos julgamentos morais de uma sociedade a outra e de um período histórico a outro? Isso implicaria necessariamente na inexistência de verdades objetivas no campo da moralidade e o reconhecimento de que os juízos morais estariam fundados nas emoções dos agentes?

John Mackie, em Ethics: Inventing Right and Wrong (1977), defende um posicionamento cético nesse sentido com seu argumento da relatividade, que diz que “[…] diferenças radicais entre juízos morais de primeira ordem tornam difícil tratar esses juízos como apreensões de verdades objetivas” (MACKIE, 1977, p. 36). O ponto central defendido por Mackie é observar que o desacordo moral não poderia ser explicado da mesma forma com que interpretamos os desacordos científicos, que resultariam de inferências especulativas ou hipóteses explanatórias com base em evidências inadequadas. No caso moral, diferentemente das questões de história, biologia ou cosmologia, os desacordos não teriam por base o mundo tal como ele é, mas apenas refletiriam a aderência e a participação das pessoas a diferentes tipos de vida. Por exemplo, as pessoas aprovam a monogamia porque participam de práticas monogâmicas de vida ao invés de participarem de práticas monogâmicas de vida porque aprovam a monogamia (MACKIE, 1977, pp. 36-37).

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J.L.  Mackie

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O ponto forte do argumento da relatividade ou do desacordo moral parece ser o de apresentar uma razão para se duvidar que a moralidade possa ser objetiva, uma vez que a relatividade dos juízos morais e, muitas vezes, a sua própria contraposição, mostraria a inexistência de fatos morais objetivos. Para maior careza, podemos apresentar o argumento da relatividade com a seguinte formulação em modus tollens: (i) Para existir verdades morais objetivas ou fatos morais objetivos deveria existir uma unidade moral, isto é, uma concordância entre juízos morais de primeira ordem; (ii) mas, dado que se identifica uma variação dos códigos morais entre sociedades e tempos distintos, além de desacordos morais em sociedades complexas; (iii) verdades morais objetivas não existiriam. Veja-se que o argumento procura mostrar que, pelas evidências empíricas que temos sobre o desacordo moral, seria possível provar a inexistência de verdades objetivas, pois havendo essas verdades ou fatos objetivos não seria razoável encontrar uma relatividade valorativa tão profunda.

Uma das formas já usuais de se tentar objetar a esse argumento da relatividade é a de negar a premissa empírica, identificando que o desacordo moral apontado não seria tão grande, pois sob a aparência da relatividade encontraríamos um acordo em um nível mais profundo, que permitiria identificar princípios morais fundamentais, tais como o princípio da universalizabilidade, ou o princípio utilitarista da maximização da felicidade ou mesmo o princípio da regra de ouro, que diz que devemos tratar os outros como queremos ser tratados. O próprio Mackie procurou responder a essa objeção identificando que as pessoas julgam certas coisas como boas e corretas e outras como más e erradas não porque elas explicariam algum princípio geral que demonstraria uma aceitação implícita. Antes, a razão dessa valoração seria porque algo sobre essas coisas suscitaria certas respostas imediatas a elas, embora possam suscitar diferentes respostas em situações diversas (MACKIE, 1977, p. 38).

Deixando esta estratégia de lado, quero defender que o desacordo moral é mais sobre as crenças não-morais do que sobre um real desacordo entre valores éticos. Mais especificamente, penso que o desacordo em questão se concentra mais sobre as crenças científicas e sobre as crenças religiosas e metafísicas e, também, que é influenciado por condições distorcidas que pressupõem a declaração das crenças. Adicionalmente, é importante compreender que o argumento da relatividade parece ser postulado em uma perspectiva de tudo ou nada, mas que, de fato, a divergência no campo da moralidade pode ser melhor compreendida como uma questão de graus.

Iniciemos com o conhecido desacordo sobre o aborto. Muitos pensam que “o aborto é certo”, considerando, especialmente, a autonomia da mulher, enquanto outros tantos pensam que “o aborto é errado”, levando em conta, particularmente, o estatuto do feto enquanto pessoa. Haveria algum desacordo valorativo ou o desacordo seria antes fatual ou mesmo religioso? Veja-se que ambos os grupos aceitam sem nenhuma problematização que “é errado matar pessoas inocentes”, pois, se não fosse assim, o infanticídio também seria alvo de disputa, o que não é o caso. Ninguém discorda a respeito do erro em se matar uma pessoa inocente. O problema parece residir no que consistiria mesmo ser uma pessoa. O embrião e o feto já são considerados pessoa? Há uma diferença significativa entre embrião e feto? A pessoa humana teria algum caráter sagrado ou seria puramente animal? O mesmo parece ocorrer na disputa sobre a justiça ou injustiça de uma política de cotas para negros, em que não se identifica uma divergência moral sobre o valor da igualdade das pessoas, uma vez que ambos os lados estão reivindicando o mesmo direito à igualdade, havendo apenas uma divergência sobre o como esta igualdade será efetivada. Observando essas questões em disputas, isso parece implicar que o desacordo é antes científico ou fatual do que valorativo.

Sobre a discordância a respeito do erro da poligamia, penso que não é muito difícil reconhecer que o desacordo é predominantemente religioso. Por exemplo, alguns muçulmanos consideram “a poligamia certa” porque no Alcorão está escrito que os homens podem ter até quatro mulheres, desde que as tratem de forma equitativa. Para muitos cristãos, essa prática é tomada como atrasada e empobrecedora. Inclusive, as feministas a consideram uma violação dos direitos das mulheres. Mas, o ponto crucial é perceber que haveria uma mesma valoração moral a respeito do cuidado que se deve ter com a(s) esposa(s) e familiares em geral, estando a discordância estabelecida no campo das verdades reveladas.

A partir destes exemplos, é importante compreender a complexidade das questões éticas.  Questões éticas reais são uma espécie de questão prática e questões práticas parecem envolver não apenas valores, mas uma mistura muito complexa entre valores, crenças fatuais, tais como crenças econômicas, psicológicas ou sociológicas, e crenças religiosas e até mesmo metafísicas. Deixem-me exemplificar esta complexidade. Embora todos concordem que matar uma pessoa inocente, estuprar e roubar sejam atos errados que merecem punição, muitos discordam a respeito do que justificaria a punição mesma. Para alguns, ela se justificaria pela prevenção de futuros crimes; para outros, apenas o sofrimento do culpado poderia justificá-la, por exemplo. Nesse caso, haveria uma mesma valoração moral, de que somente é justa uma punição quando ela for justificada, uma vez que a punição implica em um ato intencional (Estatal) para causar dano a um agente e isso é tomado como errado em situações normais. A discordância estaria apenas no que poderia contar mesmo como a justificação da punição, que parece recair sobre questões não-morais tais como, haveria algo como o livre-arbítrio dos agentes que seria o pressuposto central da correção da retribuição ou eles estariam sempre determinados de alguma forma, sendo melhor, então, olhar para os efeitos práticos da punição? Agora, note-se que essa é uma questão metafísica a respeito do livre-arbítrio e não uma questão propriamente moral, que parece estar conectada com uma questão empírica a respeito do que poderia garantir maior estabilidade social.

Um outro exemplo para melhor identificar a complexidade de uma questão ética real é a respeito do desacordo sobre o erro da tortura. Mesmo os que defendem que “a tortura seria correta” em uma guerra ou em uma prática punitiva com um argumento de maximização de bem-estar não negam a incorreção da tortura sem nenhuma consideração. Por exemplo, seria correto torturar um inocente para garantir a segurança das pessoas ou a vitória na guerra? Ou, se poderia considerar como correta a tortura dos soldados que estão lutando do “lado certo”? Parece que não. Isso talvez nos mostre que haveria uma mesma valoração moral, de forma a exigir o respeito intrínseco à pessoa humana, discordando sobre o que contaria para o agente perder esse estatuto moral, seja um soldado inimigo, seja o que é culpado de um crime. Aqui, note-se que essa discordância é uma questão factual e não propriamente moral.

Por fim, gostaria de tematizar a influência das condições distorcidas para a enunciação das crenças discordantes. Em muitos casos, quando se verifica que pessoas estão defendendo crenças morais divergentes, até mesmo contraditórias, não é difícil apontar para certas condições distorcidas, tais como medo, raiva, falta de confiança ou hesitação. Imaginem alguém tendo que julgar se a pena de morte é certa ou errada logo após ter sofrido um assalto ou algum tipo de violência. Agora imaginem a mesma pessoa julgando o mesmo caso sem ter passado por nenhuma situação ameaçadora. Em princípio, essas condições que iriam além do próprio julgamento parecem influenciar fortemente o agente em uma certa direção. No caso em tela, avaliando a pena de morte como correta, além de necessária para a garantia da segurança da sociedade. No caso anteriormente referido a respeito do desacordo sobre os deveres com os imigrantes ou refugiados, parece que as condições distorcidas que poderiam influenciar decisivamente o julgamento moral teriam relação, também, com o conhecimento que se teria sobre a situação particular do agente. Por exemplo, tendo o conhecimento que se é de tal nacionalidade e que o refugiado ou imigrante é pertencente a um diferente povo ou nação. Se por hipótese, através de um experimento mental, similar ao da posição original sob o véu da ignorância como proposto por John Rawls em A Theory of Justice, não tivéssemos como acessar esse tipo de conhecimento particular sobre a nacionalidade, procurando identificar um ponto de vista imparcial ou recíproco, muito provavelmente, os deveres que seriam estipulados abrangeriam todo o grupo humano, sem diferenciação de nacionalidades, o que possivelmente nos levaria, ao menos, a um dever imperfeito de assistência, ou, no limite, a um dever perfeito de benevolência.

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John Rawls

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A partir desses casos analisados, creio que podemos reconhecer uma certa fraqueza no argumento da relatividade, a saber, que ele parece ser formulado em uma perspectiva de tudo ou nada. A acusação de que não haveria verdades morais objetivas em razão da ausência de unidade moral parece pressupor que o conhecimento moral implicaria saber de forma infalível o que é certo e errado, ou o que é justo e injusto, de forma que a crença teria que corresponder a uma certa propriedade moral que seria conhecida por alguma intuição especial. Entretanto, parece que a reflexão ética é mais complexa do que isso, uma vez que ela envolveria, para além de valores morais, crenças científicas (biológicas, sociológicas, psicológicas, econômicas etc.), religiosas e até mesmo considerações metafísicas. Ao invés de tudo ou nada, a questão das verdades objetivas no campo da moralidade parece envolver graus, de forma que a identificação do certo e errado, bem como do justo e do injusto estaria ligada a uma capacidade complexa de conectar valores morais e religiosos com uma classe diversificada de descrições que estão baseadas em nosso atual conhecimento de como o mundo funciona.

Não creio que o reconhecimento do fenômeno do desacordo ético seja uma razão para ceticismo. Talvez, ele apenas nos revele que o pensamento normativo, sobretudo o moral, ainda esteja em processo de aperfeiçoamento.

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