por Desidério Murcho
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Imaginemo-nos em 1783. Passaram apenas oitenta e três anos desde a fundação da Academia Prussiana das Ciências, cujo primeiro presidente foi Gottfried Wilhelm Leibniz (1646–1716). Na Prússia, Frederico I (1657–1713) criara as condições para transformá-la numa das mais importantes potências económicas, militares e culturais europeias. A língua alemã, que no tempo de Leibniz ainda não era vista como uma língua da filosofia — razão pela qual este filósofo escrevia sobretudo em francês e latim — rapidamente se estabeleceu como uma das mais importantes da Europa: o filósofo, matemático e cientista Christian Wolff (1679–1754) foi um dos seus instigadores, escrevendo vários tratados em alemão, o que contribuiu para estabelecer a solidez filosófica da sua língua.
Assim, quando, depois de vários anos de silêncio editorial, Kant abandonou o latim da sua Dissertação Inaugural de 1770 e escreveu em alemão a sua obra-prima, a Crítica da Razão Pura, publicada em 1781, esta língua era já vista como um veículo de cultura filosófica. A Crítica viria a ter uma influência tal que mesmo quem não a leu, ou leu sem entender, tende a admirá-la como um monumento do intelecto humano. A sua receção, contudo, não foi particularmente calorosa, e o que estava em causa ficou por compreender. Kant decidiu então explicar-se melhor, numa linguagem mais simples e, sobretudo, num tratado de menor dimensão, hoje conhecido como Prolegómenos a Toda a Metafísica Futura (1783), mas cujo título completo acrescenta Que Possa Apresentar-se Como Ciência.
A palavra “ciência” do título completo é para ser entendida literalmente, apesar de hoje ser talvez surpreendente a mistura com a metafísica. No tempo de Kant, contudo, a filosofia e a ciência não tinham conhecido o divórcio que viria a tornar-se a marca de grande parte da filosofia alemã e francesa dos séculos XIX e XX. Como Wolff, Leibniz e Descartes, Kant tinha simultaneamente interesses filosóficos e científicos. Aconteceu até que a sua opção pela filosofia ficou a dever-se, sobretudo, à falta de laboratórios da universidade da sua cidade natal, Königsberg (que hoje se chama “Kaliningrado” e pertence à Rússia). Mesmo assim, na História Geral da Natureza e Teoria dos Céus (1755), Kant conjetura que o sistema solar se formou a partir de uma imensa nuvem de gás e poeiras — teoria que ainda hoje é considerada correta.
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Na verdade, a física e astrofísica atuais são herdeiras diretas da metafísica, tal como esta era feita pelos filósofos gregos da Antiguidade. Se estes se tivessem inibido de especular metafisicamente, esperando primeiro que a ciência experimental se desenvolvesse, esta nunca teria surgido: foi a curiosidade que levou os seres humanos a desenvolver a ciência experimental, não foi a ciência experimental que determinou em absoluto o rumo da curiosidade humana.
Contudo, com o avanço extraordinário da ciência experimental a partir dos séculos XVII e XVIII, a tentação de abandonar a metafísica como se de uma infantilidade se tratasse não se fez esperar. Esta atitude não é particularmente sábia, pois muitos problemas fundacionais sobre a realidade — e sobre a própria ciência experimental — são, pelo menos por enquanto, insuscetíveis de estudo científico, se com isso queremos dizer “experimental” ou “matemático”. Esses problemas são metafísicos, e só a teorização e argumentação cuidadosa e sistemática poderá ajudar-nos.
Foi nos Prolegómenos que, exagerando talvez um pouco, Kant declarou:
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Desde os ensaios de Locke e de Leibniz, ou antes, desde a origem da metafísica, tanto quanto alcança a sua história, nenhuma ocorrência teve lugar que pudesse ser mais decisiva, a respeito do destino desta ciência, do que o ataque que David Hume lhe montou. (Kant, Prolegómenos 4:257)
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Kant refere-se ao Ensaio sobre o Entendimento Humano, de Locke, publicado em 1690, e aos Novos Ensaios sobre o Entendimento Humano, de Leibniz, originalmente redigido em francês, e que data de 1704, apesar de só alguns anos depois ter sido publicado. A segunda obra, escrita sob a forma de diálogo, visa refutar a primeira, livro a livro, e capítulo a capítulo. O que está em causa é o famoso conflito, tantas vezes mal compreendido e caricaturado, entre o empirismo de Locke e Hume e o racionalismo de Leibniz.
Segundo a caricatura comum, os filósofos empiristas defendem que todo o conhecimento é a posteriori, ou seja, resulta da experiência, ao passo que os racionalistas defendem que todo o conhecimento é a priori, ou seja, é independente da experiência. Que isto é uma caricatura torna-se evidente quando se considera que um racionalista teria de explicar como sabemos, pelo raciocínio apenas, que está nevoeiro, tendo um empirista de explicar como sabemos, pela experiência apenas, que o número cinco é ímpar. Nenhuma das alternativas é particularmente promissora. Além disso, esta caracterização sugere que a oposição é uma questão de saber qual é a origem do conhecimento; mas o que está realmente em causa é o processo de justificação envolvido, ou seja, as provas usadas.
Na verdade, como se vê no caso de Descartes, os racionalistas não defendem que conseguimos saber, pelo raciocínio apenas, que está nevoeiro, o que não seria particularmente judicioso. O que defendem é que só o raciocínio puro constitui a justificação última de todo o conhecimento, empírico ou não. Assim, os racionalistas não negam que só por meio dos sentidos conseguimos saber que está nevoeiro; mas negam que consigamos saber tal coisa pelos sentidos apenas, sem uma prova ou justificação independente da experiência.
Por outro lado, os empiristas não estão obrigados a negar que a justificação envolvida no conhecimento matemático envolve exclusivamente o raciocínio; mas negam que tal constitua um conhecimento substancial da realidade física. E defendem que sempre que temos conhecimento substancial da realidade física, a justificação ou prova envolvida depende inevitavelmente da experiência.
Kant ficou bastante mais impressionado com a defesa do empirismo levada a cabo por Hume do que com a de Locke. Daí que acabe por admitir famosamente que quem o despertou do sono dogmático foi o primeiro:
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Confesso francamente: foi a advertência de David Hume que, há muitos anos, interrompeu o meu sono dogmático e deu às minhas investigações no campo da filosofia especulativa uma orientação inteiramente diversa. (Kant, Prolegómenos 4:260)
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O sono dogmático de Kant é a ideia racionalista de que conseguimos justificar ou provar só pelo pensamento o nosso conhecimento de aspetos substanciais da realidade física. É contra esta ideia que Hume argumenta, insistindo que um dos conceitos fundamentais para compreender a realidade — e para fazer física — é inteiramente empírico: o conceito de causalidade. Kant ficou impressionado com as ideias de Hume, e viu nelas duas consequências importantes.
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Em primeiro lugar, se Hume tivesse razão, as ciências empíricas, precisamente por serem empíricas, nada de estritamente universal ou necessário diriam sobre a realidade: seriam meras descrições de regularidades contingentes, e não corpos de verdades necessárias e estritamente universais, como a geometria. Isto não parece particularmente promissor, dado que obriga a rever a convicção de que a ciência revela aspetos fundamentais da natureza, e não apenas meras contingências. A afirmação científica de que uma dada porção de água é H2O não parece estar ao mesmo nível da afirmação de que essa porção de água está em Lisboa. O mundo tem muitíssimos factos e a ciência não parece uma mera enumeração de quaisquer factos, mas antes uma seleção dos que são particularmente centrais e importantes, reveladores da natureza profunda das coisas.
Em segundo lugar, não seria possível a própria metafísica, tal como era tradicionalmente concebida, pois trata-se de estudar problemas filosóficos sobre a realidade, insuscetíveis de estudo empírico. Se Hume tiver razão, nenhum raciocínio puro permitirá descobrir quaisquer verdades fundamentais sobre a realidade. Hume encerra com as seguintes palavras a sua Investigação sobre o Entendimento Humano, obra publicada trinta e cinco anos antes dos Prolegómenos, em 1748:
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Ao passarmos os olhos pelas bibliotecas, persuadidos destes princípios, que devastação devemos fazer? Se pegarmos num volume de teologia ou de metafísica escolástica, por exemplo, perguntemos: Contém ele algum raciocínio acerca da quantidade ou do número? Não. Contém ele algum raciocínio experimental relativo à questão de facto e à existência? Não. Lançai-o às chamas, porque só pode conter sofisma e ilusão. (Hume, Investigação sobre o Entendimento Humano, p. 165)
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Do ponto de vista de David Hume, só há dois tipos de conhecimento: empírico, sobre questões de facto, onde encontramos ciências como a física; e a priori, sobre relações de ideias, onde encontramos a matemática. Não se consegue fazer qualquer cruzamento entre estes domínios e, consequentemente, ou a metafísica nada nos diz sobre a estrutura fundamental da realidade — deixando, por isso mesmo, de ser propriamente metafísica — ou transforma-se em mera ciência empírica, deitando-se às chamas toda a tradição metafísica europeia. Que a própria obra de Hume seria quase certamente lançada às chamas, pelos seus critérios, parece evidente — pois não encontramos nela nem matemática nem física, mas antes especulação filosófica tradicional.
Despertar do sono dogmático é deixar de tomar como óbvio que podemos justificar pelo pensamento puro o nosso conhecimento de aspetos fundamentais da realidade física. Mas se nos limitarmos despertar do sono dogmático, caímos num pesadelo cético, no qual nem a ciência nem a metafísica, tal como tradicionalmente concebidas, são exequíveis. A engenhosa saída de Kant para esta dificuldade foi a responsável, em parte, pela sua fama como filósofo.
Hume não distingue, nos seus textos, entre três categorias filosóficas importantes: o necessário, o a priori e o analítico. A tudo isto chama Hume simplesmente “relações de ideias”, que contrastam com as questões de facto, onde também não distingue o contingente, o a posteriori e o sintético. É uma questão de facto que está nevoeiro, mas basta relacionar ideias, pensa Hume, para saber que cinco é um número ímpar.
Kant introduziu uma distinção entre o a priori e o necessário, por um lado, e o analítico, por outro. Apesar de continuar a não distinguir com rigor o a priori do necessário, como fazemos hoje, distinguiu cuidadosamente o analítico deste par conceptual. Usando a conceção contemporânea de analítico, que é ligeiramente diferente da de Kant, uma afirmação é analítica quando conseguimos saber que é verdadeira, ou falsa, com base apenas no conhecimento do seu significado, e é sintética caso contrário. Assim, “Nenhum solteiro é casado” é uma afirmação analítica, mas “Nenhum solteiro é feliz” é sintética.
Contudo, Kant via a diferença entre o analítico e o sintético de modo algo diferente: considerava que numa afirmação analítica nada se acrescenta na segunda parte da afirmação que a primeira não contenha já, ao passo que é precisamente isso que faz uma afirmação sintética. Assim, dado o conhecimento que temos do que é ser solteiro, já sabemos que nenhum solteiro é casado; mas esse conhecimento não nos diz se os solteiros são felizes. Neste sentido, as afirmações analíticas não seriam informativas, ou ampliativas, ao passo que as sintéticas o seriam.
Quanto ao necessário e ao a priori, trata-se de conceitos que hoje distinguimos claramente, mas que Kant trata como se fossem irmãos gémeos. O a priori é um conceito que diz respeito ao modo como conhecemos: quando conhecemos algo recorrendo exclusivamente ao pensamento, como é o caso da matemática, trata-se de conhecimento a priori; quando conhecemos algo recorrendo pelo menos parcialmente à experiência, trata-se de conhecimento a posteriori.
A introdução deste par conceptual constituiu um desenvolvimento crucial na história da filosofia, e deve-se em parte a Kant. Filósofos como Locke e Descartes usavam ao invés os conceitos de conhecimento inato e adquirido. Ora, apesar de ser razoável defender que não nascemos sabendo que cinco é um número ímpar, por exemplo, pelo que este não é um conhecimento inato, sabemo-lo sem recorrer à experiência, raciocinando apenas sobre os aspetos relevantes da linguagem — ao passo que por mais que raciocinemos sobre esses aspetos, nunca saberemos, raciocinando apenas, qual é a velocidade da luz. Deste modo, quem defende a tese de que há conhecimento discursivo a priori não se contradiz caso rejeite, apesar disso, a tese mais implausível de que há conhecimento discursivo inato — que há conhecimento não discursivo inato, no sentido de saber-fazer, é evidente, pois nascemos sabendo fazer a digestão.
Porque Hume não distinguia o par analítico/sintético do par a priori/a posteriori, estava condenado a considerar que tudo o que sabemos a priori é analítico. Mas se considerarmos que as verdades analíticas não são informativas ou ampliativas, torna-se óbvio que a matemática, dado ser muitíssimo informativa, não pode ser analítica nesse sentido, apesar de parecer a priori. Kant defendeu então que há verdades sintéticas que, no entanto, são conhecíveis a priori e considerou que a tarefa preliminar a toda a metafísica consistia em explicar como era isso possível: como conseguimos alargar o nosso conhecimento por meio do raciocínio puro?
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Explicar como é possível o sintético a priori é também explicar como é possível a metafísica — pois esta é tradicionalmente concebida como uma disciplina a priori que, no entanto, alarga o nosso conhecimento; e é explicar também como é possível que as verdades científicas fundamentais, apesar de serem obviamente sintéticas, sejam necessárias (considerando, como Kant, que o necessário e o a priori são irmãos gémeos).
Em 1787, no prefácio à segunda edição da Crítica da Razão Pura, publicada quatro anos depois dos Prolegómenos, Kant propõe uma inversão de perspetiva para explicar o que de outro modo parece inexplicável:
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Até hoje admitia-se que o nosso conhecimento se devia regular pelos objetos; porém, todas as tentativas para descobrir a priori, mediante conceitos, algo que ampliasse o nosso conhecimento, malogravam-se com este pressuposto. Tentemos, pois, uma vez, experimentar se não se resolverão melhor as tarefas da metafísica admitindo que os objetos deveriam regular-se pelo nosso conhecimento […]. Trata-se aqui de uma semelhança com a primeira ideia de Copérnico; não podendo prosseguir na explicação dos movimentos celestes enquanto admitia que toda a multidão de estrelas se movia em torno do espetador, tentou se não daria melhor resultado fazer antes girar o espetador e deixar os astros imóveis. Ora, na metafísica, podemos tentar o mesmo, no que diz respeito à intuição dos objetos. (Kant, Crítica da Razão Pura, B XVI-XVII)
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Considere-se o caso da geometria. Esta é muitíssimo informativa (ou seja, sintética, na terminologia de Kant) apesar de ser a priori. Mas se a geometria disser respeito à estrutura da realidade física, parece que não conseguiríamos fazer geometria sem recolher informação empírica sobre tal realidade. Contudo, é precisamente isso que fazemos, à primeira vista. Logo, a geometria não diz respeito à estrutura da realidade física: diz respeito, antes, às nossas estruturas cognitivas, que projetam sobre a realidade como que uma matriz espacial.
Sob esta hipótese, não é surpreendente que consigamos fazer geometria a priori, pois estamos a explorar as nossas estruturas cognitivas, digamos. Mas, ao mesmo tempo, este conhecimento é ampliativo, porque não nos limitamos a explicitar conceitos espaciais.
O caso da geometria é o mais favorável à posição de Kant, mas mesmo aqui se levanta uma dúvida crucial: será mesmo verdadeiro que sabemos a priori qual é a estrutura geométrica da realidade? Claro que fazemos geometria a priori, mas há muitas geometrias; como sabemos, exceto pela observação empírica, qual delas descreve a geometria da realidade?
No tempo de Kant só a geometria euclidiana era levada a sério, ainda que algumas alternativas fossem conhecidas; quem apresentou com rigor a geometria não-euclidiana foi o matemático russo Nikolai Lobachevsky (1792–1856), que nasceu quando Kant tinha sessenta e oito anos. Mas mesmo no tempo de Kant seria razoável insistir que tudo o que sabemos a priori raciocinando em termos de geometria é que se determinados postulados forem verdadeiros, então determinados resultados serão verdadeiros; mas não podemos saber a priori se a realidade obedece a esses ou outros postulados. O conhecimento que a geometria pura nos dá da realidade talvez seja inteiramente condicional.
Para compreender o que é o conhecimento condicional ou hipotético, considere-se uma pessoa que não se lembra bem se hoje é quinta ou sexta-feira. Apesar de ela não saber em que dia está, tem o seguinte conhecimento condicional: se hoje for quinta-feira, então é véspera de sexta; e se, ao invés, for sexta-feira, então é véspera de sábado.
Talvez algo análogo ocorra no caso da geometria: sabemos a priori que, se determinados postulados forem verdadeiros, então certos resultados serão verdadeiros. Mas daqui não se infere validamente que sabemos que esses postulados são verdadeiros, pelo que não se infere validamente também que sabemos que tais resultados são verdadeiros. O que sabemos hipoteticamente é que, se a realidade estiver de acordo com uns postulados, será de certa maneira; e se estiver de acordo com outros, será de outra. Mas isto não é ainda saber que a realidade é efetivamente de uma dessas maneiras, ou da outra.
Para sustentar a hipótese de Kant não basta que tenhamos este género de conhecimento condicional da geometria; precisamos de saber a priori que os postulados da geometria euclidiana são realmente verdadeiros, isto é, que descrevem a estrutura do espaço. Mas a história da ciência parece contrariar a tese de Kant: aparentemente, só descobrimos a posteriori que os postulados de Euclides não se aplicam ao espaço porque este é curvo e não plano. Claro que sabíamos a priori que se o espaço fosse plano, então os postulados de Euclides seriam verdadeiros. Mas isto é diferente de saber a priori que os postulados de Euclides são verdadeiros.
Assim, a hipótese de Kant parece implicar que a geometria da realidade é conhecível a priori; mas há razões para pensar que isto não é verdadeiro; logo, há razões para pensar que a hipótese de Kant é falsa.
Além disso, a hipótese de Kant enfrenta uma dificuldade mais central, que é tanto mais difícil de nos darmos conta dela quanto mais a sua teoria se parece com algo que todos aceitamos. Todos aceitamos que vemos a realidade de várias perspetivas diferentes, e que essas perspetivas nos dão imagens diferentes da realidade: “o caminho a subir e a descer”, escreveu Heráclito, “é um e o mesmo”, dependendo de onde estamos nós. (A afirmação de Heráclito foi-nos transmitida por Hipólito, um teólogo romano do século III, e é hoje conhecida como fragmento DK 108.)
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Assim, quando Kant faz a sua revolução coperniciana e afirma que visa explicar o nosso conhecimento fazendo os objetos da cognição depender das nossas estruturas cognitivas, ao invés de ser ao contrário, a ideia parece plausível. Parece que tudo o que Kant está a dizer é que as nossas estruturas cognitivas influenciam o modo como vemos a realidade, o que parece bastante pacífico.
Só que Kant não está apenas a afirmar isso. Afirma também que o próprio tempo e espaço são estruturas por nós projetadas sobre a realidade. Isto significa que entre a nossa representação da realidade e a realidade nenhuma relação espácio-temporal existe.
Kant está por isso muitíssimo longe da nossa ideia banal de que vemos de maneiras diferentes a mesma coisa: é que esta ideia pressupõe a existência de uma relação causal entre a realidade e a nossa representação dela. A nossa ideia banal é que vemos o mesmo caminho ora a subir ora a descer porque a nossa localização espacial é diferente, relativamente ao mesmo caminho, num e noutro caso; a relação causal entre o caminho e a nossa perceção dele é por isso diferente, nos dois casos.
Segundo a teoria de Kant, contudo, nenhuma relação espácio-temporal existe entre a nossa representação da realidade e a realidade, dado que é o próprio espaço e tempo que são projeções da nossa estrutura cognitiva. Kant fica assim com um dilema desagradável: ou elimina a realidade independente da nossa representação dela, o que ele de modo algum quer fazer, opondo-se veementemente a esta hipótese; ou admite que a sua teoria deixa por explicar o mais importante que teria de explicar: a relação existente entre a realidade e a nossa representação dela.
Afinal, este é o problema de fundo que está em causa no debate entre os racionalistas e os empiristas. Ao passo que os segundos defendem que nada de substancial conseguimos saber sobre a realidade exceto em resultado do contacto causal com ela, os primeiros insistem que conseguimos ter conhecimento de aspetos cruciais da realidade por meio do pensamento puro. O preço a pagar pelo empirismo é a incapacidade para explicar como conseguimos saber algo de fundamental sobre a realidade, como é o caso das leis da física, ao invés de meras contingências que se sucedem entre si sem qualquer real conexão. O preço a pagar pelo racionalismo é a dificuldade de explicar o processo que nos permite ter conhecimento de aspetos fundamentais da realidade por meio do pensamento puro.
A teoria de Kant deixa este dilema filosófico na mesma. Não explica, nem pode explicar, como conhecemos nós seja o que for sobre a realidade em si; e não explica, nem pode explicar, que relação existe entre a nossa representação da realidade e a realidade em si.
Os filósofos empiristas são muitíssimo convincentes na sua defesa da ideia de que só a posteriori conseguimos ter conhecimento da realidade física. Por outro lado, sobretudo face aos desenvolvimentos científicos atuais, os racionalistas parecem ter razão ao insistir que a matemática, apesar de ser conhecível a priori, nos fornece conhecimento sobre a realidade física. Com o sintético a priori, Kant tentou conciliar os dois pontos de vista. Ainda que a sua tentativa não tenha sido inteiramente bem-sucedida, é um bom exemplo do género de trabalho paciente que fazem os filósofos, quando tentam compreender melhor aspetos fundamentais da realidade e da nossa representação dela.
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