por Denis Coitinho
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Acompanhando a repercussão que causou o tapa dado pelo ator Will Smith ao comediante Chris Rock na cerimônia do Oscar deste ano, em razão da piada feita pelo apresentador em relação à calvície de Jada Pinkett Smith, esposa de Will, encontramos reflexões de todo tipo: crítica ao machismo de Will por querer defender a mulher desprotegida, crítica ao feminismo branco por não identificar a diferença do lugar de fala das mulheres negras, geralmente não protegidas, e críticas ao ato mesmo em razão de sua violência. Uma pesquisa feita pela Quaest, mapeando três redes sociais com cerca de 492 mil manifestações, constatou que cerca de 74% dos brasileiros concordaram com o tapa, afirmando que ele “defendeu a família e a honra”. Por outro lado, 18% se mantiveram neutros e confirmaram que ambos estavam errados na situação e apenas 8% afirmaram que a atitude do ator foi errada e “que nenhuma piada justificaria o recurso à violência”.
Mas o que me chamou mesmo a atenção foi o uso da distinção entre moral e ética para justificar ou explicar o evento. A reconhecida filósofa, Djamila Ribeiro, a quem eu muito admiro por sua importante contribuição nos debates feministas interseccionais sobre raça, gênero e classe, usou desta bem conhecida diferenciação para melhor compreender o ocorrido. Em entrevista ao Fantástico em 03/04/2022, ela disse assim: “Moralmente, as agressões são condenáveis, óbvio. A gente tem um acordo moral de que agressões são condenáveis. Mas, do ponto de vista ético, a ética é justamente refletir sobre as ações humanas. Eu não concordo com o tapa, mas eu entendo a raiva que ele deve ter sentido em ter visto sua companheira ser agredida na frente de milhões de pessoas”.
Pelo que pude compreender do argumento, o ponto seria distinguir o que tomamos como certo e errado a partir de um acordo ou, quem sabe, a partir das religiões e tradições familiares, e o que consideramos como certo e errado a partir de uma reflexão crítica sobre esses mesmos costumes morais. Então, de forma geral, é errada a agressão (tapa), mas se poderia justificá-la ou, no limite, explicá-la em razão da agressão (humilhação) sofrida, o que teria gerado raiva no agente. Mas, pergunto, qual seria o limite do ético aqui? Se seria ético um ato de violência (tapa) em retribuição a outra violência (humilhação), seria igualmente ético matar alguém por essa razão ou mesmo torturar? Se parece óbvio que não, então, o que importa seria identificar um princípio normativo que toma como errada a violência de forma universal. Ou, como já sabemos desde Sócrates (de Platão), de que seria errado retribuir a injustiça com injustiça (Críton, 49c). Veja-se que, mais tarde, o próprio ator pediu desculpa pelo ocorrido, provavelmente por se sentir culpado por ter cometido um ato violento, dizendo em um post no Instagram que “Violência em todas as formas envenena e destrói”. Também, é importante considerar que explicar uma ação não a torna correta, e isso porque a ética não é descritiva, mas prescritiva.
Tomando isso como ponto de partida, quero investigar se esta distinção é adequada ou não. É bastante habitual encontrarmos na linguagem cotidiana e mesmo na literatura corrente (jornais, revistas, livros didáticos etc.) esta divisão entre ética e moral. Inclusive muitos livros de ética iniciam a reflexão explicando longamente o porque não poderíamos confundir os dois termos. Inclusive, vejo muitos personagens na política e na mídia em geral usarem certas expressões, tais como: “devemos respeitar os princípios éticos e morais” ou “vamos defender os valores éticos e morais”. De forma simplificada, se diz que a moral estaria ligada aos nossos costumes do que é certo e errado, geralmente tendo um fundamento religioso e a ética seria a reflexão crítica sobre a moral. Minha questão é a de saber qual o ganho que teríamos com esta diferenciação e se ela realmente faz algum sentido na linguagem cotidiana. Não estaríamos aqui diante de um mito que muito nos atrapalha para compreender o fenômeno moral?
Deixem-me iniciar pensando em um certo ato, como o de humilhação. Por exemplo, o ato feito por Chris Rock foi um ato errado pela razão dele ter humilhado a atriz Jada Pinkett Smith em um evento público, humilhação caracterizada pela ridicularização de sua calvície. Não há dúvida que esse ato foi errado. Agora, seria esse um erro moral ou ético? Moralmente, humilhar alguém é proibido por nossas convenções, regras religiosas e mesmo pelo que aprendemos na família. Agora, do ponto de vista da ética, poderíamos admitir como correta a humilhação em alguma circunstância? A resposta parece ser negativa, uma vez que por nossos padrões éticos reconhecidos, inclusive, pelas teorias éticas usuais, tais como a deontologia, utilitarismo e ética das virtudes, o ato de humilhação é considerado errado em razão dele ser uma violência cometida contra alguém, geralmente sendo um ato que busca diminuir o valor da outra pessoa, que não maximiza o bem-estar dos envolvidos, que não se desejaria como universal e que seria claramente vicioso. Não seria o mesmo com qualquer ato de violência? Seria possível ele ser moralmente errado, mas eticamente correto? Vejamos melhor a questão.
O principal argumento para esta separação diz que a moral seria igual aos nossos costumes de certo e errado, bom e mau, justo e injusto e a ética seria a reflexão filosófica sobre a moral. Muitos afirmam que a moral tem relação com a religião e/ou com os valores familiares que se aprende desde a infância e a ética tem por função realizar uma reflexão universal sobre os conceitos morais. Assim, apenas a ética mostraria verdadeiramente o certo e errado. É claro que admito que existem certas regras morais que seguimos de forma acrítica e as regras que seguimos após a reflexão.
Mas o problema com esse argumento é que não há algo como a ética, mas várias teorias éticas diferentes e até contraditórias entre si, tais como a ética utilitarista, o modelo deontológico e a ética das virtudes. Veja-se que se quisermos saber se é ético ou não mentir, não encontraremos uma resposta convergente para a questão. Usando o utilitarismo, o ato de mentir poderá ser eticamente correto se ele trouxer as melhores consequências, como no caso de se mentir para salvar a vida de um inocente da morte iminente. Mas, se tomarmos o kantismo em sua forma ortodoxa, todo ato de mentir seria errado em razão de nós não desejarmos que ele fosse universalizado (sua máxima). Porém, considerando a ética das virtudes, sabemos que a honestidade é um traço de caráter desejável e, assim, a mentira seria errada, mas poderíamos admitir certas exceções que devem ser julgadas pelo agente prudente. Vi um vídeo no YouTube em que um professor de filosofia analisava o caso do Oscar, dizendo que do ponto de vista da filosofia de Nietzsche o tapa não seria errado, como seria considerado pela moral cristã ou mesmo pela moral iluminista, e isso em razão do ressentimento que seria gerado no ator. Vejam o imbróglio normativo em que nos metemos quando confundimos a ética com a pura explicação dos atos. Repito aqui em função da clareza: a ética não é descritiva e sim prescritiva. Ela não apenas explica o porque agimos como agimos; ela nos auxilia em saber como devemos agir e viver.
Adicionalmente a isto, podemos ver que o argumento que defende a distinção não parece estar condizente com a nossa linguagem cotidiana, que faz um uso intercambiável dos termos em tela. Por exemplo, a Constituição Brasileira fala de um princípio da moralidade na administração pública. Em seu Art. 37, diz que: “A Administração pública direta ou indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficácia”. E, importante destacar, que a moralidade administrativa tem como parâmetros os valores ou o espírito da legislação, que exige o respeito aos padrões éticos de decoro, boa-fé, honestidade, lealdade, probidade e justiça, entre outros. Também, as diversas categorias profissionais têm códigos de ética, como é o caso do Código de Ética Médica, em que encontramos as normas convencionadas pela categoria, que diz em seu Preâmbulo: “I — O presente Co?digo de E?tica Me?dica conte?m as normas que devem ser seguidas pelos me?dicos no exerci?cio de sua profissa?o, inclusive no exerci?cio de atividades relativas ao ensino, a? pesquisa e a? administrac?a?o de servic?os de sau?de […]”. Por esta distinção pretendida, a Constituição teria um princípio ético na administração pública e não moral e os códigos de ética profissionais deveriam ser chamados preferencialmente de códigos morais. Mas não é assim que ocorre.
Com isso posto, permitam-me ainda apresentar duas razões adicionais contra a distinção em questão. Em primeiro lugar, não há uma diferença etimológica entre os termos moral e ética. Moral em português vem da palavra latina Moralis ou Morale, que significa o que é relativo aos costumes — moris — e traduziu a palavra grega Êthika (Ética em português), que significa uma reflexão filosófica sobre os costumes (ethos) de certo e errado. Assim, etimologicamente não há diferença, uma vez que moral apenas traduziu o termo ética, e isso porque no período medieval e moderno se passou a utilizar o latim como língua filosófica ao invés do grego. Tecnicamente, isto é, assim como utilizado pela filosofia, Moralis é equivalente à Êthika, que, como já sabemos, desde Aristóteles, é um termo que significa uma reflexão crítica sobre aquilo que habitualmente tomamos como bom, belo e justo. Agora, além da questão etimológica, creio que esta distinção é excludente. E isso porque quando falamos da moral como sendo aquilo que nós compreendemos como certo e errado a partir de nossas vivências e a ética como o que é realmente o correto de um ponto de vista teórico, excluímos todos aqueles que não refletem criticamente sobre o seu comportamento. E, convenhamos, a maior parte das pessoas não pensa filosoficamente ou criticamente sobre as suas avaliações morais. O perigo que vejo nessa distinção é que ela possa ser usada para desqualificar a reflexão normativa das pessoas em geral com a alegação de algo que também poderia ser puramente dogmático. E aqui é interessante lembrar Wittgenstein que, em “A Lecture on Ethics”, disse que se existisse algo como um livro de Ética, que realmente fosse um livro de Ética, ele teria que destruir todos os demais livros do mundo, apontando de forma indubitável o caminho correto.
Em segundo lugar, penso que ela não nos ajuda muito a resolver nenhum problema moral relevante. Se nos deparamos com um dilema, essa distinção apenas poderia eliminar as regras normativas que tomamos de forma não reflexiva, passivamente, mas não nos diria muito o que seria o correto ou justo ou como deveríamos escolher em caso de conflito de deveres. Pensemos no conhecido “Dilema de Heinz”, como formulado por L. Kohlberg nos Essays on Moral Development (Vol. 2, 1984). A esposa de Heinz tem um tipo muito agressivo de câncer e há um farmacêutico na cidade que descobriu um medicamento que pode salvá-la. Acontece que o remédio é muito caro e Heinz não tem todo o dinheiro necessário para comprá-lo. Ele pede ao farmacêutico que lhe venda o remédio mais barato, mas o farmacêutico recusa. Devido a esta recusa, deve Heinz roubar o medicamente para salvar a vida de sua esposa ou ele deve deixá-la morrer?
Note-se que o conflito valorativo se dá entre o nosso dever de respeitar a propriedade e o nosso dever de cuidado a um familiar muito próximo. Sabemos que é “errado roubar” e que, da mesma forma, seria errado apenas “assistir alguém morrer” quando havia alternativas. Mas será que a distinção nos ajudaria de alguma maneira, talvez dizendo que o valor da propriedade seria o moral e o valor da vida seria o ético e, dessa forma, o roubo não seria errado? O problema é que quando fazemos isso nós estamos realizando uma distinção arbitrária, pois em outras circunstâncias o valor da propriedade será tomado claramente como ético, especialmente quando pensamos que qualquer desrespeito à propriedade pessoal é sempre errado. Por exemplo, seria correto torturar alguém? E o estupro? Se isso não poderia ser considerado eticamente correto, pois devemos sempre respeitar a dignidade humana, como seria ético o roubo? O problema é que em um dilema o papel da reflexão ética não é a de apontar o que tomamos por certo de forma não reflexiva, mas, melhor, é a de tentar acomodar os nossos diversos valores morais ou éticos que são relevantes tanto em nossa vida pessoal como social.
O papel da reflexão ética aqui seria o de justificar por que a defesa da “vida” parece mais importante que a defesa da “propriedade”, mas, isso, sem relativizar o próprio valor da “propriedade” mesma. Ou se fosse assim, teríamos que aceitar como justo quando alguém rouba alguém na rua, ou quando alguém aplica um golpe nos aposentados via WhatsApp. Mas não é assim que julgamos, ao contrário, nos indignamos quando esses golpes ocorrem. Mas não seria o mesmo quando pensamos sobre o erro dos atos violentos? Se eles puderem ser explicados ou justificados em nome de uma pretensa superioridade ética, não poderia isso implicar uma flexibilidade moral bastante perigosa, de forma a considerar a correção dos atos de forma ad hoc? E considerar a ética como uma reflexão ad hoc, já não seria decretar o próprio fim da ética?
Apenas um último comentário. Minha intenção não foi a de polemizar gratuitamente com alguém que muito respeito, mas a de me contrapor a uma posição hegemônica, tanto na comunidade em geral como na academia, a exemplo do que ensinam Clóvis de Barros Filho, Mário Sérgio Cortella e Leandro Karnal. E como já dito pelo mestre Aristóteles, “amigo de Platão, porém mais amigo da verdade”.
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