por Pedro Ribeiro
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“Diz-se que o príncipe está a salvo da lei quanto a força coativa dela. Pois ninguém pode ser obrigado por si mesmo; e a lei não tem força coativa senão pelo poder do príncipe . . . Está ainda o príncipe acima da lei por poder mudá-la, se for conveniente, e dispensar dela conforme ao lugar e ao tempo”
Santo Tomás de Aquino
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I
“As revoluções são os faróis da Providência e da história”, dizia Juan Donoso Cortés (1809 – 1853), o Marquês de Valdegamas, em uma comovente, confessional e autobiográfica carta ao seu amigo Conde de Montalembert, datada de 26 de Maio de 1849. E explicava: “Os que tiveram a fortuna ou a desgraça de viver e morrer em tempos sossegados e aprazíveis, pode dizer-se que atravessaram a vida, e que chegaram à morte, sem sair da infância. Só os que, como nós, vivem no meio das tormentas, podem vestir-se da toga da virilidade, e dizer, de si próprios, que são homens”. Ora, em sentido estrito, não é certamente o tempo que vivemos uma era revolucionária. Com efeito, não vemos, tal como via Donoso Cortés – era na dita Primavera dos Povos, afinal, que ele pensava – reis europeus sendo depostos, a república e o sufrágio universal proclamados em Paris, multidões proletárias tomando as ruas com seus primeiros suspiros socialistas, nações subalternas declarando independência, Pernambuco querendo separar-se do Império Brasileiro e os Estados Pontifícios sitiados, com o Papa fugindo de Roma vestido de frade, para não ser morto pelas massas. Nem por isso, contudo, deixa de ser extremamente difícil, angustioso e “no meio de tormentas”, para usar a fórmula donosiana, o período histórico presente.
De fato, pensado em sentido amplo e profundo, o drama do coronavírus, seja por seus aspectos imediatos, especificamente médicos, biológicos e científicos, seja por todos os seus complexos efeitos políticos, econômicos e sociais, é, sem dúvida alguma, uma revolução, isto é, um estado de crise aguda e radical, no qual a normalidade da vida é suspensa e a história entra em ruptura. Sentimo-nos perdidos, desencontrados, nossa bússola existencial não tem mais norte. Estamos, pois, diante de um fenômeno que exige, que reclama, por sua própria natureza, uma reflexão mais abrangente, de ordem filosófica. E sendo o tema de minha dissertação de mestrado, Donoso Cortés, um pensador cuja vida e obra se construíram precisamente a partir do confronto com a revolução – no seu caso, repito, com a Primavera dos Povos de 1848 –, tomei eu a ousadia, nesta minha primeira contribuição ao excelentíssimo Estado da Arte, de provocar um inusitado encontro, um curioso embate, cuja contemplação, espero, interesse ao nobre leitor que me acompanha. Nas próximas linhas e parágrafos, enfim, uma só e direta pergunta irá guiar nossa meditação: “O que terá o Marquês de Valdegamas, este velho e contrarrevolucionário filósofo espanhol de meados do século XIX, a nos ensinar sobre a grave crise política e institucional que o desesperante coronavírus traz à tona?”
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II
Não era, por certo, um mero jogo de cena ou palavreado retórico a fórmula donosiana com que iniciamos este artigo. Pelo contrário. Dizer que “As revoluções são os faróis da Providência e da história” se tratava, antes, da descrição de uma mais que profunda experiência vital. Em verdade, tendo apenas 39 anos de vida, Juan Francisco María de la Salud Donoso Cortés era já, em 1848, um escritor e político bastante experiente, a ponto de ter sido, entre tantas outras coisas, o principal redator da constituição espanhola em vigência, e encontrava-se, naquele ano, em Paris, a mandato direto da Rainha Isabel II, como embaixador e ministro plenipotenciário do Estado espanhol junto aos franceses. O descendente de Hernán Cortés viu, pois, a Primavera dos Povos não em Espanha, sua pátria natal, mas ali, na capital francesa, ponto de partida e de maior radicalidade de toda aquela acachapante onda revolucionária, a qual, nascida com a deposição da monarquia liberal de Luís Felipe de Orleães, o “rei burguês”, espalhou-se por todo o mundo rapidamente. Experenciar aquele movimento com tamanha intensidade, vivenciá-lo em seu nascedouro, marcou de tal maneira o filósofo espanhol que, dando fim a um longo processo que já se arrastava havia dois anos, desde a morte de Pedro, seu irmão predileto, a Primavera fez Donoso mudar por completo suas convicções políticas e religiosas: de liberal doutrinário (uma espécie de liberalismo conservador bem à moda na época, defendido por autores como Benjamin Constant, Guizot e Victor Cousin) tornou-se um reacionário, um contrarrevolucionário radical, na linha de De Maistre, Bonald e Chateaubriand; de um católico morno e não praticante, de índole meramente cultural, tornou-se um católico empedernido, cuja fé, conforme ele mesmo dizia, passou a governar seus pensamentos, inspirar seus discursos e guiar suas ações.
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O primeiro grande fruto teórico, por assim dizer, desta reviravolta existencial foi o famoso discurso parlamentar pronunciado pelo Marquês de Valdegamas nas Cortes Espanholas em 4 de Janeiro de 1849. De fato, terminada e estabilizada a revolução em França, com a eleição de Luís Napoleão Bonaparte à presidência da república, regressou Donoso ao território espanhol, reassumindo seu posto com deputado nas Cortes. Àquela altura, porém, uma só era a questão que agitava o parlamento do país: o procedimento adotado no ano anterior pelo poderoso general Narváez, primeiro-ministro em exercício. Com efeito, na Espanha, diferente do que se dera em vários outros reinos europeus, a revolução, apesar de seus intentos, não obtivera sucesso, e Isabel II permanecia intacta no trono. Mas esta manutenção da ordem pública estabelecida tinha nome e sobrenome: Ramón María Narváez y Campos. Quer dizer, não é que não se tentou integrar a Espanha à Primavera dos Povos. Motins, houve. Tentativas de rebelião e de proclamação da república, idem. Contudo, enérgica e duramente combatidas pelo general Narváez, que não receou recorrer à violência, falharam todas. Ora, aos olhos de Donoso Cortés, bem como dos demais membros do Partido Moderado, de ideologia conservadora, fizera o primeiro-ministro aquilo que era preciso, preservando o país da catástrofe. Aos olhos, porém, do chamado Partido Progressista, de índole liberal, Narváez havia passado de todo limite e agido como um tirano. Tão logo, então, voltou o Estado à normalidade e reuniram-se de novo as Cortes, no começo do ano seguinte, propuseram e conseguiram os progressistas que a conduta do chefe de governo fosse posta em deliberação e submetida ao juízo político do Congresso Nacional. E lá se foi o Marquês de Valdegamas, agora um reacionário e católico convicto, ainda muito impressionado pelo banho de sangue que vira em Paris, subir à tribuna, como principal orador dos Partido Moderado, para defender a conduta do general primeiro-ministro.
No fim das contas, o discurso donosiano daquele 4 de Janeiro, conhecido posteriormente como Discurso sobre a Ditadura, muito mais do que uma simples peça de oratória parlamentar, revelou-se um verdadeiro ensaio de filosofia política, e, elogiado por nomes do porte de Schelling e Metternich, alçou seu autor à mais completa fama internacional. Pois bem: porque tal fenômeno se deu e porque as ideias donosianas expostas naquele dia são úteis à compreensão das questões filosófico-políticas postas pelo coronavírus, eis o que examinaremos a partir de agora.
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III
“Senhores, qual é o princípio do Senhor Cortina?” – perguntou o descendente de Hernán Cortés, fazendo alusão ao principal orador do partido liberal, na passagem-síntese de seu célebre discurso – “O princípio de sua senhoria, bem analisado seu discurso, é o seguinte: na política interior, a legalidade: tudo pela legalidade, tudo para a legalidade, a legalidade sempre, a legalidade em todas as circunstâncias, a legalidade em todas as ocasiões. Mas eu, senhores, que creio que as leis foram feitas para as sociedades, e não as sociedades para as leis, digo: a sociedade; tudo para a sociedade, tudo pela sociedade, a sociedade sempre, a sociedade em todas as circunstâncias, a sociedade em todas as ocasiões.” E emendou a conclusão óbvia, que justifica o nome pelo qual o discurso ficou conhecido: “Quando a legalidade basta para salvar a sociedade, a legalidade; quando não basta, a ditadura”.
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Naturalmente, é extremamente fácil ler um texto recortado como este de maneira estúpida e grosseira, vendo em Juan Donoso Cortés não mais do que um apologeta do autoritarismo brutal, ou, na melhor das hipóteses, como um hobbesiano sem brilho. Nada disso, contudo, corresponde aos fatos. E, concordando-se ou não com as ideias do filósofo espanhol, é preciso compreendê-las tais como elas verdadeiramente são, não como nos soam. Ora, antes de tudo, é preciso ter em mente que o Marquês reacionário era um homem de meados do século XIX. Não usava ele, portanto, o termo ditadura na mesma conotação que tem hoje e que passou a possuir no século XX, com o sentido de um regime autoritário estabelecido e de tempo indeterminado. Ao revés, utilizava Cortés a palavra no seu sentido técnico e original, advindo do direito romano, onde ditadura indicava um regime excepcional e extraordinário, inclusive previsto em lei, necessário, mas de curta duração, no qual, diante de um perigo drástico e iminente, a legalidade comum era suspensa e um homem público de confiança (o próprio Júlio César, por exemplo, foi nomeado pelo Senado para tanto por mais de uma vez) era investido de todo o poder público necessário para resolver a situação. Em suma, o que o pensador reacionário defendia não era uma suspensão completa e indeterminada da ordem legal, tampouco uma soberania ilimitada e absoluta do Estado, aos moldes de Hobbes, mas sim a necessidade de um regime excepcional em um estado de exceção. Para resumir numa fórmula, normas valem para circunstâncias normais; circunstâncias decisivas exigem decisões.
A ditadura, “esta palavra tremenda (que tremenda é, ainda que não tanto quanto a palavra revolução, que é a mais tremenda de todas”; “a ditatura”, argumentava Donoso, “em certas circunstâncias, em circunstâncias dadas, em circunstâncias como as presentes, é um governo legítimo, é um governo bom, é um governo proveitoso, como qualquer outro governo; é um governo racional, que se pode defender na teoria, como se pode defender na prática”. Três considerações, três argumentos essenciais conduziam o autor contrarrevolucionário a esta conclusão: um de ordem estritamente filosófica, um de ordem histórica e um de ordem teológica. Em primeiro lugar, “a vida social, tal como a vida humana, se compõe da ação e da reação, do fluxo e refluxo de certas forças invasoras e de certas forças resistentes. Isto é a vida social, assim como esta é também a vida humana”. Pois bem, “não existindo as forças resistentes, tanto no corpo humano quanto no corpo social, senão para rechaçar as forças invasoras, têm elas que proporcionar-se necessariamente ao seu estado”, de modo que quando as enfermidades do corpo social se encontram agudas e concentradas, “sem que ninguém o possa impedir, sem que ninguém tenha direito de impedi-lo, as forças resistentes por si mesmas se reconcentram em uma mão. Esta é a teoria clara, luminosa, indestrutível da ditadura”. Em segundo lugar, “esta teoria, senhores, que é uma verdade na ordem racional, é um fato constante na ordem histórica”. De fato, não há, em toda a história humana, um único Estado constituído que não tenha previsto, no seu próprio ordenamento jurídico, fosse ele escrito ou oral, estados de exceção, nos quais a legalidade cotidiana fica, em todo ou em parte, suspensa. A nossa constituição cidadã de 1988, inclusive, que Cortés, por razões óbvias, não pôde conhecer, os prevê – e são dois: o estado de defesa e o estado de sítio. Por fim, assevera Donoso, com seu irrefreável instinto teológic:, “O universo é governo por Deus, se pode-se dizer assim – e se em coisas tão altas pudessem se aplicar as expressões da linguagem parlamentar – constitucionalmente”, ou seja, “é governado por certas leis precisas, indispensáveis, às quais se chama causas secundárias”. “Pois bem, senhores: se com respeito ao mundo físico, Deus é o legislador, (…) governa Deus sempre com estas mesmas leis que Ele a si mesmo se impôs em sua eterna sabedoria e às quais nos sujeitou todos? Não, senhores: pois algumas vezes, direta, clara e explicitamente manifesta sua vontade soberana, quebrando estas leis que Ele mesmo se impôs, e torcendo o curso natural das coisas. E bem, senhores: quando age assim, não se poderia dizer, se a linguagem humana pudesse se aplicar às coisas divinas, que age ditatorialmente?”
Tal como, na ordem divina, segundo o credo cristão, recorre o Senhor aos milagres quando não são suficientes os recursos das leis da natureza, assim também, na ordem humana, segundo Donoso, tem o poder público a prerrogativa de recorrer ao estado de exceção quando as leis vigentes se mostram recursos limitados para sanar o mal social. Eis aí, em síntese, a tese fundamental do Discurso sobre a Ditadura. Tese esta que, por mais que a tenhamos visto aqui de um modo superficial, como é inevitável no escopo de um curto artigo, já mostra, por sua própria natureza, transcender em muito o debate imediato na qual estava envolvida. Defender o general Narváez e suas medidas como primeiro-ministro no contexto de 1848 era, para o Marquês de Valdegamas, não mais do que uma questão de ocasião e circunscrita historicamente. A substância profunda de seu pronunciamento, ao contrário, ultrapassava aquelas circunstâncias imediatas e por isso se comunica conosco ainda hoje, lançando luzes poderosas sobre o drama do coronavírus. De fato, como veremos agora, confrontando suas ideias com nosso tempo, o que Donoso Cortés fez naquela tribuna das Cortes Espanholas não foi apenas atacar os princípios particulares do Senhor Cortina ou do Partido Progressista, mas sim refutar o próprio eixo da tradição política liberal, hegemônica no Ocidente desde o século XVII.
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IV
Formulado teoricamente pela primeira vez, com todos os seus traços essenciais, na obra de John Locke (1632 – 1704), sobretudo em seu Segundo Tratado sobre o Governo Civil; corporificada e encarnada na prática pela primeira vez também nesta mesma época, através da Revolução Gloriosa de 1688, que deu início ao parlamentarismo inglês, o liberalismo político pode ser definido de diferentes maneiras, a partir dos enfoques e critérios privilegiados pelo pesquisador. Um capítulo quase todo, aliás, de minha dissertação de mestrado é dedicado exclusivamente a este problema. Seja como for, é indiscutível, para qualquer estudioso dedicado do assunto, que uma das características centrais do liberalismo é o seu esforço permanente, inédito antes na história humana, e cada vez mais radical conforme a tradição liberal foi se desenvolvendo, de submeter por completo a ordem política à ordem jurídica, isto é, o Estado à lei, o poder à norma, a força decisória dos governantes a regras públicas e claramente estipuladas. A necessidade de todas as revoluções liberais por, tão logo chegarem ao poder, publicarem uma longa e extensa lista dos direitos fundamentais e invioláveis dos cidadãos é um exemplo disso – que o digam a Bill of Rights da Revolução Gloriosa, a Declaração dos Direitos dos Bons Homens da Virgínia e a Declaração de Independência dos Estados Unidos da Revolução Americana ou a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão da Revolução Francesa, seja na sua versão aburguesada de 1789 ou na republicana de 1793. Mas há outros inúmeros casos exemplares também bastante significativos, como as lutas enfáticas, desde Locke, pela tripartição dos poderes, pela limitação clara das prerrogativas do executivo, pela instauração de parlamentos permanentes – algo incomum na Europa daqueles tempos –, por um poder judiciário independente, etc. Sobretudo, enfim, e acima de tudo, nada manifesta melhor esta obsessão liberal por submeter o político ao jurídico do que o constitucionalismo, isto é, o grandiloquente projeto, especificamente moderno e nunca antes conhecido, de instaurar em cada país uma Carta Magna, uma lei suprema, escrita em papel, que submeta, controle e comande todas as leis, submetendo, controlando e comandando, portanto, ao menos por via indireta, todo e qualquer ato do Estado e dos homens públicos.
Seria desnecessário elencar aqui as evidentes vantagens conquistadas por esse processo, que Max Weber chamou de racionalização da política e de instauração de uma dominação burocrática ou racional-legal. Nenhum de nós, certamente, gostaria de viver sob o arbítrio livre de um monarca absolutista do século XVI, quando se dizia entre o povo “assim quer o rei, assim é a lei”, ou então submeter-se ao julgamento de um processo criminal sem poder fazer petições de habeas corpus ou coisa que o valha. A questão fundamental, contudo, para a qual nos atenta Donoso Cortés – ele próprio que fora um liberal tão engajado a maior parte de sua vida –, é que querendo-se remediar um mal, caiu-se noutro, tão ou mais perigoso. E perigoso justamente porque sutil e facilmente despercebido. Com efeito, uma coisa são os benefícios concretos obtidos ao longo da história graças ao legalismo liberal; coisa diferente é o legalismo liberal em si mesmo, como doutrina política e filosófica abrangente. Quer dizer, um sujeito pode perfeitamente (e de modo honesto) desfrutar ou mesmo defender com ardor aqueles benefícios sem necessariamente advogar o fundamento teórico que lhes deu origem, tal como pode, analogamente, desfrutar dos direitos trabalhistas e defendê-los, mesmo reconhecendo o papel histórico importante do fascismo em sua implementação, sem que por isso deva ser considerado um fascista. A gênese e a validade de uma ideia ou de um fato não se confundem – eis uma regra elementar do debate intelectual –, e o que se argumenta aqui é contra a gênese teórica da dominação burocrática, o liberalismo político, não contra tudo o que esta dominação ensejou no mundo.
Com efeito, é evidente a importância da lei, é evidente a necessidade absoluta, em circunstâncias normais (que são, como é claro, a maior e mais gigantesca parte das nossas vidas), de se respeitar do modo mais zeloso possível a ordem jurídica, de ser um legalista. Mas é igualmente preciso que esteja sempre em mente, tanto na cabeça dos filósofos políticos e do direito, quanto na dos cidadãos e, em especial, na dos políticos de ofício, que a ordem jurídica não se sustenta por si mesma. Mais: que ao contrário do que ensinam os mestres do liberalismo, não é o político que deriva do jurídico, não é o poder que deriva da lei, não é a força que precede da norma, mas, antes, é a ordem política que sustenta a legalidade, é poder que dá força à regra, é a agência real e concreta dos homens de Estado que dá vigor e respeito social à norma instituída. De fato, donde vêm as constituições? Caem acaso elas do céu, enviadas pelos anjos? Ou não são, pelo contrário, fruto dos atos de força, sejam estes golpes de Estado, quarteladas, declarações de independências ou revoluções? Nosso país já teve, em menos de 200 anos, sete Cartas Magnas, todas escritas e planejadas para durar para sempre, mas tão logo os pactos políticos concretos que as sustentavam caíram, foram-se elas embora e seu vigor tornou-se pó. No mundo real, portanto, não é a ordem jurídica que funda a ordem política, como querem os liberais, mas antes precisamente o contrário: são os processos sócio-políticos concretos, dados em momentos-chave de crise e ruptura, que criam ordens legais estáveis e duradouras, às quais, como cidadãos, devemos completo respeito e devoção, até que venha outra hora política decisiva e criadora. E note-se: não há um juízo de valor aqui, mas apenas juízo de fato, uma descrição nua e crua da realidade tal como ela é, sempre foi e sempre será.
Em 1840, não tinha Dom Pedro II a idade legal para assumir o trono e não havia na Constituição Imperial brecha que permitisse ao então rapaz de 15 anos tornar-se monarca antes da sua maioridade. Acaso deixou ele por isso de ser reconhecido e obedecido como Imperador depois que o Congresso assim o sagrou, violando a lei? Por certo que não. Afinal, apocalíptica era a crise brasileira naquele fim do período da Regência, com rebeliões estourando por toda a parte e exigindo um símbolo firme de unidade nacional. Do mesmo modo, quando, em 1º de Abril de 1964, o parlamento brasileiro declarou vaga a presidência da república, invocando hipocritamente a norma que proibia ao presidente sair do país sem autorização do poder legislativo, é evidente que violava o Congresso a ordem legal. Primeiro, porque João Goulart não havia saído do país coisíssima nenhuma, como, aliás, os próprios parlamentares sabiam, já que receberam uma carta oficial com este informe durante a sessão que depôs o chefe do executivo. Segundo, porque Jango não fugira corrido ao Rio Grande do Sul por qualquer ataque súbito, mas porque tropas militares sublevadas foram em massa ao Rio de Janeiro e buscavam matá-lo. Novamente, pergunta-se: mudou na prática alguma coisa o fato de, no papel, ser Jango o presidente do país e não o marechal Castelo Branco? Por certo que não, uma vez que a força política concreta se encontrava junto a este último. E assim se fez o trágico (e nefando para o país) golpe militar de 1964. Por fim, em 2016, ao longo do processo de impeachment de Dilma Rousseff, quantos de nós, honestamente, seja para defender ou criticar o impedimento da petista, estávamos, depois de um longo e detido estudo das leis sobre o tema, realmente movidos por razões estritamente jurídicas e não por nossas crenças políticas as mais pessoais?
O estado de exceção, portanto – e Carl Schmitt foi, no século XX, o pensador que melhor aprendeu esta lição de Donoso –, é muito mais do que um simples recurso ao qual, vá lá, por vezes tem de se recorrer, pois é inevitável para que o mundo não se acabe. Não. De modo muito mais profundo, a ditadura, no sentido preciso com que Donoso emprega esta palavra, é o próprio substrato, é o próprio fundamento de todo e qualquer regime político. Naturalmente, como vivemos a maior parte de nossas vidas em circunstâncias normais, de ordem legal minimamente vigorosa e respeitada – mais ainda, como estamos todos, queiramos ou não, impregnados da mentalidade liberal, hegemônica no mundo moderno há séculos –, tendemos geralmente a crer que é esta a substância mais profunda da vida política: Constituição, habeas corpus, apelo a direitos fundamentais consignados por escrito, etc. Mas não é assim. Tal como é no milagre que Deus revela o que há de mais profundo em si mesmo – a sua onipotência sublime – e não quando meramente mantêm as leis da natureza funcionando, aos moldes de um supervisor logístico; de igual maneira, é nos momentos brutais e de crise, é nas circunstâncias extremas e decisivas, quando não há lei que sustente a pátria ou normas escrita que consiga governar a realidade, é aí, precisamente aí, que os grandes eventos, bons ou maus, se mostram, e a ordem política desvela sua mais profunda face. Em suma, para usar a linguagem mais popular possível, é quando o bicho pega que se vê quem é quem.
Hoje, seja confinados em casa por cuidados com a saúde, submetidos ao mais cansativo estresse e à hipocondria involuntária, seja indo à rua para resolver problemas práticos de emergência ou para exercer serviços essenciais para a sociedade, num estresse e hipocondria maiores ainda, vivemos, obviamente, sob um estado de exceção, e estamos mais do que aptos, como estava Juan Donoso Cortés em Paris, no distante 1848, para compreender os limites do legalismo liberal. Ameaçados por um vírus, submetidos a uma pandemia, não hesitamos em aceitar, com relativa facilidade, a drástica redução dos nossos constitucionais e legalíssimos direitos de ir e vir, de livre associação, de livre iniciativa econômica, de livre expressão religiosa em culto público. Intimidados e fragilizados pelo inimigo biológico invisível, mudamos muitos de nós, com velocidade espantosa, as nossas convicções mais íntimas. Ou não vimos todos, nas últimas semanas, os mais ferrenhos e radicais liberais econômicos, defensores do Estado mínimo sem qualquer concessão, tornaram-se subitamente advogados firmes da assistência estatal abrangente para os pobres, da criação de linhas de crédito a juros baixos e por bancos estatais para micro, pequeno e médio empresários, bem como do investimento governamental pesado em pesquisa médico-científica e no sistema universal de saúde? A lei do teto de gastos públicos, defendida e avidamente celebrada por estes, quando de sua aprovação, dois ou três atrás, foi desautorizado, com anuência dos estadoministas e do Congresso Nacional, como num passe de mágica. A lei da renda básica de cidadania, de autoria do então senador Eduardo Suplicy, foi oficialmente promulgada em 2004, mas nunca regulamentada em seus detalhes práticos e por isso nunca implementada. Agora, com o covid-19 e seus efeitos sociais, tornou-se, de súbito, uma necessidade nacional de primeira ordem, consenso da direita, da esquerda e do centro, regulamentada pelo parlamento e sancionada pelo executivo em temo recorde. Por que será, senão por que é a força dos fatos que, em última instância, move o direito?
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Repito: não há em nada que se disse neste ensaio um juízo de valor, uma como que glorificação ou aprovação sem peias da violação da legalidade. Até porque o fato do governante, em circunstâncias muitíssimo específicas e raras, estar acima da ordem legal não significa que ele esteja acima da ordem moral. Desta, da ordem da justiça, que ultrapassa a da lei, nenhum ser humano está acima – no que se prova que nem toda ditadura é legítima, como o próprio Donoso assinalava textualmente. O que há, antes, neste escrito, é apenas o atestado de um fato, e de um fato especialmente importante para o nosso momento. A pandemia e tudo que a acompanha, caros amigos, uma hora ou outra, irá passar. Sairemos, enfim, um dia dessa crise, mais fortes, esperamos, do que nela entramos, e não poucas serão as lições que ela nos dará. Que uma delas, desejo, seja aquela ensinada pelo velho Marquês de Valdegamas: legalidade sim, legalismo doutrinário não. Não será amanhã, na paz futura que almejamos, da sociedade reconstituída em seu cotidiano, que a ordem política revelará sua mais profunda essência, mas é agora, na dor e no sofrimento, na angústia e no desespero, quando gememos por estadistas, clamando confusos por quem zele por nós e governe, literalmente, por decreto, que a politicidade do homem traz à tona todo o seu ser. O legalismo, oco, ao contrário, tudo confunde e, como dizia Donoso, só domina o mundo quando este, inconsciente e formalista, não sabe se vai com Cristo ou Barrabás.
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