por Sofia Stein
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Em um momento histórico no qual ficção e realidade parecem em muitas ocasiões não se distinguir, em grande parte porque as assistimos ambas por meio de gravações e vídeos, vale relembrar um pouco da história daqueles pensadores que estavam exclusivamente preocupados com a verdade, embora tenham concluído que esta dependia de nossos limitados sistemas perceptivos e linguísticos, e, logo, seria contingente.
Um dos principais filósofos norte-americanos do século XX, Willard van Orman Quine (1908 – 2000), ingressou nas discussões sobre a verdade do empirismo lógico do Círculo de Viena (1924 – 1936) guiado pelo seu interesse por indagações lógicas e, principalmente, pela sua curiosidade em como traduzir a matemática à lógica. Concentrou sua atenção na obra, de Rudolf Carnap (1891–1970), Der logische Aufbau der Welt (A Construção Lógica do Mundo) (1928).[1] Esse livro é considerado por Quine a primeira real tentativa de concretizar o sonho empirista de traduzir as frases mais gerais de teorias científicas em frases cujo conteúdo semântico vincula-se imediatamente aos inputs da experiência sensorial.
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Entretanto, como o próprio Carnap admite, o Aufbau seria apenas o começo de uma construção completa e sistemática da redução desejada. Parte do aparato simbólico carnapiano para representar as relações entre as vivências de primeira pessoa, que deveriam servir de fundamento à hierarquia conceitual do pensamento, em sua reconstrução do conhecimento humano, provinha da lógica matemática de Gottlob Frege (1848 – 1925) e da teoria dos conjuntos do século XIX. Teoria dos conjuntos e lógica investigam aspectos da linguagem denominados formais: estruturas relacionais e inferenciais. Na sua construção, Carnap procurava demonstrar que a estrutura formal da linguagem humana é aquela que molda vivências em conceitos. Conceitos para cores, por exemplo, como “x é azul” —interpretando conceitos como predicados—, poderiam ser construídos a partir de “relações de semelhança entre partes de vivências momentâneas”. Carnap, em espírito já bastante naturalista e cientificista, menciona a psicologia da Gestalt e as neurociências como promessas de no futuro complementar suas reflexões filosóficas, por meio de evidências empíricas, que mostrariam que sua reconstrução descreveria aquilo que de fato ocorre na mente humana.
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O trabalho epistemológico conceitual efetuado por Carnap é chamado por Quine no seu mais famoso artigo, “Two Dogmas of Empiricism” (Dois Dogmas do Empirismo, 1951),[2] de reducionismo radical, por alegar que todo enunciado significativo possa ser traduzido por um enunciado, verdadeiro ou falso, sobre a experiência imediata. Segundo Quine (“Naturalized Epistemology”, 1969),[3] o exemplo máximo da pretensão empirista de tradução dos enunciados mais teóricos e gerais das ciências em enunciados de observação seria justamente essa obra de Carnap.
Embora Quine concorde com as duas teses básicas do empirismo, quais sejam: (a) de que toda a evidência de que a ciência dispõe seja evidência sensorial e (b) de que qualquer processo de inculcar significados a palavras terá de repousar numa evidência sensorial, o autor critica o empirismo clássico por abrigar o mito de que para todo enunciado empírico exista “um domínio único de eventos sensoriais possíveis, tais que a ocorrência de qualquer um deles contribuiria para a probabilidade da verdade do enunciado” (1980 [1951], p. 245). Em termos gerais, sua posição é a de que eventos empíricos podem corroborar uma teoria, ou confirmar as suas previsões, porém não confirmam uma única frase, equação ou lei, em separado, a não ser no caso de frases observacionais. O eclipse observada desde Sobral em maio de 1919 não confirmou apenas a equação de campo da Teoria Geral da Relatividade, porém, simultaneamente, uma série de pressupostos geométricos e relativos à compreensão do que seja tempo, espaço, matéria, energia e velocidade etc., que interagem nesta teoria e permitem, em conjunto, estabelecer previsões observacionais.
Os simultâneos apoio e crítica de Quine ao empirismo desembocam, pois, em uma posição holista em relação ao significado de conjuntos de frases em teorias ou sistemas linguísticos. Essa concepção sustenta que os enunciados da ciência não podem ser submetidos à avaliação empírica isoladamente, mas apenas em conjuntos “mais ou menos amplos”. Entre leis gerais das ciências e frases de observação, usadas em testes e experimentos científicos, temos frases com graus variados de conteúdo empírico. As inter-relações entre as frases determinam o significado do todo, que, por sua vez, ajusta-se às modificações dos valores-verdade —verdadeiro ou falso, das frases observacionais da periferia da totalidade do universo linguístico. Algumas frases, portanto, teriam uma relação muito próxima aos estímulos sensoriais, causados por objetos e eventos do mundo exterior, que alcançam o sujeito de conhecimento, ao passo que outras, chamadas de frases teóricas, ficariam em uma posição mais afastada da periferia empírica e, portanto, teriam uma relação altamente mediada com esta empiria. Caso sejam essas frases observacionais consideradas falsas, sua falsidade não implicará a falsidade de leis teóricas específicas: é o todo da teoria que sofrerá os efeitos da negação da frase observacional e exigirá reformulações, adaptações, ou, por fim, seu abandono.
A psicologia empírica, segundo Quine, vem em auxílio da teoria do conhecimento filosófica por tratar do ser humano sob o aspecto de seu comportamento em relação a outros seres, eventos ou objetos, e deve fazer parte das ponderações filosóficas. Critica, neste sentido, os filósofos da tradição racionalista, cuja pretensão seria alcançar uma visão do conhecimento apenas pela reflexão racional a priori, sem se utilizar da observação do comportamento humano. Propõe, pois, a naturalização do pensamento filosófico, sua aproximação às ciências naturais. A conclusão alcançada é a de que não temos como evitar a circularidade de uma análise epistemológica e, portanto, não podemos nos considerar, como filósofos, afastados dos problemas das ciências empíricas, pois não estamos em relação a elas em uma situação privilegiada. Mostra, desta forma, a circularidade metodológica inerente tanto às ciências empíricas quanto à própria filosofia: não há uma base segura, um porto seguro, de onde partir para conhecer o mundo, toda empreitada epistemológica já vem carregada de pressupostos teóricos e empíricos. No momento em que a epistemologia perde o seu lugar especial em relação às ciências, fica liberada para se utilizar dos utensílios teóricos e experimentais dessas. A esta nova epistemologia, Quine chama de epistemologia naturalizada.
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Em outra frente, a busca quineana pelas condições básicas de aprendizado da linguagem, com uma primeira análise do aprendizado de enunciados observacionais, uma posterior análise da composição geral da linguagem a partir desses e de outros componentes linguísticos sintáticos, visou mostrar de que maneira emerge o significado na linguagem e qual a relação entre uma aprendizagem ostensiva de palavras e a construção de frases mais elaboradas e complexas —incluindo frases que nos comprometem ontologicamente, tal qual as frases existenciais e outras frases gerais das teorias científicas. No entanto, não há propriamente um caminho específico a ser trilhado entre certas frases observacionais e frases teóricas específicas. A complexa elaboração das linguagens e os prováveis vazios entre frases que aprendemos a enunciar em contextos apropriados —isto é, os prováveis abismos lógicos e semânticos entre frases usadas teoricamente —faz com que se torne inviável uma completa exposição das relações sintáticas e semânticas entre as frases de um corpo teórico, impossibilitando a verificação de frases teóricas isoladas, embora preservando a possibilidade de se falar em evidências factuais de um corpo teórico ou em sua refutação parcial.
Além da psicologia empírica, a descrição um tanto hipotética do aprendizado da linguagem, seja de uma criança (The Roots of Reference,1974),[4] seja de um tradutor (Palavra e Objeto, 1960),[5] auxilia Quine na elaboração de sua teoria do aprendizado linguístico e de uma teoria do conhecimento, logo, de uma semântica e de uma epistemologia naturalizadas.
Quine procura, nessas duas obras, mostrar as etapas que percorre nosso aprendizado linguístico, desde o uso de frases muito simples, de uma palavra só, passando pela análise da necessidade de identificação de similaridades entre eventos para o reiterado uso uma mesma frase —que corroboraria em parte a tese de Noam Chomsky de que algumas disposições inatas são indispensáveis ao aprendizado linguístico—, até a exposição de como nossa gramática vai se tornando mais complexa, permitindo estabelecer a referência a diferentes tipos de objetos —por meio de pronomes e da quantificação existencial— e a predicação de qualidades e relações. Cria hipóteses de quais seriam os estágios desse aprendizado, associando condutas humanas observáveis a estruturas sintáticas e semânticas conhecidas de lógicos e linguistas.
Quine (“Five milestones of empiricism”, 1975)[6] sustenta que, embora as ciências naturais sejam falíveis e revisáveis, não precisam de um fundamento filosófico, de um tribunal superior, para evoluírem. Só estão, portanto, subordinadas à observação e ao método hipotético-dedutivo. Neste artigo, Quine expõe o que ele considera serem os cinco momentos decisivos do empirismo nos últimos dois séculos, sendo que o último momento se dá com a admissão do naturalismo, que corresponde à renúncia do filósofo de procurar por uma filosofia primeira que seja fundamento das ciências naturais.
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O naturalismo teria duas fontes, ambas negativas. A primeira fonte seria a frustração filosófica de encontrar um solo firme para a verdade epistêmica no campo dos fenômenos, em sua vã tentativa de definir termos teóricos mediante conceitos fenomênicos. Desse modo, a primeira fonte seria o reconhecimento da impossibilidade de um reducionismo. O holismo, por sua vez, auxiliaria a expor a fraqueza da postura reducionista.
A segunda fonte seria o realismo obstinado do cientista natural, que não procura por uma base de sustentação externa para as suas descobertas, para além das observações que faz e dos métodos que utiliza, pois julga esses suficientes como razões para suas crenças realistas. Essa confiança do cientista natural em sua capacidade de conhecimento da realidade desafia a filosofia metafísica tradicional, que crê ser responsável por garantir um fundamento último para todas as ciências. A crença do cientista na possibilidade de conhecer com verdade a realidade exterior a todo ser humano, por meio da observação —direta ou indireta por instrumentos— e da experimentação, e com o auxílio de métodos específicos eleitos, não é afetada por dúvidas metafísicas, que extrapolam aquelas comuns à pesquisa científica, interiores a essa pesquisa e superáveis.
A dúvida do cético metafísico, consoante Quine (“The Nature of Natural Knowledge”, 1975),[7] não é a mesma que sobrevém ao cientista. A dúvida cética, afirmada por Descartes como necessária para limpar nosso sistema de crenças de todas as crenças suspeitas ou falsas, deve a possibilidade de sua menção à ciência já bem-sucedida. Essa dúvida metafísica pressupõe já uma ciência elaborada acerca do mundo exterior. A dúvida cética e a epistemologia têm, pois, sua origem na ciência já em andamento e pressupõem os conhecimentos dessa ciência. Os exemplos elaborados para justificar o ceticismo metafísico se assentam em um conhecimento científico da realidade, como o exemplo do bastão na água, que parece estar quebrado. A ciência descreve o fenômeno observado e mostra tanto que podemos nos enganar à primeira vista, quanto que podemos explicar a origem do engano. Se sabemos que podemos nos enganar perceptivamente com relação à realidade exterior, que supomos causar nossas percepções, é porque também sabemos que temos, na maioria das vezes, meios de fazer a distinção entre ilusão e realidade.
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A dúvida do cientista não é, então, a dúvida cética metafísica. Alguma dúvida possível do cientista com relação ao seu conhecimento da realidade está limitada por sua crença na possibilidade desse mesmo conhecimento. Essa circularidade inerente ao modo de observar a realidade, crendo no conhecimento desta e duvidando, por vezes, da sua veracidade —ou seja, confessando a falibilidade epistêmica— caracteriza o afazer científico, e, para Quine, também a tarefa filosófica. A assunção do naturalismo epistemológico é a admissão dessa circularidade. A crítica à racionalidade pretensamente neutra e capaz de desvendar os fundamentos de todo conhecimento cede lugar a uma filosofia consciente de seus limites, dos limites do universo linguístico em que se desenvolve o pensamento. Nessa consciência divisamos a participação do holismo quineano. Esse holismo é devidamente representado pela frase de Otto Neurath (1882 – 1945), que Quine introduz como epígrafe de Palavra de Objeto:
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“Somos como marinheiros, que têm de reconstruir seu navio em mar aberto, sem nunca poder decompô-lo em uma doca e erigi-lo novamente a partir de suas melhores partes.”
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Notas:
[1] CARNAP, R. Der logische Aufbau der Welt (1928). Hamburg: Felix Meiner Verlag, 1966.
[2] QUINE, W.V.O. Dois dogmas do empirismo (1951). In: RYLE; STRAWSON, AUSTIN e QUINE, Ensaios. São Paulo, Abril Cultural, 1980. (Os Pensadores).
[3] QUINE, W.V.O. Epistemology Naturalized. In: W.V.O. QUINE. Ontological Relativity & other essays. New York: Columbia University Press, 1969.
[4] QUINE, W.V.O. The Roots of Reference. La Salle: Open Court 1974.
[5] QUINE, W. V. Palavra e Objeto (1960). Trad. Sofia Stein e Desidério Murcho. Petrópolis: Vozes, 2010.
[6] QUINE, W. V. O. Five Milestones of Empiricism. In: ______. Theories and Things. Cambridge, MA: The Belknap Press of Harvard University Press, 1981.
[7] QUINE, W. V. O. The Nature of Natural Knowledge. In: GUTTENPLAN, Samuel D. (ed.). Mind and Language. Clarendon Press, 1975.
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