Esclarecendo a questão do aborto

Esclarecimentos conceituais e acordos mínimos com relação à clareza das premissas adotadas são condição de possibilidade para qualquer debate. Por Ricardo Mantovani, a questão do aborto sob uma perspectiva filosófica.

por Ricardo Mantovani

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Poucas questões são tão debatidas e mal compreendidas como aquela que diz respeito ao aborto. Fala-se muito e, no entanto, nada se fala. Quando discutimos sobre a interrupção voluntária da gravidez (será exclusivamente a isto que me referirei quando empregar o termo “aborto”), parecemos os prisioneiros referidos por Platão em sua República: homens que se apegam a sombras como se estivessem a descobrir as mais altas verdades. De minha parte, estou convencido de que o ponto central da polêmica se reduz a saber se o abortado é, ou não, um ser humano. De fato, todos os outros aspectos debatidos (direito de escolha da mulher, controle populacional, saúde pública etc.) empalidecem frente a este questionamento. Afinal, se o abortado for um ser humano, a interrupção premeditada da gravidez será, em todos os casos, um homicídio (termo que se refere, precisamente, à destruição, voluntária ou involuntária, de uma vida humana) — independentemente da justificativa que se lhe dê. Eis os elementos fundamentais do problema. Debrucemo-nos, pois, pacientemente sobre ele.

Ainda me lembro quando, na década de oitenta, num final de tarde, meu saudoso avô materno me deu algum dinheiro para comprar doces em um estabelecimento que ficava defronte sua casa. Quando entrei no recinto, percebi que dois homens discutiam acaloradamente a respeito de um dilema que, ao menos segundo a sabedoria popular, é impossível de ser resolvido: quem nasceu primeiro, o ovo ou a galinha? Não recordo dos argumentos que eram alegados por cada um dos contendores (já é muito que me lembre do episódio!), mas o fato é que este me parece ter sido meu primeiro contato com uma questão “filosófica”.

Bem mais tarde, já no primeiro ano da faculdade de Filosofia, voltei a pensar em tal dilema. Não tardei a notar que a questão parece irrespondível porque, no fundo, um de seus termos não está bem definido. Todo mundo sabe o que é uma galinha. Em princípio, todos também sabemos o que é um ovo. Ademais, todos que prestaram um pouco de atenção às aulas de ciências sabem que o ovo, tomado em geral, é muito mais antigo do que as galinhas (uma vez que os próprios dinossauros já nasciam deles). Entretanto, não é de qualquer ovo que se trata na disputa, mas sim de um ovo de galinha — e é aqui que a questão da definição mostra toda sua relevância. Se definirmos o ovo de galinha como um ovo colocado por uma galinha, temos, necessariamente, que a galinha o antecede. Se, por outro lado, definirmos o ovo de galinha como aquele que contém uma galinha, podemos considerá-lo anterior à bendita ave, já que poderia ter sido posto não por uma galinha, mas pelo ancestral que deu origem ao “primeiro” exemplar da espécie (sei que passo ao largo, aqui, de toda polêmica em torno do gradualismo, do saltacionismo e de questões afins, pedindo, por isso mesmo, um pouco de complacência ao leitor versado em biologia).

Vemos, assim, rapidamente resolvido um problema que, muito antes de ser insolúvel, não passa de uma questão de definição. De modo muito similar, é a partir de uma definição que se determina se um território é, ou não, uma ilha. Tradicionalmente, é considerada uma ilha qualquer porção de terra — cercada por água de todos os lados — que seja menor do que a Austrália.  Mude-se o critério e talvez a Austrália se transforme numa ilha. Mude-se o critério novamente, e talvez Marajó vire um continente. Ser uma ilha, perceba-se, nada tem a ver com uma característica intrínseca do território, sendo algo que se lhe imputa tendo-se por base uma definição: ou seja, é algo relativo e, no limite, contingente.

O mesmo pode ser dito, ainda, com relação à polêmica que envolve Plutão. Desde 1930, ano de sua descoberta, Plutão sempre foi considerado um planeta — já que, para sê-lo, bastava a um corpo celeste orbitar uma estrela e ter massa o bastante para tornar-se esférico por conta própria. As coisas, no entanto, mudaram a partir de 2006, quando a definição de planeta foi alterada por conta das recentes descobertas concernentes a objetos presentes no Cinturão de Kuiper.  Dali em diante, para ser considerado planeta, um corpo celeste deveria ter, além das características descritas acima, uma “órbita limpa”, isto é, uma órbita que não rivalizasse com a de outros objetos com dimensões próximas à sua. A nova exigência foi demais para o pequenino e excêntrico Plutão que, assim, deixou de ser um planeta.

Minha tese, aqui, resume-se no seguinte. Ser ou não um ovo de galinha, ser ou não uma ilha, ser ou não um planeta: tudo isto é uma questão de definição, de conceitos que são livremente elaborados pelos homens segundo critérios pragmáticos. Uma definição tem que ser, antes de tudo, útil, servindo à abreviação dos discursos e à organização do conhecimento.

Isto dito, talvez o leitor se encontre inclinado a pensar que vou concluir meu raciocínio afirmando que determinar o que é um indivíduo humano não passa de uma questão de definição e que, portanto, dependendo da definição que adotemos, podemos afastar da prática do aborto qualquer inquietação moral. Bem, na verdade esta não será minha resposta. Entendamo-nos.

Antes de mais nada, um breve disclaimer: uma definição puramente médico-científica do que seja um ser humano é impossível. A embriologia pode, sem dúvidas, descrever o processo de desenvolvimento de um ser vivo, da fecundação ao nascimento, de maneira minuciosa. Ela nos diz, por exemplo, que por volta de 20 dias após a fecundação, o coração começa a bater; que ao cabo de dois meses de gestação, todos os órgãos já existem de forma rudimentar e o ser desenvolve aspecto humano; que um pouco antes dos dois meses e meio, as ondas eletroencefalográficas podem começar a ser registradas etc. Nada disto, contudo, nos diz quando surge o indivíduo. Afinal de contas, nada disto nos diz o que é um ser humano. Eis-nos, pois, de volta à questão das definições, em grande medida, contingentes.

Pois bem. Se determinarmos, como não raro se faz, que a consciência é uma condição indispensável para que um ser seja considerado humano, a interrupção voluntária do desenvolvimento de qualquer ser que não preencha esse pré-requisito não será, logicamente, um homicídio. Constrói-se, assim, um silogismo válido: “todo ser humano é consciente”, “x não é consciente”, logo “x não é ser humano e pode ter seu desenvolvimento interrompido sem que isto constitua um homicídio”.

Entretanto, estamos nos movendo no campo da inóspita lógica, devendo nos lembrar de que nem todo raciocínio coerente é, somente por isso, verdadeiro. Toda conclusão verdadeira exige que as premissas também o sejam — o que, no caso que nos ocupa aqui, acaba por exigir que a definição de ser humano empregada (ou qualquer outra que se queira oferecer em seu lugar) seja inquestionavelmente verdadeira.

Ora, nesta altura já sabemos que não podemos apelar à ciência para que nos diga o que é um ser humano. Por outro lado, alguém atento ao que já foi exposto poderia afirmar que não cabe a uma definição ser verdadeira ou falsa, de modo que não faria sentido perguntar se é verdadeira qualquer definição de ser humano empregada num silogismo que defendesse a moralidade do aborto — e que, deste modo, seria tão “tranquilo” decidir se um embrião/feto é, ou não, um ser humano quanto é “tranquilo” decidir se um corpo celeste é, ou não, um planeta.

No entanto, os casos abordados não são idênticos entre si. Não há nada que possa ocorrer a um pedaço de terra que nos obrigue a considerá-lo como sendo uma ilha ou um continente. Cresça ou diminua um terreno o quanto quiser, sempre poderemos mudar nossas definições para classificá-lo como bem entendermos. O mesmo se passa com um corpo celeste. Somos totalmente livres para classificá-lo como planeta, asteroide, cometa, o diabo a quatro: bastando, para isso, que alteremos nossas definições. Não preciso dizer, contudo, que as coisas são bastante diferentes quando se trata de um ser em desenvolvimento no útero de uma mulher, ao qual não negamos — nem podemos negar — a humanidade indefinidamente: até os mais desconfiados têm que reconhecer que, no parto, dá-se à luz um indivíduo humano (bem sei que há quem relativize até esta última asserção; todavia, não é a essas pessoas que me remeto nestas linhas).

Tendo por base tudo quanto foi dito, só posso concluir definindo o aborto nos seguintes termos: a destruição de um ser que, contingente ou estrategicamente,[*] foi considerado como ainda não-humano. E nada mais.

Minhas palavras podem parecer duras ao leitor mais sensível, mas notem que elas são uma conclusão lógica das linhas anteriores — de modo que, quem quiser impugná-la, terá que impugnar uma de suas premissas. Finalmente, quero ressaltar (utilizando-me de uma expressão de Friedrich Nietzsche) que este texto é “isento de moralina”. Em outras palavras, minha intenção não é, aqui, a de acusar ou condenar as pessoas que já optaram pelo aborto — até porque nenhuma condenação ou anuência podem ser derivadas, de maneira inconteste, de qualquer uma de minhas afirmações. No entanto, como filósofo, tenho a obrigação de tentar aclarar uma ou outra questão obscura, para que, em posse dos dados do problema, cada um possa tomar suas decisões autonomamente: vendo as coisas tais como elas são, e não como sugerem suas sombras.

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O estudo do feto no útero de Leonardo, 1510-13

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Nota:

Lembre-se o leitor que, mais acima, sustentei que a contingência e o valor prático são características centrais de todo e qualquer conceito ou definição.

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