Algumas escolas filosóficas gregas exprimiram recortes tão profundos da existência humana que em nossos dias se generalizaram em adjetivos. Quando dizemos que um sujeito é “cínico” ou “cético” esquecemos que estas são reduções simplistas de doutrinas complexas fermentadas em longas tradições. “Estoico” é popularmente um sujeito rígido no cumprimento do dever e imperturbável na desgraça. Há alguma verdade nisso, mas é só a superfície de um universo de ideias.

Como todos os descendentes de Sócrates, os estoicos buscaram obstinadamente responder uma única questão necessária: como viver uma vida digna de ser vivida? A resposta cética levava a um quietismo paralisante; a cínica, ao desprezo pela sociedade; a epicurista, ao individualismo hedonista, e nenhuma era compatível com o autocontrole e os sacrifícios necessários à vida coletiva. As religiões ancestrais já não cumpriam essa função; as velhas cidades-estado já não elevavam o ser humano à abnegação. Os gregos educados buscaram os consolos para as crises da vida na filosofia e pediram a ela uma visão de mundo que desse sentido à existência e uma esperança além da morte. O estoicismo foi a última tentativa da antiguidade de encontrar uma ética natural, e antecipando não só a ética, mas a teologia do cristianismo, os estoicos conceberam o mundo, a lei, a vida, a alma e o destino em termos de Deus, e definiram a moralidade como um desejo de se render à vontade divina. “Viver de acordo com a razão”, “viver de acordo com a virtude”, “viver de acordo com a Natureza” e “viver de acordo com Deus” são uma só e mesma coisa. Deus é, como o ser humano, uma matéria viva; o mundo é seu corpo, a ordem e a lei do mundo são sua mente e sua vontade; o universo é um organismo colossal do qual Deus é a alma, o sopro que anima, a razão que ilumina. O ser humano é para o universo como um microcosmo para um macrocosmo. A felicidade é só o ajuste racional de nossas vontades às leis do universo. O estoico se satisfaz com pouco, aceita sem reclamar as agruras da vida, é indiferente a tudo – a doença e ao prazer; ao opróbrio e à fama; à liberdade e à servidão; à vida e à morte – exceto à busca pela virtude e à aversão ao vício.
Em tese, era uma doutrina monstruosa de uma perfeição isolada, severa, prepotente e implacável. Na prática, forjou homens de coragem, santidade e boa vontade. Foi a filosofia mais popular do mundo antigo, e a mais versátil, encarnando-se em figuras tão díspares como, na Grécia, o fundador Zenão, um semi-semita rico que trocou a fortuna pela simplicidade, ou o pugilista asiático Cleantes; e, em Roma, o estadista Catão; o escritor Sêneca; o escravo Epicteto; ou o imperador Marco Aurélio. Os estoicos fizeram um esforço honesto para erguer uma ponte entre a religião e a filosofia; sua doutrina manteve a sociedade antiga íntegra até que uma nova fé viesse animá-la. Após a Idade Média, influenciaria o cristianismo protestante, especialmente calvinistas e o puritanos, mas também os iluministas, e de todas as escolas antigas, é em nossos dias, mesmo quando no anonimato, a mais influente, seja qualificando manuais de autoajuda, seja instruindo técnicas psicoterapêuticas, e não há por que duvidar que seres humanos de todos os tipos, em todo o mundo, continuarão a buscar no estoicismo a disciplina e a inspiração para viver a vida digna de ser vivida, até o final dos tempos.
Convidados
Aldo Dinucci: professor de filosofia antiga da Universidade Federal do Espírito Santo.
Eduardo Wolf: professor de filosofia antiga da Universidade de Brasília.
Renata Cazarini: professora de letras clássicas da Universidade Federal Fluminense.
Referências
- Manual de Estoicismo, de Aldo Dinucci.
- Estoicismo, Ceticismo e Ecletismo. História da Filosofia Grega e Romana Vol. VI (Storia dela Filosofia Greca e Romana), de Giovanni Reale.
- A Vida Estoica (The Stoic Life), de Tad Brennan.
- Estoicismo (Stoicism), de John Sellars.
- O Estoicismo (Stoicism), de George Stock.
- “O compromisso estoico”, em História da Civilização. Vol. II. A Vida na Grécia (The Story of Civilization), de Will Durant.
- “Stoicismo” e outros verbetes na Enciclopedia Filosofica Bompiani.
- “Stoicism” e outros verbetes na Stanford Encyclopedia of Philosophy.
- “Stoicism”, entrevista com Angie Hobbs, Jonathan Rée e David Sedley para o programa In Our Time da Radio BBC 4.
- “Stoic Ethics”, de Brad Inwood, em The Cambridge History of Hellenistic Philosophy, ed. por K. Algra, J. Barnes et. al.
- The Cambridge Companion to The Stoics, ed. Brad Inwood
- Handbook of Greek Philosophy: From Thales to the Stoics. Analysis and Fragments, de Nikolaos Bakalis.
- A New Stoicism, de Lawrence C. Becker
- The mutual influence of Christianity and the Stoic school, de James Henry Bryant.
- Stoic Studies, de A.A. Long.
- Stoicism: Traditions and Transformations de Steven Strange.
- The Stoics, Epicureans and Sceptics, de Oswald J. Reichel.
Ilustração: Self made man. Escultura de Bobbie Carlyle. Douglas County Library (Parker, Colorado, EUA). Foto (em preto e branco) de Joel A. Rogers (www.coastergallery.com).