Filosofia e “pensamento crítico”: o caso Swinburne

Ainda na semana passada, tivemos a votação da Medida Provisória que rege o Ensino Médio no país. Após idas e vindas, com pouco ou quase nenhum diálogo com a sociedade, os congressistas decidiram-se por, entre outras coisas do pacote, manter a oferta obrigatória das disciplinas de Filosofia, Sociologia e Artes, mas remover o caráter compulsório das assim chamadas "ciências naturais".

por Gabriel Ferreira da Silva

Ainda na semana passada, tivemos a votação da Medida Provisória que rege o Ensino Médio no país. Após idas e vindas, com pouco ou quase nenhum diálogo com a sociedade, os congressistas decidiram-se por, entre outras coisas do pacote, manter a oferta obrigatória das disciplinas de Filosofia, Sociologia e Artes (ainda que os alunos possam optar por não fazê-las), mas remover o caráter compulsório das assim chamadas “ciências naturais”. Não é o objetivo aqui, nem remotamente, discutir sobre a Medida Provisória ou sobre as decisões dos deputados e senadores. De minha parte, sou favorável à manutenção de uma determinada parcela de Filosofia no currículo, assim como da obrigatoriedade de certa carga das disciplinas das ciências naturais para todos os alunos, independentemente da área de preferência escolhida. No entanto, a exposição das razões dessa opção fica para outro momento.

Tudo isso é relevante apenas porque os defensores da obrigatoriedade da Sociologia, mas principalmente da Filosofia, ancoraram grande parte de seus argumentos no fato de que o ensino e a prática da disciplina seriam as grandes responsáveis por proporcionar aos alunos a formação e o desenvolvimento do famigerado “pensamento crítico”.

Ora, se é verdade que uma definição clara, distinta e independente de ideologias acerca do que seja “pensar criticamente” é algo quase impossível de se encontrar, mesmo e até principalmente entre os seus mais ardentes defensores, ao que parece há traços elementares a serem considerados se “pensamento” e “crítico” devem fazer algum sentido nessa expressão. Em primeiro lugar, só se pode chamar de “pensamento”, em um sentido filosoficamente relevante, uma posição ou tese que exponha minimamente argumentos, isto é, articulados com um mínimo de respeito à lógica elementar, que possibilite aos interlocutores acessarem as mesmas razões, e que inclusive possa ser analisado em sua coerência (nos diversos níveis possíveis) e seu valor de verdade. No tocante ao “crítico”, seja lá para onde se queira levar ideologicamente seu sentido, não parece adequado que nos afastemos por demais do sentido etimológico fundamental de “krisis” que, segundo a clássica interpretação de Liddell, Scott e Jones, por sua vez é derivado de “krino“, que significa, em grego, “escolher”, “separar”, “distinguir” e, portanto, julgar e decidir, até mesmo em sentido legal. Assim, por “pensamento crítico” não se pode entender precisamente o seu contrário, isto é, um fechamento dogmático e uma oposição a priori a posições ou teses, por mais incômodas, controversas ou indesejáveis que sejam. E, de fato, isso parece condizer com algumas das habilidades e mesmo com a postura intelectual daqueles que estudam e se dedicam à Filosofia. Mas, recentemente, viu-se um episódio que, por se passar no interior de uma comunidade acadêmica de filosofia, no mínimo depõe contra a presença tida quase como necessária de tal abertura entre filósofos.

Em setembro de 2016, o encontro da Society of Christian Philosophers (SCP), um grupo já tradicional e respeitável no cenário filosófico americano, teve como conferencista principal o professor Richard Swinburne, emérito de Oxford e um dos maiores expoentes da filosofia da religião em nível mundial. Autor de vários livros e artigos de referência, Swinburne proferiu uma conferência intitulada “O ensinamento moral cristão sobre sexo, família e a vida”. Em dado  momento, Swinburne afirmou que no interior daquela concepção moral — a cristã — a homossexualidade consistia em uma prática moralmente reprovável e também que, uma vez que tal concepção assume entre seus pressupostos uma compreensão teleológica dos atos humanos, a incapacidade de casais homossexuais se reproduzirem era vista como certa “deficiência”.

Como era de se esperar, a conferência de Swinburne deu início a uma controvérsia de enormes proporções. Já no dia seguinte, Michael Rea e Christina Van Dyke, diretores da SCP, publicaram uma nota na qual “manifestavam pesar” pelos “danos” causados pela fala de Swinburne. Rea complementa a nota dizendo que, “como presidente da SCP”, estava “comprometido com a promoção da vida intelectual de nossa comunidade” e “com os valores da diversidade e da inclusão”. A partir daí, irrompeu-se uma pletora de posts em blogs, artigos e pronunciamentos sobre a celeuma. Apenas a título de exemplo sobre quão inflamados chegaram a ser as manifestações, Jason Stanley, professor de filosofia de Yale, expressou sua posição no Facebook, acerca de Swinburne e de quem eventualmente concordasse com ele, chamando-os de “F*****g assholes!

Numa escola comum, alunos são treinados para criticar toda crítica aos dogmas politicamente corretos. (Do filme “The Wall”)

Não é o interesse aqui em absoluto discutir materialmente a posição de Swinburne. O que realmente importa na história é refletir sobre a nota de Rea e acerca de determinado tipo de reação, como a de Stanley. Será que elas de fato estão de acordo com com aquele grande paradigma do fomento ao “pensamento crítico” como elemento essencial do filosofar?

A nota da SCP começa manifestando pesar pelos danos causados pelas opiniões do palestrante. Ora, independentemente de como se queira interpretar a posição de Swinburne — discurso de ódio ou defesa da ortodoxia cristã —, parece-me terrivelmente triste pensar que, em uma conferência cujo público é constituído por filósofos, a defesa de alguma posição possa “causar danos”. A filosofia moveu-se sempre a partir de problemas e de tentativas de respondê-los ou, ao menos, esclarecê-los. Questões morais relativas à moral sexual, e mesmo mais especificamente sobre a relação entre pessoas do mesmo sexo, foram pensadas e debatidas, para além de filósofos medievais comprometidos com a moral cristã, por nomes como Platão e Kant. Como é possível pensar então que, entre filósofos, a discussão de problemas morais que, por definição só se apresentam como tais porque são controversos, podem “causar danos” a estudantes e professores de filosofia?

Se assim for, virtualmente qualquer problema de filosofia prática pode ser arrolado como potencialmente danoso. Para dar um exemplo cada vez mais caro à sensibilidade dos nossos dias, o livro de 2015 do britânico David Edmonds sobre trolley problems, já causaria danos na capa. Ao conjeturar o problema, entre outros, se seria moralmente justificável empurrar nos trilhos alguém obeso o suficiente para parar um trem que estaria em vias de atropelar cinco pessoas, Edmonds pergunta no título “Você mataria o homem gordo?” (Would you kill the fat man, Princeton). E o que dizer dos “danos” causados aos filósofos contrários ao aborto frente à sua defesa cada vez mais constante?

Para ficarmos no registro dos problemas de moral sexual, o que dizer então de um dos grandes filósofos atuais, Peter Singer, que em um artigo de 2001 (“Heavy Petting“), defende que o sexo entre humanos e animais podem ser moralmente aceitável sob determinadas condições? Parece potencialmente danoso o suficiente?

O fato é que, se a filosofia deve se caracterizar também pela crítica que, em sentido primário, é análise, ponderação, avaliação, como fazê-lo a contento se a postulação de problemas e a tomada de posição argumentada acerca deles for tratada como “danosa”? De fato, a única ameaça à filosofia é o dogmatismo arbitrário. Do mesmo modo, se Rea e a comunidade filosófica como um todo quiserem mesmo se comprometer “com os valores da diversidade e da inclusão”, nada mais óbvio do que repelir o tipo de postura exemplificada por Stanley, que não apresentou nenhum “argumento” para além da ofensa pura e simples, e defender a possibilidade de Swinburne e qualquer outro levantar problemas, oferecer argumentos e, inclusive, expor-se ao risco de ser sumariamente refutado.

Por fim, o caso de Swinburne é fundamental para avaliarmos também qual a postura que estudantes e professores de filosofia devem ter frente a problemas controversos para além do âmbito estritamente filosófico da vida pública, da economia e da política. Caso contrário, “diversidade” e “crítica” aqui não passam de vocábulos vazios.

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