Hegel, Hölderlin e Heidegger: arte e verdade

Para além de um ato apenas reflexivo da consciência, para além de uma teoria do juízo, para além da técnica, para além dos ditames de uma subjetividade: a busca pelo caráter de verdade da arte, com Hegel, Hölderlin e Heidegger. Por Marco Aurélio Werle.

por Marco Aurélio Werle

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Uma das marcas características da estética de Hegel, diante de seus predecessores imediatos (Kant e o pós-kantismo) e inclusive mais longínquos (Platão), é a insistência no vínculo entre arte e verdade. A arte é para Hegel não apenas um mero jogo da imaginação com o entendimento nem o campo do que é somente ilusório, mas a expressão sensível da ideia (tomada como ideal), e implica um momento fundamental de reconciliação do espírito com a sua efetividade e história. Por outro lado, se pensarmos na posteridade da estética de Hegel e levarmos em conta que o tema do fim da arte é o ponto crucial e mais atual do pensamento estético hegeliano, vemos que esses tópicos põem em questão a própria possibilidade de a arte exprimir ainda a verdade. Assim, se, ao olhar retrospectivamente para a história ocidental e moderna, Hegel verifica os laços entre arte e verdade, esse mesmo gesto reverte dialeticamente e “negativamente” para o futuro, pois implica necessariamente o reconhecimento da dificuldade que a arte tem para “exprimir os nossos mais altos interesses”, num mundo no qual o universal encontra-se emancipado da sensibilidade e no qual domina a chamada cultura da reflexão, que permeia todas as estruturas da vida social. No Estado moderno, essencialmente prosaico, o indivíduo é somente uma parte do todo, sendo que se encontra privado de qualquer possibilidade de uma ação heroica e autônoma.

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Retrato de Hegel por Jakob Schlesinger, 1831

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No entanto, uma abordagem produtiva da estética de Hegel não deve levar em conta apenas o lado filosófico e, igualmente, também não apenas o lado artístico, mas encontrar um meio-termo, procurar compreender os temas como se articulando entre esses dois campos, envolvendo tanto pressupostos estritamente filosóficos quanto encetando um debate com o mundo artístico e poético. De um lado, a estética de Hegel é um sistema que compreende a manifestação da arte na história e expõe [stellt dar] o conceito [Begriff] que se realiza no fenômeno sensível e em seu terreno realiza um percurso de consumação gradual. A ideia do belo ou o ideal ocorre tanto como harmonia quanto como conflito com a existência. Assim, ultrapassa o quadro estritamente intelectual de um pensamento que se concentra apenas no plano de generalizações abstratas sobre o belo, o sublime, o gênio etc. Por outro lado, também não se deve cair no extremo oposto de tomar a estética de Hegel como mera preceptiva, apenas como teoria artística, como estética aplicada ou aplicável, simples receituário ou conjunto de análises críticas da arte. Também não se trata de história da arte nem de crítica de arte, embora Hegel “flerte” com esses dois âmbitos, os incorpore numa dimensão especulativa e os integre num discurso dialético: é história, teoria e crítica de arte a um só tempo. Isso se reflete nas três partes do sistema: a primeira dedicada à ideia do belo ou o ideal (teoria), a segunda às formas de arte simbólica, clássica e romântica (história da arte) e a terceira às chamadas artes particulares: arquitetura, escultura, pintura, música e poesia (crítica de arte).

Mas como então operar uma via produtiva de acesso à estética de Hegel? Parece-me que é preciso ficar atento tanto ao modo como Hegel concebe seu sistema estético no horizonte da assim chamada “estética da época de Goethe” (que compreende o período que vai de 1750 a 1830), bem como não perder de vista certas análises artísticas e estéticas pontuais e “paradigmáticas”, nas quais vem à tona justamente a peculiaridade de seu enfoque. Ou seja, a confluência entre o pensamento próprio de Hegel e de seu tempo, que possui inegável presença em seu sistema estético, e o exame de casos específicos do campo da arte (pintura holandesa, os dramas de Shakespeare, os Lieder de Goethe, etc.), casos que, por assim dizer, indicam momentos culminantes não apenas em Hegel, mas também em seus contemporâneos, permitem justamente mostrar sua vitalidade e nos torna precavidos a não tomá-lo apenas de modo geral e árido. Uma pesquisa que apenas parafraseia o sistema estético de Hegel e se limita a mostrar como ele “funciona” internamente e como “classifica” a arte, não tem muito interesse, bem como o transforma em algo morto e ultrapassado, na medida em que desconhece sua dinâmica interna e propósito, suas tensões e, porque não, “limites históricos”. É preciso ultrapassar a consideração feita por Adorno, em sua Teoria estética, de que Kant e Hegel foram os últimos a tratar de fenômenos artísticos a partir de uma perspectiva exterior e sem conhecê-los profundamente. Cabe perguntar para Adorno, no entanto, em que medida uma análise meramente técnica e “crítica” da arte não significa uma alienação maior ainda ou até mesmo uma nova forma de dogmatismo.

Certamente não podemos ignorar a posteridade e a tradição de recepção da estética de Hegel, em particular das duas tendências filosóficas do século XX que mais ficaram marcadas por ela e com ela dialogaram e ainda dialogam: a tradição da filosofia hermenêutica fenomenológica e a tradição marxista da teoria crítica. Justamente o modo como lidaram com a estética de Hegel permite perceber ainda hoje a efetividade de seu pensamento, para além dos limites da época moderna, e sinalizar para questões da pós-modernidade. Basta mencionar aqui o tópico mais instigante ainda hoje legado pela estética de Hegel: o tema do “fim da arte”, que se encontra no centro das reflexões de um Adorno e de um Gadamer e, mais recentemente, foi reavivado por Arthur Danto, visando pensar a nova relação que se estabelece atualmente entre a crítica e as obras ou manifestações artísticas do período posterior à arte pop (dos últimos 50 anos).

A herança da estética de Hegel na atualidade parece justamente se fazer presente naqueles momentos em que se busca não propriamente uma teoria nova da arte, mas uma possibilidade de compreensão da situação atual, artística e filosófica, no contexto maior da história do pensamento. Dito de outro modo, Hegel surge no debate atual quase sempre nos momentos em que eclode uma crise de identidade da arte, como quadro referencial dos limites e possibilidades humanas junto à arte. O que no interior do idealismo ainda era um desafio, uma luta a ser travada para integrar o homem à totalidade (seja nas diferentes tentativas poéticas de Hölderlin, seja na abordagem exaustiva de Hegel das “figuras” do espírito absoluto), é considerado no fim do século XIX e XX, pelo menos numa primeira aproximação, como algo tido do passado e altamente problemático.

Segundo as reflexões de Danto sobre o fim da arte, Hegel aparece como um pensamento de transição entre uma época em que a arte se encontrava sob o jugo de uma filosofia que lhe impunha uma história da arte “estranha” e uma época em que a arte fica entregue a si mesma, se torna ela mesma totalmente reflexiva, pós-histórica ou não mais histórica. Certamente essa marca da estética de Hegel se relaciona com a ênfase central imprimida ao tema da verdade na arte, o que implica situar a arte não apenas em seus limites internos estruturais, como se fosse uma atividade restrita de um pequeno grupo de aficionados, mas perguntar pelo ser mesmo e pelo destino da arte no Ocidente, como bem notou Martin Heidegger, no “Posfácio” ao A origem da obra de arte.

Sem dúvida, a estética de Hegel, aos olhos de Heidegger, faz parte de um daqueles cinco fenômenos fundamentais que marcaram a época moderna. Ao lado do advento da ciência e da técnica, do desaparecimento dos deuses e da concepção de homem como cultura, a arte penetra no arco de abrangência da estética, o que significa que a obra de arte se torna objeto de uma vivência e, por conseguinte, a arte vale como uma expressão sentimental da vida dos homens, sem mais ser capaz de fundar a terra e o mundo enquanto o colocar-se em obra da verdade como encobrimento e descobrimento. Entretanto, as indicações hegelianas de que a arte não é mais o modo supremo segundo o qual a verdade se manifesta surge como um questionamento e como o ponto culminante do próprio pensamento ocidental em sua capacidade para indagar o ser dos entes. Como figura do espírito absoluto, ao lado da religião e da filosofia, a arte constituiu por milênios um horizonte de doação de sentido ao mundo do chamado espírito objetivo e ético (família, sociedade civil e Estado). No entanto, nos últimos duzentos anos, depois de Hegel, houve uma inversão de perspectivas, sendo que o espírito objetivo, capitaneado pelo chamado mercado ou sistema de produção capitalista, foi cada vez mais submetendo o todo ou absoluto aos seus ditames práticos e utilitaristas.

E aqui ganham relevo as ponderações de Hölderlin, principalmente em sua fase tardia, quando ele aprofunda o tema de uma infidelidade entre os homens e os deuses: o homem na modernidade se encontra entregue a si mesmo, não pode mais dizer o divino ou vivenciá-lo diretamente, pois isso vai tanto contra o homem (depois de ter descoberto a “infinitude” nele mesmo) quanto contra os deuses, que vivem em uma outra esfera, se bem que sem os homens também os deuses não possuem sentido. O ser humano moderno é impulsionado sem limites pela técnica e pelo trabalho, que não lhe permitem encontrar um repouso e serenidade.

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Monumento a Hölderlin em Tübingen

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A questão permanece aberta, no dizer de Heidegger: a decisão sobre a sentença de Hegel acerca do fim da arte ainda não foi assimilada, pois ainda estamos a caminho. Por trás dessa sentença está o pensamento ocidental desde os gregos, cujo pensamento corresponde a uma verdade já acontecida do ente ou do ser do ente em sua presencialidade presente como subjetividade coagente. Segundo Heidegger, a decisão sobre a sentença se dará, caso se dê, a partir dessa verdade do ente e sobre ela. Até lá a sentença permanece válida, cresce o perigo, mas com ela também a salvação, como poetiza Hölderlin no hino Patmos.

Heidegger retoma e ao mesmo amplia ou recoloca numa outra dimensão o problema hegeliano do carácter de verdade, ao indagar a origem da obra de arte e, assim, de alguma forma retomar o problema posto por Hölderlin no início do idealismo, na chamada época heroica do idealismo, quando haviam interesses comuns a serem defendidos por Fichte, Schelling, Hegel e Hölderlin, na esteira das profundas transformações provocadas pela Revolução Francesa, no terreno da história, e a filosofia de Kant, no campo do pensamento filosófico.

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Schwer verlässt,

Was Nahe dem Ursprung wohnet, den Ort.

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(Dificilmente abandona

O lugar, o que mora próximo da origem.)

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Assim soam os versos de Hölderlin, do hino A migração, com os quais Heidegger encerra A origem da obra de arte de 1935/36, um pouco antes de entrar no “Posfácio” acima referido. Esses versos parecem significativos para a compreensão da perspectiva segundo a qual são pensadas a arte e a poesia nesse ensaio de Heidegger, em particular no que se refere ao termo “origem” [Ursprung]. A origem tem algo a ver com a verdade, pois a essência da verdade não reside na mera concordância do enunciado com a coisa, tal como lemos na conferência Sobre a essência da verdade, ou seja, sempre remete à não verdade como errância e abismo. Lançado no mundo como um ser-aí [Dasein], o ser humano realiza uma abertura num aberto como encobrimento no descobrimento. Da mesma maneira, a obra de arte recoloca o Dasein numa perspectiva mais ampla, não apenas como ser no mundo, mas como um ente exposto ao combate entre terra e mundo, na medida em que se relaciona com a coisidade da coisa e os instrumentos do cotidiano. Estes, os utensílios, são tanto marcados pela serventia como pela confiabilidade. A relação nunca é somente de uma adequação à coisa, não é imitação, mas um desvelamento do ser do ente em sua totalidade, o que significa uma operação poética da “errância”, que instaura e abriga no ente o descobrimento e encobrimento. A poesia é um produzir como um vir à frente da physis no modo da alétheia.

Podemos, então, perceber dois registros implicados nesse enfoque acerca da origem. Em primeiro lugar, a origem da obra de arte é pensada em oposição ao modo de abordagem da arte no interior da metafísica ocidental, em particular da modernidade que estabeleceu a verdade do ente na base da subjetividade da representação e da armação técnica. Trata-se aqui de perguntar pela origem para além do questionamento tradicional da arte, via de regra fundado em noções “subjetivas”, estabelecidas principalmente na época moderna, tais como o gosto, o gênio etc. e estruturadas pela estética a partir de Baumgarten como “ciência do conhecimento sensível”. Disso se segue um confronto com a Estética como gênero discursivo e analítico e, inclusive, um aprofundamento da mesma, essa disciplina que desde o século XVIII se dedica a investigar a arte e que alcança uma consumação com Hegel como filosofia da bela arte, para além do campo restrito da aisthesis, a sensação em sentido amplo. Heidegger considera, no fim do primeiro momento do ensaio A origem da obra de arte, que se refere à “coisa e à obra”, que “nosso questionamento pela obra encontra-se abalado porque não perguntamos pela obra, mas em parte por uma coisa em parte por um instrumento. Mas, essa não foi uma maneira de questionar desenvolvida primeiramente por nós. Esse é o modo de questionar da estética. O modo como ela observa previamente a obra de arte encontra-se sob o domínio da interpretação tradicional de todo o ente”.

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Martin Heidegger

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Por outro lado, o termo origem ou a perspectiva da origem também possui um lado positivo, uma possibilidade de afirmação da arte enquanto poesia: investigar a origem da obra de arte nos remete a atentar para o seu aspecto poiético, de produção e de Dichtung, do que está desde sempre em obra na obra. No ensaio, o poético é pensado referido no fim como um livre presentear, um fundar e um instituir. Essa caracterização tripla alcançará um aprofundamento quando Heidegger se dedica a um diálogo com a poesia de Hölderlin, principalmente a partir da morada poética do homem sobre a terra e o ato rememorativo e instituidor do poeta, que nos apresenta um pensamento que fica junto ao ser, um “re-cordar” [An-denken] da natureza, dos rios, da volta ao lar e dos dias de festa e feriado. Com isso, procura-se resgatar um movimento abrigado na obra, que é do pôr-se-a-si do ser no ente, ou seja, a obra é a verdade na medida em que o ser vem à obra, não por um processo de im-posição humana, mas de ex-posição diante da manifestação do ser. Antes de querermos fixar os modos históricos de afirmação da arte, o que em Hegel corresponderia às formas simbólica, clássica e romântica, e meditarmos sobre seus gêneros, somos convidados a nos concentrar no telos imanente de todo produzir humano, na facticidade da arte enquanto poiesis.

Mas, como é desenvolvida essa perspectiva da origem no ensaio de Heidegger? Provisoriamente indicamos duas direções de análise: de um lado, é preciso acompanhar também o embate de Heidegger com Nietzsche, na crítica à estética tradicional e ao conceito metafísico de arte, de outro lado, há que investigar como Heidegger, no diálogo com os poetas, em particular com Hölderlin, aponta para a origem da obra de arte. Essa reside na poesia, compreendida como Dichtung: poiesis. E, assim, é recolocado numa nova chave o tema da verdade na arte. A questão da verdade anima também toda a estética de Hegel e não apenas no sentido de que a arte exprime ou não mais exprime a verdade, mas como temática interna da própria arte. Por vezes o tema da verdade se confunde com a relação da arte com a realidade e a história e reaparece em momentos inesperados. Por exemplo, Hegel pretende que a arte deixe de responder a qualquer tipo de preceptiva, pretende libertá-la da mera teoria, mas ao mesmo tempo a história da arte pode se configurar como um aprisionamento da subjetividade, como um limite de expressão da verdade, quando se torna um mero exercício de uma subjetividade que se fecha em si mesma ou se entrega aos devaneios da imaginação.

Neste duplo movimento, vemos Heidegger procurar resgatar o caráter de verdade da arte, diante do predomínio da subjetividade moderna que, por intermédio da técnica, tomou para si toda forma de produzir e de dizer o ser. A técnica, segundo A questão da técnica, coloca [stellt] ou “arma” a natureza, por meio da “armação” [Gestell], como algo que tem seu sentido de ser apenas como resposta aos anseios utilitaristas do homem, ao passo que, na poesia, torna-se possível habitar o ser, por meio da linguagem e de uma postura de escuta, de recepção e cultivo do ocultamento no desocultamento. O esforço heideggeriano consistirá em explorar a dimensão irredutível do “ser”, que, segundo Hölderlin, no conhecido fragmento Juízo e ser, é a “partição originária” [Urteilung], inalcançável por um ato apenas reflexivo da consciência. Igualmente, Hegel considerará que o fenômeno artístico encontra-se para além de uma teoria do juízo, sendo que envolve um silogismo, enfim, é universal, particular e singular. Desse modo, encontram-se num mesmo caminho Hegel, Hölderlin e Heidegger, de busca de um pensamento totalizante, seja no modo do absoluto seja no modo do ocultamento e desocultamento, para além dos ditames de uma subjetividade que apenas se refere de modo nostálgico e alienante a si mesma.

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Estudos de Salvator Rosa para ‘A morte de Empédocles’

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