por João Cortese
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Vendo tantos que sofrem na atual pandemia, que fazer? A solidariedade parece ser um chamado urgente – ao menos quanto ao termo, concordam empresários, políticos e demais cidadãos neste momento. Quanto ao que ele significa, ou se a atitude à qual ele nos chama sobreviverá após este período, talvez seja um outro assunto. Que palavras evocar neste contexto?
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“Quando já havia luz suficiente para usar os binóculos, levou-os ao rosto e examinou o vale mais abaixo. Tudo perdera a cor e se dissolvia no negrume. […] Baixou os binóculos e retirou a máscara de algodão do rosto e limpou o nariz ao pulso […] Sabia apenas que o garoto era a sua garantia. Disse: Se ele não é a palavra de Deus, Deus nunca falou.”
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Assim escreve Cormac McCarthy no livro The Road, no qual um pai erra com seu filho por um mundo devastado. Vivemos hoje como desconhecidos num mundo do anonimato; e eis que parece que, neste momento, a vida de cada um ganha uma importância particular, e todos sentimos nos reconhecer enquanto seres humanos.
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De que virtudes carecemos agora para trazer esta solidariedade à prática? Tem-se a impressão de que a “coragem” estaria reservada aos profissionais da saúde, assim como àqueles que mantêm os serviços essenciais, pois são eles que saem, como guerreiros, para a chamada linha de frente da batalha. É claro que devem ser elogiados, mas restringir a coragem a eles talvez remeta a uma concepção calcada em um passado de guerras, quando pensava-se que apenas o soldado que ia a campo agia corajosamente.
Não nos enganemos com simplificações: já no diálogo platônico Laques, quando o personagem homônimo propõe que a coragem estaria em nunca abandonar o próprio posto no campo de batalha, Sócrates responde que pode também existir uma coragem em recuar (Laques, 191a). Pensemos, por exemplo, em retirar-se para trazer o inimigo até o seu campo de batalha, para aí vencê-lo. Pois a coragem não pode ser exercida desvairadamente: uma virtude se acompanha de outras, e quem é corajoso deve também ser prudente e temperante. Faz-se necessário avaliar a situação para decidir como agir, e não meramente avançar.
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Vivemos atualmente[1] um “Paradoxo da Prevenção”, tal como formulado pelo epidemiologista Geoffrey Rose: uma situação na qual “uma medida preventiva que traz grandes benefícios à comunidade oferece pouco a cada indivíduo participante”.[2] Consequentemente, uma situação na qual pode parecer difícil, ou sem sentido, não fazer nada: pareceria que, seja por interesse próprio, seja pelos outros, seria preciso agir de imediato. Uma situação na qual ficar em casa seria, para uns, um atentado contra a autonomia, para outros, um ato de falta de solidariedade. E, no entanto, é diante deste “paradoxo” que cabe permanecermos em casa.
Como declarou a Academia de Ciências do Vaticano em 20/03/2020,
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“Atualmente, o paradoxo é que percebemos a necessidade de cada pessoa cooperar com as outras justamente quando devemos nos isolar de todos os outros por razões de saúde. No entanto, é um paradoxo apenas aparente, pois o ato de ficar em casa constitui um ato de profunda solidariedade. É ‘amar ao próximo como a si mesmo’. Outra lição que a pandemia nos ensina é que, sem solidariedade, liberdade e igualdade não passam de palavras vazias. (Papa Francisco).”[3]
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Trata-se de um paradoxo, portanto, apenas aparente: ficar em casa constitui um ato heroico, ainda que silencioso. Para realizá-lo, por estranho que pareça, é preciso ter coragem.
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Talvez a imagem da coragem como a saída à guerra venha de um modelo demasiado (quem seria eu para dizer?) masculino: o homem saía à guerra ou à navegação, e a mulher ficava em casa. Um modelo demasiado viril da coragem – não por acaso, o que traduzimos por “coragem” era em grego a andreía, literalmente “virilidade”: na língua grega, anér/andros (“homem”) se opõe a gyné (“mulher”), enquanto anthropos designa o “ser humano”. Já “coragem” talvez seja palavra mais acertada – algo que remete ao coração.
Fala-se muito de Economia. Sim, a Economia é importante, mas dela parecemos ter ficado apenas com a segunda parte – nomos, a lei – e esquecido da primeira – oikos, a casa. Esquecemo-nos de nossas casas, e ficamos com as leis: eis a tragédia de um mundo que, do contrato, já não sabe mais qual é a sua substância: nosso contrato social é demasiado formal, abstraindo seus sujeitos e ignorando qual seria o aspecto efetivamente comunitário da sociedade. Saibamos ficar em casa: este é o ato de heroísmo, tão silencioso, esperado de nós neste momento.
Para alguém que se encontra bem alimentado, sob o teto de um quarto confortável e escrevendo em um computador, nada mais fácil do que defender essa atitude. A presente situação nos revela ainda mais certas desigualdades, e o imperativo “fique em casa” certamente não representa o mesmo desafio para todos. Diante da ameaça trazida pela covid-19, é claro que a solidariedade seria ainda mais chamada para a ajuda de alguns em particular, que sofrem de diferentes maneiras.[4]
Levantemos de maneira indicativa alguns aspectos da relação que parece se delinear entre o cuidado da saúde na pandemia e certas questões éticas.
O “Paradoxo”[5] da Prevenção parece ser que o benefício do indivíduo, ao não sair de casa, é muito pequeno quando comparado ao da população como um todo (inclusive ao de sua parcela com maior risco de saúde).[6] Ora, mas isso não seria o caso em qualquer campanha de vacinação? Não é tão óbvio: o comum é que o indivíduo se beneficie pessoalmente quando vacinado;[7] já no isolamento pela covid-19, em muitos casos o foco parece ser essencialmente o outro, o desconhecido – imaginemos, por exemplo, alguém que suspeita que já teve o coronavírus, e esteja talvez imunizado, mas por um princípio de precaução deixa (pelos outros) de sair de casa.
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Talvez o Paradoxo da Prevenção seja esclarecido se o comparamos com a “Tragédia dos Comuns”: o fato de que, quando cada indivíduo age apenas por interesse próprio, com vistas a bens comuns que podem ser esgotados, todo o grupo acaba por ser prejudicado, inclusive os próprios indivíduos (pensemos no uso de recursos atmosféricos: caso todos busquem tomar o máximo que podem deles, nada restará para ninguém). O que muda, entretanto, é que na Tragédia dos Comuns a “conta” vem em algum momento para todos, pois os bens são comuns.[8] No Paradoxo da Prevenção, ela será cobrada de alguns – e no caso da covid-19, ainda que todos sejamos vulneráveis, parece haver uma população de risco.
Compreender isso não resolve, porém, o problema: como suscitar a motivação individual para agir neste sentido? A informação confiável é uma condição mínima, mas as decisões duras nunca derivam meramente de informações, pois são compostas também de aspectos morais. Cabe, portanto, analisar do ponto de vista ético como agir nesta situação.
Nos termos da corrente do Principialismo na Bioética, modelo desenvolvido nos EUA, decisões de dilemas éticos na saúde podem ser colocadas, em uma primeira abordagem, como uma oposição entre diferentes princípios. Por um lado, há o princípio de Autonomia, de acordo com o qual cada pessoa deve ser livre para tomar decisões acerca de sua própria saúde – um valor altamente estimado em sociedades liberais. Neste sentido, caberia a cada um responsabilizar-se por seus atos.
Por outro lado, o princípio de Beneficência indica que caberia aos profissionais de saúde fazer “o bem” aos indivíduos, tratando a cada um da melhor maneira possível – algo difícil quando os recursos se tornam escassos (inclusive devido à velocidade da pandemia). Já o princípio de Não-Maleficência prega que aquele que trata da saúde de uma pessoa não deve fazer mal a esta – ora, deixar uma população exposta a uma situação de contágio não poderia entrar nesta condição?
Finalmente, as doenças infecciosas (dentre as quais a covid-19) mobilizam em particular o quarto dos princípios elencados na corrente Principialista: o de Justiça.[9] De fato, falar de saúde pública, principalmente quando esta envolve a disseminação de doenças, é tocar em questões relativas à distribuição de recursos de saúde, e no que cabe a cada um. A isso se reúne o fato de que sabemos que alguns sofrem mais do que outros – e isso não é apenas uma questão de saúde: em meio ao sofrimento da doença, há os que passam fome, os que têm suas vidas desestruturadas, e também isso deve ser considerado.
Tarefa nada fácil para a saúde pública, e que deixa a desejar frequentemente – talvez não à toa, ao lado de uma Bioética médica para casos particulares que teve um debate amplamente desenvolvido, a Bioética da saúde pública ganhou menos destaque no século passado.[10]
A Autonomia, neste contexto, poderia se ver ameaçada – na medida em que, como esboçamos, a ela se opõem os princípios de Beneficência, de Não-Maleficência e de Justiça. Mas sabemos o perigo do outro extremo: um autoritarismo com o qual flertam, hoje, tantos governos. Certamente não é disso que gostaríamos: desprezar a liberdade individual seria talvez ignorar uma das poucas conquistas sólidas da política moderna. Como, então, pensar a situação?
Talvez a questão diga respeito aos próprios pressupostos acerca de como pensamos nossa sociedade. Uma perspectiva liberal tenderá a abarcar o Princípio do Dano Alheio (Harm Principle), de J. S. Mill: “o único propósito para o qual o poder pode ser exercido com justiça sobre qualquer membro da comunidade civilizada, contra sua vontade, é o de evitar danos a outros”.[11] Um indivíduo pode exercer livremente sua autonomia, sim, mas apenas na medida em que não interfira na liberdade alheia de maneira prejudicial. Pode-se discutir em que medida o Princípio do Dano Alheio justificaria ou não uma intervenção estatal no caso atual; em todo caso, cabe discutir um de seus pressupostos: o de podermos considerar cada indivíduo isoladamente. Ora, uma situação em que o indivíduo decide em favor de sua saúde, sendo também potencial vetor de propagação de uma doença, parece colocar em xeque a própria noção de indivíduo da qual parte tal perspectiva liberal.
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Pensar, assim, na pessoa dentro de um contexto de saúde populacional (seja pelos princípios de Beneficência, Não-Maleficência e Justiça, seja pelo desafio do Princípio do Dano Alheio em um contexto de contaminação) é identificar que, em sociedade, não existe autonomia meramente individual. O animal político do qual fala Aristóteles, em vez de um lugar comum, traduz a noção fundamental para a convivência. Somos, irredutivelmente, seres relacionais, não atomizáveis, e é apenas reconhecendo esta dimensão que podemos, sem cerceamento de liberdades, ser efetivamente solidários.
É preciso olhar para o outro. Como Lévinas diria, é o momento de lembrarmos do caráter irredutível da alteridade com a qual me coloco em contato. Presumir conhecer o outro “tal como ele é” seria tratá-lo em “terceira pessoa”, fazer dele uma coisa. Se, ao contrário, volto-me em “segunda pessoa” para alguém, reconheço a face de um outro eu, diante de quem posso me situar e tomar uma postura genuinamente ética.
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Como propõe Hannah Arendt, trata-se não de sentir “pena” por um terceiro, mas sim uma “muda compaixão” para com as pessoas na “sua singularidade”.
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“Pois a compaixão, ser atingido pelo sofrimento de outrem como se fosse um contágio, e a pena [pity], lamentar sem sofrer na própria carne, não só não são iguais como também podem não ter relação alguma entre si” [ênfase acrescentada].[12]
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Pode parecer apenas um conjunto de palavras. Mas podemos notar que cada um poderia, em seu contexto, mobilizar uma solidariedade face às circunstâncias concretas de sua situação, conforme lhe permitem as possibilidades. Ainda que em situações adversas, isso é sempre possível de alguma maneira.
A própria Arendt nos lembra do exemplo do sargento alemão Anton Schmidt, que durante cinco meses ajudou judeus, fornecendo-lhes documentos e caminhões militares, período ao final do qual foi preso e executado, em março de 1942. É assim que Arendt vê a possibilidade de agir bem apesar do contexto ao qual pareceríamos estar “presos”. Em contextos adversos como os do Totalitarismo, ela escreve, “a maioria das pessoas se conformará, mas algumas pessoas não”, e “nada pode ser ‘praticamente inútil’, pelo menos a longo prazo”. Exemplos heroicos são histórias cuja lição “é simples e está ao alcance de todo mundo” – e são essas histórias que fazem do planeta “um lugar próprio para a vida humana”.[13]
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Somos, talvez, em grande parte, desconhecidos em um mundo de anonimato. Mas somos todos humanos. O outro que sofre me interpela, e me lembra de que pensar-se como indivíduo à parte de suas relações pode ser demasiadamente simplista. Sofremos hoje de algo que atinge, em graus e modalidades distintos, a todos nós, e nos lembramos de quanto compartilhamos uns com os outros, principalmente devido à nossa vulnerabilidade. É isso que poderia fazer esquecer certas diferenças, possibilitando ver efetivamente o outro, e resgatar o que é ser solidário.[14] O que significa solidariedade? Quais são as virtudes que caberia praticar para nos aproximarmos dela? São questões a serem aprofundadas. O fato é que se considerarmos as virtudes isoladamente, jamais compreenderemos o que pode haver de virtuoso em ficar em casa. Em grande partes das vezes, os gestos que as manifestam não são espetaculares. As circunstâncias concretas atuais talvez tornem especialmente difícil escutar esses atos silenciosos, que poderiam parecer inócuos – mas há neles coragem, e podemos acreditar que deixarão rastros heroicos.
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Notas:
[1] Ver https://dailynous.com/2020/03/09/thinking-rationally-coronavirus-covid-19-guest-post-alex-broadbent/
[2] Rose, G. The Strategy of Preventive Medicine. Oxford: Oxford University Press, 1992, p. 12.
[3] “Responding to the Pandemic, Lessons for Future Actions and Changing Priorities”, 5, 3. Disponível em https://www.pas.va/content/accademia/en/events/2020/coronavirus.html .
[4] De acordo com M. Sandel, “Estávamos experimentando, mesmo antes da pandemia, a perda da solidariedade. E, agora que a pandemia chegou, vemos que somos todos mutuamente dependentes. Nós somos contagiosos um para o outro. Em meio à crise, ouvimos muitos políticos com o mesmo slogan: ‘Estamos todos juntos nisso’. De certa forma, é um slogan inspirador, porque a crise revela nossas vulnerabilidades compartilhadas ou dependência mútua. Mas, por outro lado, o slogan ‘Estamos todos juntos nisso’ soa vazio porque ele se insere no contexto de profundas desigualdades. (…) As vozes mais responsáveis precisam encontrar uma maneira de lidar com essas profundas desigualdades para que possamos realmente dizer, e acreditar, que ‘Estamos todos juntos nisso’ ” (https://www.estadao.com.br/infograficos/cultura,precisamos-repensar-nossa-sociedade-para-reconstruir-um-senso-de-solidariedade,1091079).
[5] Talvez, mais do que de um “paradoxo” lógico, trate-se aqui de uma tensão entre o que priorizar no tratamento de saúde: o indivíduo ou a “população como um todo”.
[6] Notemos que ficar em casa parece ser um tipo de prevenção redutiva, ao invés de uma prevenção aditiva (como quando se acrescenta flúor à água). Além disso, como tantas outras medidas preventivas, seu benefício pode ser “invisível” de imediato ou ao indivíduo, ainda que a longo prazo ou populacionalmente o efeito seja significativo.
[7] É um fato que o “efeito manada” benéfico aos não vacinados quando crianças que conviveram com crianças vacinadas não deve ser desprezado. Aqueles de nós que foram imunizados graças a ele não deveriam negligenciá-lo.
[8] A “Tragédia dos Comuns” é um problema econômico, que é apresentado por um modelo que geralmente se assume amoral. Neste sentido, uma solução econômica individualista poderia não implicar, necessariamente, em egoísmo.
[9] Ver, por exemplo, “How infectious diseases got left out–and what this omission might have meant for bioethics”, Bioethics, 19(4), 307-322, e Selgelid, M. J. (2005). “Ethics and Infectious disease”, Bioethics, 19(3), 272-289.
[10] A questão de em que medida o Principialismo caberia nos mesmos termos para a clínica e para a saúde pública é, de fato, complexa. Ver, por exemplo, Francis, L. P., Battin, M. P., Jacobson, J. A., Smith, C. B., & Botkin, J. (2005).
[11] Mill, J. S. (2017). Sobre a liberdade. Trad. de Paulo Geiger. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras.
[12] Arendt identifica estas duas atitudes no Grande Inquisidor e em Jesus, conforme apresentados por Dostoiévski. Arendt, H. (2011). Sobre a revolução. São Paulo: Companhia das Letras, p. 123, tradução modificada. Cf. Darwall, S. (2018). “Contempt as an other-characterizing,’hierarchizing’ attitude”. In: Mason, M. (ed). The Moral Psychology of Contempt, Rowman & Littlefield, pp. 193-216.
[13] Arendt, H. (1999). Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Companhia das Letras, p. 253.
[14] “Uma lição que esse vírus nos ensina é que não é possível desfrutar da liberdade sem responsabilidade ou solidariedade” (“Responding to the Pandemic, Lessons for Future Actions and Changing Priorities”, 5, 2. Disponível em https://www.pas.va/content/accademia/en/events/2020/coronavirus.html).
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