por Lauren de Lacerda Nunes
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Em seu livro introdutório Ethics – A Very Short Introduction (2001), o filósofo britânico Simon Blackburn conta uma história a respeito de um físico visitando seu colega (também físico) e expressando surpresa ao encontrar uma ferradura de boa sorte pendurada na parede da casa. “Certamente você não é supersticioso?” – ele perguntou. “Oh, não, mas me contaram que ela funciona quer eu acredite ou não” – foi a resposta. A lição de Blackburn aqui é comparar esta situação da ferradura com o clima/ambiente ético: ferraduras em paredes não se importam, não interessa o que você pense sobre elas: se tem uma ideia difusa, ou se carrega uma ferradura pendurada no pescoço, os estados do mundo não serão alterados por isso (ou serão, caso você se entregue ao pensamento mágico). Já com o clima/ambiente ético é diferente (magia à parte): ter uma ideia vaga sobre a superioridade de uma raça, combinada com uma ideia errônea sobre o darwinismo, pode ser catastrófico – o nazismo floresceu em um ambiente assim. Por isso, “meras opiniões”, mesmo que não sejam claras para aqueles que as sustentam, não são tão inofensivas quanto parecem: elas não são ferraduras inanimadas em paredes, elas circulam, elas formam a “atmosfera” do clima ético que nos circunda.
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A expressão “clima ético” soa, a um primeiro olhar, estranha. Blackburn também usou “ambiente ético” como sinônimo para o que queria dizer. Para minimizar este estranhamento, analisemos primeiramente as palavras “clima” e “ambiente”, nos aspectos que aqui nos interessam. Começando por clima: “climas” podem variar. Às vezes estamos no “clima” para algo: acendemos velas, fazemos jantares… Às vezes não: o clima é de fazer um café e concentrar-se em uma tarefa abstrata. Com o ambiente, dá-se o mesmo: ele é variável. Às vezes, estamos na praia, às vezes na montanha, ultimamente muitos em casa, e costumamos conviver bem com estas variações. Pense tanto no clima quanto no ambiente como algo circundante, algo efêmero, mas real. O ambiente e o clima estão sempre lá, mesmo que não os percebamos de imediato; mas sua natureza é mutável. Blackburn nos presenteou com a união destes conceitos ao de ética. De acordo com ele, o clima/ambiente ético reflete o “ar” das ideias circundantes em dada sociedade.
Contudo, este “ambiente ético”, pode ser estranhamente invisível para a maioria das pessoas. Essa invisibilidade ganhou destaque para Blackburn quando interpelado de maneira agressiva por um sobrevivente dos campos de concentração nazistas, na ocasião de uma entrevista de rádio. O sobrevivente perguntou: que utilidade teve a filosofia ou a ética em uma marcha para a morte como a que ocorreu na Alemanha nazista? Blackburn respondeu que, de fato, não muita. Não mais do que a literatura, a matemática, a música ou até a mesmo a ciência em tempos como aqueles. Mas a resposta não terminou aí. Considere o ambiente/clima ético que tornou aqueles eventos possíveis. Blackburn (2001, p. 03) nos lembra que, naquela época, Hitler teria proferido a famosa frase “que sorte para os governantes que os homens não possam pensar”. Ao dizer isso, Hitler revelava que até ele estava cego em relação ao ambiente ético que fez com que suas ideias florescessem. Em suma: Hitler só ascendeu ao poder porque as pessoas, de fato, pensavam – mas seu pensamento estava envenenado por um clima de ideias nocivas no entorno, a saber, má aplicação do darwinismo, do romantismo alemão e até de aspectos do judaísmo e do cristianismo.
Além disso, Blackburn chama atenção para o fato de, que além de envenenadas, as ideias não estavam totalmente conscientizadas pelas pessoas. No momento em que as atrocidades aconteceram, de fato, a filosofia, a ética e a própria ciência não tiveram muita utilidade; antes de tudo ocorrer, porém, isso poderia ter sido diferente.
Uma ideia não totalmente conscientizada, retomando o ponto, é uma tendência a se aceitar rotas de pensamento e sentimentos que podemos não reconhecer em nós mesmos, ou sequer sermos capazes de articular. Mesmo assim, ressalta Blackburn, tais disposições governam o mundo social e político; o que pode ser perigoso e catastrófico, como no caso do nazismo. Como bem afirmou Hannah Arendt em As Origens do Totalitarismo, a massa numerosa que não tinha ideias muito claras sobre política na Alemanha nazista acabou, mesmo assim, conduzindo os rumos da nação. A massa não era, afinal, tão inofensiva.
Por isso tudo, é importante refletir sobre o ambiente ético em que vivemos. Isso não é algo que apenas acadêmicos em universidades fazem, lembra Blackburn. Artistas em geral criticam o ambiente ético tão efetivamente quanto fazem os acadêmicos, em alguns casos. A fotografia que você verá a seguir pode ter feito muito mais para parar a guerra do Vietnã do que os escritos de muitos filósofos morais postos em conjunto. Blackburn defende que sempre podemos tentar escrever uma história melhor. Talvez o autor pense uma história em que semelhante fotografia não tivesse sido tirada. Nela, uma menina com o corpo queimado foge de sua aldeia durante um bombardeio de napalm, substância altamente inflamável utilizada nos combates. A força da imagem, e o fato da menina ter sobrevivido ao ataque e decidido contar a sua história, foram decisivas.
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Agora, passo a análise para outro filósofo; desta vez, um norte-americano bastante popular: Michael Sandel, o famoso professor de Harvard, autor do muitíssimo acessado curso “Justiça”, no canal desta universidade no YouTube. Se Blackburn nos mostra os perigos das ideias envenenadas e não totalmente conscientizadas, Sandel oferece, a meu juízo, uma espécie de remédio possível para isso. Em recente entrevista concedida ao jornalista Pedro Bial, durante o evento Brazil Conference 2020, Sandel fez a defesa aberta do debate público de ideias. Mas não quaisquer ideias: ideias morais, aquelas que ninguém quer discutir. Aborto, eutanásia, a má remuneração de determinadas profissões em tempos de pandemia, por exemplo. Sobre a última, Sandel refletiu longamente em sua entrevista.
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Sandel destacou que muitos dilemas têm surgido nestes tempos difíceis. Um deles, o das pessoas que estão se expondo a riscos graves ao seguirem trabalhando nos serviços ditos essenciais. Agora, em tempos como estes, os serviços essenciais saltam aos olhos como nunca: entrega de compras, de comida, limpeza, saúde e tantos outros. A má remuneração em alguns destes serviços também. Por que o preço pago a estas pessoas não está aumentado, considerando o nível de risco a que estão se expondo? É uma pergunta capaz de ser respondida que, no entanto, tem sido evitada pelo debate público.
É nesse sentido que Sandel ainda aborda o fato de que dois impulsos essenciais sobre papeis sociais e economia surgiram com a pandemia. “Estamos nisso juntos” – dizem políticos, celebridades, propagandas. Somos todos vulneráveis, mutuamente dependentes. Este impulso, contudo, tem sido anulado por outro: os sacrifícios sendo feitos de maneira desproporcional por pessoas nesses empregos que não pagam bem, que não são reconhecidos como deveriam. Uma sugestão para iniciar o debate deste dilema poderia ser, de acordo com Sandel, a possibilidade de se pagar bônus para pessoas que estão se expondo a grande risco. Poderíamos começar, como um experimento devido à pandemia, a reconhecer e pagar adequadamente estes trabalhadores agora, como uma situação de emergência, oferecendo garantias caso fiquem doentes. Se estes trabalhadores são tão essenciais e o mercado não os reconhece adequadamente pelas contribuições e sacrifícios que fazem, talvez devêssemos estender esses pagamentos que seriam melhores em tempos de crise para tempos normais. Mas deveríamos aproveitar a crise e iniciar o debate. Aí sim estaríamos “todos juntos” de fato.
Questões como essas são evitadas, sugere Sandel, porque pensar sobre problemas morais é difícil. Tendemos a viver evitando estas reflexões. Mas a essência de uma sociedade pluralista e democrática é justamente discordar e discutir acerca dos princípios que devem governar a vida coletiva. Isso não é fácil, leva ao conflito. Mas é um erro fugir desse conflito, pois não há como decidir sobre a vida em coletividade sem comprometimento com um sério debate moral amplo e público. Quando o debate público não é feito, Sandel lembra, surgem espaços em branco que podem ser ocupados, por exemplo, por vozes autoritárias, hiper-nacionalistas – algo muito danoso para a democracia.
É preciso ressaltar que o debate moral genuíno não é “moralismo”. Moralismo seria a imposição de determinada visão moral de forma coercitiva. É exatamente para que isso não ocorra que sociedades plurais e democráticas devem pensar formas de discutir valores e princípios morais, sem a mera imposição de determinada visão de uns sobre os outros.
Na sugestão de Michael Sandel, o valor primordial que deveria estar norteando as discussões neste período de pandemia seria o do bem comum; o ponto é que mesmo esse valor precisa ser discutido e jamais imposto como tal. O “bem comum” por ele sugerido pode ser entendido, grosso modo, como a preocupação com o bem estar de todos. Mas isso não é absoluto nem encerra qualquer discussão: por exemplo, alguns governos estão dizendo que, pelo “bem comum”, é preciso interromper a quarentena para reativar a economia. O filósofo lembra que isso não é ainda totalmente seguro. É preciso pensar em juízos sensatos sobre o que seria o bem comum, sobretudo em casos assim. É claro que a economia e ter um emprego fazem parte do bem comum, mas voltar a abrir bares e fazer cruzeiros e saber que se sacrificará certo número de vidas para isso pode tornar tudo mais complexo do que parece. Somente o debate público pode estabelecer um possível consenso sobre tais questões.
Questões morais são incômodas, mas necessárias. É por isso que parece legítimo afirmar que o debate público de ideias, tal como sugerido por Sandel, funciona como um bom remédio na prevenção às ideias envenenadas e não totalmente conscientizadas na linha articulada por Blackburn. A pandemia é um ambiente físico no qual ninguém gosta de estar – mas pode ser um ambiente ético de oportunidades valiosas.
Há que se ter coragem de discutir isso em espaços sérios e adequados – é aí que as ideias podem se aclarar e encontrar antídotos em caso de envenenamento.
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Referências bibliográficas
ARENDT, H. Origens do Totalitarismo: Antissemitismo, Imperialismo, Totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.
BLACKBURN, S. Ethics: A Very Short Introduction. Oxford: Oxford University Press, 2001.
SANDEL, M. Brazil Conference 2020: Ética em Tempos de Pandemia. YouTube, 08 mai. 2020. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=LTKyaI52ta8>
SANDEL, M. Justice: What Is The Right Thing To Do? YouTube, 04 set. 2009. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=kBdfcR-8hEY&list=PL30C13C91CFFEFEA6>
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