por Denis Coitinho
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Recentemente fomos confrontados com dois casos bastante chocantes de estupro, os casos envolvendo o jogador Robinho e a influenciadora Mariana Ferrer, que geraram muita indignação e protestos, sobretudo por revelarem características da cultura do estupro que ainda é muito forte nas sociedades contemporâneas. Mas lembremos os detalhes.
Na primeira metade do mês de outubro de 2020, o Santos F. Clube oficializou um contrato com o jogador Robinho por cinco meses. Esta contratação trouxe à público a condenação do jogador que ocorreu em 2017 pela justiça italiana, a saber, a condenação em 1ª. instância por crime de violência sexual em grupo. O caso teve ocorrência em 22 de janeiro de 2013, em uma boate em Milão (Sio Café), quando o jogador e mais 5 amigos foram acusados de estupro por uma jovem de origem albanesa, de 23 anos, que estava comemorando seu aniversário no local. Após o clube se manifestar defendendo o jogador, a empresa Orthopride cancelou o patrocínio com o clube em 15 de outubro, justificando sua decisão em razão do seu respeito às mulheres. No dia seguinte, veio a público a transcrição dos áudios que levaram a condenação do jogador. Em uma das gravações, o jogador diz: “Estou rindo porque não estou nem aí, a mulher estava completamente bêbada, não sabe o que aconteceu”. Após a divulgação dos áudios e com a perda de um patrocinador e a ameaça de mais oito empresas cancelarem o patrocínio, tais como a Kikaldo, Philco, Kodilar, Tekbond, Foxlux, alegando que nenhum ato de violência contra a mulher deve ser tolerado, o clube suspendeu o contrato com o jogador.
O caso de Mariana Ferrer, por sua vez, veio a público no início de novembro do mesmo ano, também causando grande indignação na comunidade. Um trecho gravado de uma audiência realizada via videoconferência foi publicado pelo The Intercept Brasil, revelando que a influenciadora digital Mariana Ferrer, de 23 anos, foi humilhada durante a audiência judicial que analisava a denúncia de estupro registrada por ela. O crime teria ocorrido em 15 de dezembro de 2018, em um evento no Café de La Musique, em Jurerê Internacional, segundo consta no boletim de ocorrência feito no dia seguinte. O advogado de defesa, Cláudio Gastão Filho, insultou a jovem a chamando de mentirosa, além de mostrar fotos supostamente sensuais que não tinham relação com o caso. A gravação publicada veio acompanhada de uma análise da sentença dada ao acusado, André de Camargo Aranha. Nesta sentença, que incluiu as alegações finais do MP que diz que “não seria razoável presumir que [o réu] soubesse ou que deveria saber que a vítima não desejava a relação”, o juiz Rudson Marcos, da 3ª. vara criminal de Florianópolis, julgou como improcedentes as denúncias da jovem e absolveu o réu da acusação de estupro de vulnerável. O julgamento foi criticado até mesmo pelo Ministro do STF, Gilmar Mendes, que disse em suas redes sociais: “As cenas da audiência de Mariana Ferrer são estarrecedoras. O sistema de justiça deve ser instrumento de acolhimento, jamais de tortura e humilhação”.
É certo que estes casos revelam uma clara naturalização da violência contra as mulheres que ainda é resquício de uma cultura machista e patriarcal que foi a tônica na história da humanidade. Deixando esta importante questão de lado, gostaria de analisar estes episódios à luz do fenômeno da injustiça epistêmica, pois creio que ele pode nos ajudar a melhor compreender certas nuances do problema e, sobretudo, pode nos ajudar a encontrar soluções.
Miranda Fricker, em Epistemic Injustice: Power & the Ethics of Knowing (Oxford University Press, 2007), diz que a injustiça epistêmica ocorre quando aspectos discriminatórios arbitrários influenciam no domínio do conhecimento ou, em outras palavras, quando o preconceito identitário influencia as nossas práticas epistêmicas, como originando um déficit de credibilidade no testemunho de um agente ou dificultando a compreensão da realidade social em razão da ausência de certos conceitos centrais (FRICKER, 2007, pp. 01-08). Para ela, há duas formas de injustiça epistêmica; a saber, a injustiça testemunhal e a injustiça hermenêutica. A injustiça testemunhal ocorre quando o preconceito a uma certa identidade causa no ouvinte um nível deflacionado de credibilidade ao que foi afirmado pelo falante. Por exemplo, imaginem a situação em que um policial não acredita no que diz um agente apenas por ele ser negro. Nesse caso, temos um déficit de credibilidade causado pelo preconceito identitário que faz uso de estereótipos para julgar a situação, como o estereótipo que considera que “todo negro mente”, o que nos mostra que esta injustiça é causada pelo preconceito na economia da credibilidade. De outro lado, a injustiça hermenêutica acontece em um estágio anterior, ocorrendo quando uma lacuna nas fontes interpretativas coletivas coloca alguém em uma situação de desvantagem arbitrária no contexto das experiências sociais. Por exemplo, uma mulher que sofre assédio sexual em uma cultura que não possuí o conceito de “assédio sexual” parece estar sofrendo de uma desigualdade hermenêutica, uma vez que a ausência do conceito pode dificultar no reconhecimento da violência que ela está sofrendo. O mesmo poderia ser dito de alguém que sofre racismo em uma sociedade que não possuí o conceito de “racismo”. Casos assim revelam uma marginalização hermenêutica e tem por causa o preconceito identitário estrutural na economia dos recursos hermenêuticos coletivos (FRICKER, 2007, pp. 17-29; pp. 147-161).
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De posse deste entendimento inicial sobre a caracterização da injustiça epistêmica, deixem-me agora interpretar os casos em tela à luz deste fenômeno, pois eles parecem estar intrinsecamente relacionados tanto com a injustiça testemunhal como com a injustiça hermenêutica.
Como vimos brevemente, a injustiça testemunhal ocorre quando há um déficit de credibilidade no testemunho do agente em razão de um preconceito de raça, gênero ou mesmo de classe social. No caso do julgamento sobre o estupro denunciado por Mariane Ferrer parece razoável supor que seu testemunho não teve tanta credibilidade quanto o do acusado André de Camargo Aranha, como ficou evidenciado tanto na audiência como na decisão. Por exemplo, na audiência em questão, o advogado de defesa usa termos como “mentirosa”, “showzinho”, “choro falso” “lágrimas de crocodilo”, bem como do lado da acusação, o MP alega que “não há nos autos qualquer comprovação de que o acusado tinha conhecimento ou deu origem à suposta incapacidade da vítima resistir a sua investida”. O problema é que havia, sim, a prova do crime, a saber, o próprio testemunho de Mariana que relatou o estupro e, no Brasil, a palavra da vítima é prova de especial relevância nestes casos. E para além de seu testemunho, as outras evidências atestaram que havia ocorrido a perfuração do hímen, que o material genético do acusado e o sêmen encontrado na calcinha da vítima era compatível, além do acusado ter sido considerado suspeito por duas testemunhas. Em seu testemunho, André apenas confirmou ter tido contato sexual com a jovem, relatando porém que ela o teria seduzido. Mais do que os fatos em si, parece que foram os estereótipos sociais que forneceram os elementos necessários para o descrédito da vítima e a absolvição do acusado.
A injustiça do caso parece residir na consideração assimétrica em relação aos testemunhos, atribuindo menor credibilidade ao relato da vítima, que é mulher, com base em estereótipos sociais que consideram as mulheres irracionais e não confiáveis, maliciosas ou mesmo que desejariam esconder sua conduta libidinosa ou arruinar a vida de um “homem de bem”. Em interessante artigo intitulado “Como os juízes decidem os casos de estupro?” (Rev. Bras. Polít. Pública, 2018), G. de Almeida e S. Nojiri constatam que “[m]ulheres constantemente retratadas como mentirosas, vingativas ou loucas, têm seus depoimentos valorizados apenas se corresponderem à figura de vítima idealizada pela sociedade e pelo judiciário brasileiro, caso contrário, podem passar de vítimas à culpadas” (2018, p. 828). Este padrão de julgamento pode ser visto, também, como um viés de gênero e revela que dada a dificuldade de comprovação de uma denúncia de estupro, a atenção é deslocada para o comportamento social dos envolvidos, observando-se o histórico da vida da mulher e do acusado. O problema deste modus operandi é que os agentes jurídicos parecem se utilizar de certos estereótipos femininos que condicionam a credibilidade à idoneidade moral-sexual, e isto é uma injustiça por não se aplicar igualmente aos homens. Mas é claro que este descrédito ao testemunho feminino só ocorre em razão de uma cultura de fundo na qual a mulher foi/é objetificada e a violência sexual contra ela foi/é normalizada.
Sobre isto, é importante fazer menção que durante uma grande parte de nossa história: o estupro foi tratado em muitos sistemas jurídicos como violação de propriedade, uma vez que em muitas sociedades as mulheres eram tomadas como mera propriedade dos homens, principalmente do pai, marido ou irmão. E, assim, a vítima do estupro não seria a mulher, mas o seu proprietário, e a sentença, nesse caso, seria a transferência de propriedade. Mais assustador ainda, estuprar uma mulher que não pertencesse a nenhum homem não era considerado crime algum, bem como não era considerado crime o marido estuprar a própria mulher. Yuval Harari, em Sapiens: A Brief History of Humankind (Harper, 2015), traz dados reveladores sobre o tema. Diz que o estuprador era obrigado a pagar o valor de uma noiva ao pai ou irmão da mulher, e a partir de então a mulher estuprada se tornava propriedade do estuprador. Também faz referência que a Bíblia diz que o estuprador deve pagar ao pai da moça cinquenta peças de prata, além de ter que casar-se com ela e que os antigos hebreus achavam esse acordo razoável. Também destaca que esse pensamento não se restringiu ao Oriente Médio. Ainda em 2006 havia 53 países em que um marido não podia ser processado por estuprar a esposa (HARARI, 2015, p. 144-145).
Esta referência anterior à cultura do estupro já nos introduz ao problema da injustiça hermenêutica que, como vimos, ocorre quando certas vivências sociais ficam incompreensíveis para os agentes em razão da ausência das ferramentas conceituais necessárias para dar sentidos às experiências. Penso que o caso Robinho é paradigmático neste sentido, uma vez que ele parece mostrar a existência de um machismo estrutural em nossa sociedade que serve de pano de fundo para os julgamentos que ocorrem tanto nos tribunais como, particularmente, nas redes sociais. No caso em tela, muitas pessoas no Brasil julgaram o ocorrido a partir de certos mitos sobre o estupro, minimizando a culpa do jogador, e responsabilizando integralmente a jovem. Um dos mitos é pensar que o estuprador é um monstro e um desconhecido da vítima, bem como que todo ato de estupro é violento a ponto de deixar marcar visíveis na vítima, uma vez que a mulher que “verdadeiramente” foi estuprada deveria ter resistido fisicamente. Outro mito é considerar que o estupro é causado por um impulso masculino que tem origem no comportamento da mulher ou na roupa usada por ela. No caso em questão, o fato da jovem estar em uma boate, ter bebido, ter feito contato com o jogador, parece ter sido uma razão suficiente para muitos concluírem, inclusive o acusado, que ela estava pedindo por isto e, assim, que nenhum erro ocorreu. O jogador, inclusive, disse em entrevista a UOL em 16/10 que seu único arrependimento foi ter traído sua esposa.
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A injustiça epistêmica em questão tem relação com a marginalização hermenêutica que sofre a vítima de estupro, ocorrendo quando existe uma participação interpretativa desigual com respeito a alguma área significativa da experiência social em que certos membros são marginalizados por sua identidade. Isso pode significar, inclusive, que uma vítima de estupro não reconheça a violência sofrida em razão da própria cultura machista que naturaliza essa prática. É um tipo de discriminação estrutural e é errada porque está fundada em estereótipos.
A partir do exposto, penso que a vantagem interpretativa que o conceito de injustiça epistêmica nos traz é poder pensar em certos procedimentos para eliminar ou, ao menos, minimizar a injustiça tanto testemunhal como hermenêutica nas práticas judiciais, pensando particularmente nos julgamentos de casos de estupro. A esse respeito, é interessante mencionar a solução imaginada pela própria Miranda Fricker. Ela diz que precisaremos contar com a virtude da justiça, que implicará em desenvolver uma sensibilidade epistêmica-moral nos agentes para dar valor igual as afirmações das pessoas e não julgá-las a partir dos preconceitos identitários, bem como será necessário implementar uma correção na própria estrutura social preconceituosa que é a base dos julgamentos fundados em estereótipos e isso para garantir um clima hermeneuticamente mais inclusivo (FRICKER, 2007, pp. 169- 175).
Com isto em mente, penso que o ponto de partida para se interromper a injustiça epistêmica nestes julgamentos seja o reconhecimento do problema. Assim, se poderia pensar em certos tipos cursos ou grupos de estudos que propiciariam aos juízes, promotores, defensores públicos etc. a desmitificação da cultura de estupro. Adicionalmente, se poderia pensar em adotar o Tribunal do Júri para julgar estes casos, tendo como uma vantagem a maior pluralidade valorativa. Nos EUA, por exemplo, é assim. Se isso for desejável e viável, os jurados também poderiam participar destes grupos de estudos. Uma outra ideia seria adotar a medida canadense, que fez uma reforma proibindo o uso de qualquer referência à história sexual da mulher durante estes julgamentos, só sendo possível este uso com um pedido formal que comprova a relevância desta história. Como dito por Craig, em Putting Trials on Trial (McGill-Queen’s University Press, 2018), isto buscou evitar dois mitos: de que a mulher que tem experiência sexual estaria mais propícia a consentir com a relação e de que a mulher promíscua teria menor credibilidade (CRAIG, 2018, p. 39).
Penso que refletir sobre alternativas procedimentais para evitar a influência negativa dos vieses de gênero nos julgamentos de estupro seja imperativo, sobretudo porque fica cada vez mais evidente a injustiça sofrida pelas mulheres, inclusive epistemicamente. Nesse contexto, olhar para a virtude da justiça tanto em termos pessoais como institucionais parece uma rota bastante promissora.
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