Irresponsabilidade epistémica

Apesar de ter o dever moral de ser epistemicamente responsável, o ser humano nem sempre age assim.

por Desidério Murcho

Em 1896, William James publicou o famoso artigo The Will to Believe (“A Vontade de Acreditar”), opondo-se decididamente a W. K. Clifford, que defende que é moral e epistemicamente irresponsável acreditar seja no que for sem provas. James, pelo contrário, defende que é perfeitamente adequado, em alguns casos, acreditar sem provas. A sua oposição, contudo, tem duas componentes muito diferentes e que infelizmente James não distingue cuidadosamente. Por um lado, em certas passagens, James parece desentender Clifford, como se este defendesse que de facto os seres humanos são epistemicamente responsáveis. Pelo contrário, Clifford defende que os seres humanos têm o dever moral de sê-lo, mas escreveu o texto precisamente porque pensa que infelizmente nem sempre o são. Por outro lado, noutras passagens, James tenta defender o indefensável, talvez sem se aperceber: que é perfeitamente adequado epistemicamente acreditar sem quaisquer provas, em alguns casos. Claro que a confusão entre as duas coisas não ajuda a clarificar as coisas; é um pouco como se no auge do império romano um Clifford mais reflectido defendesse energicamente a imoralidade da escravatura, e depois um James cheio de aparente bonomia e profundo conhecimento da alma humana respondesse que as pessoas aceitam a escravatura porque as coisas são como são e nada de especial se consegue fazer quanto a isso. Qualquer leitor ficaria perplexo com este caso, mas o caso não difere muito no que respeita à reacção de James a Clifford no que toca à responsabilidade epistémica.

William James começa o seu texto por introduzir o conceito de opção genuína. Uma opção entre duas ou mais hipóteses é genuína quando é viva (ao invés de morta), forçosa (ao invés de evitável) e momentosa (ao invés de trivial). Vejamos o que entende James por cada um destes conceitos.

Uma opção é viva quando estamos perante hipóteses que consideramos plausíveis ou razoáveis ou que não são meras fantasias. A opção de acreditar que a Lua é habitada não está viva porque consideramos não haver provas sequer remotamente suficientes a favor dessa hipótese. Se tivermos então de optar entre a hipótese de a Lua ser habitada ou não, esta não é uma opção viva, mas antes morta. Porém, optar entre acreditar ou não na divindade cristã é uma opção viva para uma pessoa se ela considerar que ambas as hipóteses são razoáveis. Um dos aspectos curiosos e adequados do pensamento de James é que ele parece ter entrevisto que o que é ou não uma opção viva depende do contexto epistémico da pessoa. Para muitos herdeiros da civilização cristã, a opção entre acreditar ou não na divindade cristã é viva, mas a opção entre acreditar ou não em Zeus ou Osíris não é viva. É devido a este aspecto da epistemologia humana que é tão importante que as instituições cultivem a responsabilidade epistémica, coisa que James não viu; caso as crenças comuns numa sociedade sejam em grande parte falsas, supersticiosas, ilusórias, preconceituosas, fruto de racionalização e de descaso epistémico, as pessoas dessa sociedade considerarão mortas opções que deveriam estar vivas, e vice-versa. Um dos aspectos curiosos do texto de James é ele ter uma boa capacidade para descrever a fragilidade da condição epistémica humana — talvez porque era psicólogo — sem se dar conta do que essa condição caída implica normativamente, que é precisamente o que Clifford viu.

Considere-se agora a diferença entre optar por sair de casa para ir ao cinema, ou sair de casa para ir à praia. Esta opção não é forçosa porque se pode rejeitar ambas e ficar em casa. Porém, se a opção for entre sair de casa ou não, a opção é forçosa no sentido em que não se consegue fugir dela: faça-se o que se fizer, faz-se uma delas, e isso acontece mesmo que não se faça coisa alguma. Eis outro caso: imagine-se que nos oferecem um emprego muito bom, mas que obriga a mudar de país. Contudo, só temos até à meia-noite para aceitar a proposta; se não respondermos, perdemos o emprego. Neste caso, a opção é forçosa, no sentido em que não decidir coisa alguma até à meia-noite é o mesmo do que decidir não ficar com o emprego.

Finalmente, quanto ao conceito de opção momentosa, o caso anterior de um emprego muito bom que nos é oferecido é um exemplo adequado. Isto contrasta com opções triviais, como vestir uma blusa azul em vez de verde. Uma opção é momentosa quando tem um impacto profundo, ficando em aberto que género de impacto é esse. Na verdade, um dos aspectos do pensamento de Clifford é a ideia de que mesmo as crenças triviais têm um aspecto momentoso porque se resultarem de irresponsabilidade epistémica ajudam a abalar a responsabilidade epistémica de toda a sociedade, e têm o efeito inverso se forem o resultado de processos de prova epistemicamente responsáveis. Curiosamente, James pensa que quando a opção é momentosa, e desde que seja também viva, forçosa, e intelectualmente indecidível, é legítimo formar crenças ad libitum:

“A tese que defendo é, em poucas palavras, a seguinte: A nossa natureza passional não só pode, legitimamente, como deve decidir uma opção entre proposições, sempre que se trata de uma opção genuína que não pode, pela sua natureza, ser decidida numa base intelectual […]” (James, “The Will to Believe”, p. 28)

Uma dificuldade inicial que esta perspectiva enfrenta é que as opções não trazem um carimbo na testa dizendo se são ou não intelectualmente indecidíveis. Nos textos de Epicuro encontra-se a ideia — que a ele e aos seus seguidores parecia, é de crer, muitíssimo razoável — de que andar por aí a tentar descobrir a natureza dos corpos celestes era uma estafada tolice porque nunca se conseguiria saber tal coisa. Nas vésperas de qualquer descoberta fundamental, quem declara ser tal coisa intelectualmente indecidível talvez pareça razoável aos mais incautos; mas é refutado miseravelmente no dia seguinte, ainda antes de cantar o galo. As questões cujas respostas não são conhecidas mas virão a sê-lo não é pela cor dos olhos que se distinguem das que ficarão sempre sem resposta; só no próprio processo de tentar responder se sabe se uma questão acabará por ter resposta ou não. Como se vê, James pressupõe ingenuamente uma falsidade: que se sabe à partida quais são as questões intelectualmente indecidíveis. Mas é pior que isso, pois ao declarar que algo é indecidível e que é então legítimo acreditar sem provas, James contribui para o obscurantismo, para a paralisia da investigação que lançaria luz sobre a questão. Afinal, quem já acredita sem provas não é de prever que irá imparcialmente procurá-las, arriscando-se assim a descobrir ao invés contraprovas, para sua irritação e desconsolo.

A posição de James é em si muitíssimo estranha, independentemente das razões que a sustentam. Mesmo sem cair na ingenuidade de pensar que a existência de questões indecididas prova que são indecidíveis, não é fácil ver por que razão haveria de ser perfeitamente legítimo ir atrás dos nossos impulsos doxásticos, que muitas vezes são apenas fruto da sociedade em que vivemos, com os seus dogmas e preconceitos, ou manifestações da nossa preguiça para procurar melhor a verdade, ou do nosso medo de morrer e vontade de acreditar em historietas reconfortantes e infantis. Quando se procura razões para aceitar a posição de James, contudo, fica-se decepcionado; eis como a passagem citada apresenta imediatamente a seguir uma razão terrivelmente má a favor da sua tese:

“A nossa natureza passional não só pode, legitimamente, como deve decidir uma opção entre proposições, sempre que se trata de uma opção genuína que não pode, pela sua natureza, ser decidida numa base intelectual; pois dizer, nessas circunstâncias, “Não decidas, deixa a questão em aberto”, é em si uma decisão passional — tal como decidir que sim ou que não — e é acompanhada do mesmo risco de perder a verdade.” (James, “The Will to Believe”, p. 28)

Imagine-se o que seria argumentar que é perfeitamente razoável defender a escravatura porque, afinal de contas, sentir empatia pelos escravos e nojo moral pelos seus exploradores, é uma reacção passional, tal e qual como quem não sente qualquer empatia por eles nem desaprovação pelos seus opressores. Não há provas de que James estivesse perdido de bêbado quando escreveu esta passagem, mas é melhor imaginar que estava. O simples facto de uma posição ser passional não a torna respeitável, nem para um lado nem para o outro; o que conta, e a única coisa que conta, são as provas. 

James sugere aqui outra razão a favor da sua tese: que o risco de perder a verdade é o mesmo quando se acredita, na ausência de provas, em vez de suspender a crença. Esta ideia de acertar por sorte na verdade está presente noutras passagens do texto, a mais significativa das quais talvez seja a seguinte:

“Clifford, na passagem instrutiva que citei, exorta-nos a […] manter o nosso espírito em suspenso para sempre, em vez de, ao fechá-lo com base em provas insuficientes, incorrer no terrível risco de acreditar em mentiras. Vocês, por outro lado, poderão pensar que o risco de estar errado é insignificante quando comparado com as bênçãos do verdadeiro conhecimento, e poderão estar dispostos a ser enganados muitas vezes na vossa investigação, em vez de adiar indefinidamente a hipótese de acertar por sorte na verdade. Da minha parte, é-me impossível ficar com Clifford.” (James, “The Will to Believe”, p. 34)

A razão aqui sugerida é que acreditar sem provas tem a vantagem de aumentar a probabilidade de se acertar por sorte na verdade. Esta interpretação é confirmada na passagem da analogia com o general, algumas linhas depois:

“A exortação de Clifford é completamente fantástica aos meus ouvidos. É como um general que informa os seus soldados que é melhor ficar para sempre fora da batalha a arriscar um só ferimento. Não é assim que se ganha vitórias aos inimigos ou à natureza. Os nossos erros não são seguramente coisas assim tão terrivelmente solenes. Num mundo onde é tão certo que neles incorreremos apesar de toda a nossa cautela, uma certa ligeireza de espírito parece mais saudável que este excessivo nervosismo por causa deles.” (James, “The Will to Believe”, p. 35)

O último comentário de James é uma vez mais tão completamente destituído de qualquer remota plausibilidade que custa a acreditar que ele tivesse plena consciência do que estava realmente afirmando. Imagine-se o que seria alguém dizer que não vale a pena ter cuidado ao conduzir o automóvel porque, por mais cuidados que tenhamos, não conseguiremos evitar os acidentes; mais vale ter um certo espírito de aventura, acelerar e sentir a adrenalina! Isto é pura e simplesmente estúpido. E que tal parar de investigar para encontrar a cura de tantas doenças terríveis, já que em qualquer caso as pessoas irão continuar a ter doenças e, sobretudo, acabarão todas por morrer?

Contudo, há outro elemento sugerido nesta infeliz passagem que tem um pouco mais de plausibilidade, e que urge esclarecer porque não é um erro assim tão tolo. E a ideia é que acreditar sem provas, quando a questão é intelectualmente indecidível, tem a vantagem de aumentar a probabilidade de se acertar na verdade. Imagine-se um Clifford cuidadoso a investigar uma questão indecidida; por essa mesma razão, ele não toma posição e suspende a crença. James, por outro lado, perante essa mesma questão, sente um certo apego passional e acredita. Por sorte, isso é mesmo verdadeiro e James ganhou assim as “bênçãos do verdadeiro conhecimento”. Esta razão a favor da crença sem provas naquelas circunstâncias tem um ar de razoabilidade inicial. Infelizmente para James, depende de uma confusão importante e recorrente — contra a qual, ironicamente, Clifford com insistência nos alertou.

James tem razão que em muitos casos a crença sem provas acerta por sorte na verdade, mas isso não garante as “bênçãos do verdadeiro conhecimento”. Como Clifford insistiu, e como pelo menos desde o Teeteto de Platão os filósofos defendem, não basta acertar por sorte na verdade para ter conhecimento; é preciso além disso ter boas provas (ou justificações, o termo aqui mais comum, mas que é aproximadamente sinónimo). Uma pessoa que acerta por sorte na lotaria não sabia qual era o número que iria sair. E uma pessoa que cultiva aquela ligeireza de espírito de que fala James e acredita sem boas provas em tudo o que lhe dizem, e em tudo o que lê, não sabe mais que a pessoa cliffordiana que só acredita quando tem provas suficientes. James enganou-se porque pressupôs sem pensar com cuidado que basta acertar por sorte na verdade para saber.

Contudo, há no texto de James um aspecto importante, mas que infelizmente não mereceu da sua parte mais que alguns comentários laterais; ele teria sido mais feliz se dedicasse a esse tema uma reflexão mais aturada. É no prefácio ao livro The Will to Believe and Other Essays, publicado um ano depois do ensaio homónimo, que James sublinha esse aspecto, a que é apropriado chamar “pluralismo epistémico”: a ideia de que para a saúde da investigação, para aumentar a probabilidade de encontrar a verdade, a liberdade de investigação é fundamental, e isso significa permitir a existência de projectos de investigação concorrentes, que vão em direcções diferentes e muitas vezes opostas. Esta ideia é sólida, é muitíssimo importante, e James tem razão. Caso se comece desde o início por limitar a investigação, seja por razões ideológicas, políticas ou religiosas, seja por quaisquer outras razões inadequadas, a probabilidade de descobrir verdades importantes diminui drasticamente.

Esse é precisamente um dos temas principais do famoso livro Sobre a Liberdade, de John Stuart Mill, publicado originalmente em 1859, trinta e sete anos antes do artigo de James. No segundo capítulo, que ocupa quase metade do livro, Mill defende precisamente a importância do que chamei “pluralismo epistémico”, e fá-lo recorrendo a um argumento epistémico importante, por um lado, e a alguns exemplos históricos. Começando pelo segundo caso, Mill faz notar que algumas das pessoas mais sábias e mais admiráveis do ponto de vista moral erraram, e erraram muitíssimo. Ele dá o exemplo do imperador Marco Aurélio para se compreender a importância daquilo a que chamo “distanciamento epistémico”: a capacidade para dar um passo atrás, olhar para as nossas próprias convicções, e ver que talvez estejamos enganados, e enganados quanto ao que consideramos maximamente importante não estar enganados. Sem distanciamento epistémico não se dá este passo atrás e aceita-se como definitivas e insusceptíveis de erro todas as crenças que por acaso se tem, só porque são nossas. É um mal que infelizmente afecta a humanidade desde há muito, e que a afecta tanto mais quanto mais ignorante ela é; é quase uma lei da natureza que quanto mais ignorante é uma pessoa, mais segura epistemicamente ela se sente da verdade das suas crenças.

E este é o argumento epistémico de Mill a favor da liberdade de expressão: só a diversidade de pontos de vista, todos criticamente examinados em liberdade, permite descobrir a verdade porque somos todos muitíssimo limitados e sujeitos ao erro. É porque somos profundamente falíveis, cognitivamente, que precisamos da crítica e da liberdade de investigação e discussão de ideias: 

“As crenças a favor das quais temos mais garantias não têm qualquer salvaguarda em que se apoiar senão um convite permanente ao mundo inteiro para provar que não têm fundamento. Se o desafio não for aceite, ou se o for e a tentativa fracassar, estaremos ainda longe da certeza; mas teremos feito o melhor que o estado actual da razão humana permite; nada negligenciámos que possa dar à verdade uma hipótese de chegar até nós: se as alternativas forem mantidas em aberto, podemos ter a esperança de que se houver uma verdade melhor, será encontrada quando o espírito humano for capaz de recebê-la; e entretanto podemos confiar que conseguimos chegar tão próximo da verdade quanto o que nos nossos dias é possível. Esta é a única medida de certeza alcançável por um ser falível, e a única maneira de alcançá-la.” (Mill, On Liberty, p. 26)

O pluralismo epistémico é uma das mais importantes ideias da humanidade, e opõe-se ao fechamento cognitivo, ao dogma, ao preconceito, às ideias apressadamente aceitas só porque são comuns, ou tradicionais ou confortáveis. Significa rejeitar a autoridade e a tradição, e insistir em procurar cuidadosamente as provas; é, segundo Kant, o espírito do Iluminismo: Sapere aude!, ousai saber! 

Contudo, Mill não se deu conta do que hoje é muitíssimo mais evidente do que no seu tempo. No livro Merchants of Doubt (2010), Oreskes e Conway documentam a maneira como a liberdade de apresentação de pontos de vista diversificados foi explorada pela indústria norte-americana do tabaco para adiar a convicção pública cientificamente verdadeira de que o tabaco provoca o cancro do pulmão, e não só. Sob a capa de apresentar pontos de vista diversificados ao grande público, os jornalistas davam tempo de antena a cientistas pagos pela indústria do tabaco que se tornaram profissionais em levantar leves dúvidas aos resultados da investigação científica — tudo com um ar de respeitabilidade científica. E, claro, por um lado, o grande público não sabe que as provas científicas não são coisas simples como olhar e ver que está nevoeiro, nem sabe que há sempre dúvidas e anomalias em qualquer resultado. Por outro lado, quem já tinha o vício de fumar estava cheio de vontade de encontrar a boa notícia de que afinal podia fumar sem preocupações. O resultado óbvio foi o sofrimento e a morte perfeitamente evitável de um elevadíssimo número de pessoas.

Entre o dogmatismo da investigação que foi predeterminada como politicamente correcta ou que responde aos interesses ilegítimos e muitas vezes malévolos deste ou daquele sector da sociedade, e a completa liberdade para expor pontos de vista à toa, é preciso encontrar um meio-termo. Um meio-termo que permita os frutos que Mill entreviu, mas sem cair no ruído de tantas opiniões e versões que a verdade fica afogada no meio do ruído — como acontece hoje em dia, com tolos atrás de tolos atacando a vacinação de crianças, e condenando assim várias pessoas a doenças e mortes perfeitamente escusadas.

Eis a ironia capital: se James tinha em mente o pluralismo epistémico como condição para a descoberta da verdade, estava obrigado a aceitar a posição de Clifford que ele tanto atacou. E porquê? Porque sem ao mesmo tempo exigir boas provas de maneira intransigente e sem concessões, o pluralismo epistémico torna-se uma selva em que ganha a mentira que se grita mais alto por quem tem mais poder mediático, ou político, ou religioso, ou qualquer outro. Não ganha a verdade de quem tem melhores provas, porque a exigência de provas foi atirada pela janela com a proverbial água do banho.

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