por Desidério Murcho
Numa importante e abrangente obra de filosofia do século XVIII, lê-se o seguinte:
Quer Deus impedir o mal, mas não pode? Então é impotente. Pode, mas não quer? Então é malévolo. Quer e pode? De onde vem então o mal? (Hume, Diálogos sobre a Religião Natural, x, § 25)
O problema do mal é a tensão entre a suposta existência de uma pessoa divina sumamente boa, omnisciente, omnipotente e criadora, por um lado, e a existência de mal supostamente gratuito. Aparentemente, há males gratuitos, como doenças terríveis, e parece razoável pensar que uma pessoa divina sumamente boa não quer que esses males existam; mas se ela é omnisciente, sabe que existem, e se é omnipotente, parece que conseguiria eliminá-los, se o quisesse, ou conseguiria ter criado o Universo de maneira a que não existissem. Parece, pois, que ou não existe uma divindade teísta, ou os males não são gratuitos. Um mal é gratuito quando não serve qualquer finalidade suficientemente boa que o compense.
A tensão entre a suposta existência de uma divindade teísta e o mal aparentemente gratuito dá origem a duas reacções bastante diferentes:
Modus tollens agnóstico
Se existe uma divindade teísta, não há males gratuitos.
Há males gratuitos.
Logo, não existe uma divindade teísta.
Modus ponens teísta
Se existe uma divindade teísta, não há males gratuitos.
Existe uma divindade teísta.
Logo, não há males gratuitos.
Os dois raciocínios são válidos, e a primeira premissa é igual. Por isso, tudo depende da plausibilidade da segunda premissa. Os agnósticos consideram que a existência da divindade teísta é apenas uma hipótese entre outras, e que é muitíssimo mais evidente que há males gratuitos. Por isso, concluem que não existe tal divindade. Talvez até exista alguma divindade, mas não a teísta: ou não é omnisciente e por isso não sabe que o mal gratuito existe, ou não é sumamente boa e por isso não quer eliminá-lo, ou não é omnipotente e por isso não consegue acabar com ele.
Em contraste, os teístas consideram evidente que Deus existe, ou pelo menos que a sua existência está muitíssimo bem comprovada, pelo que concluem que não há realmente males gratuitos — ainda que assim o pareça superficialmente.
Na versão agnóstica do problema do mal considera-se que os males gratuitos são indícios, provas ou razões adequadas para concluir que não existe uma divindade teísta. Diz-se por isso que este é o problema probatório do mal: trata-se de invocar os males aparentemente gratuitos para tentar provar (talvez indutivamente) que não existe, ou é improvável que exista, uma divindade teísta.
A versão agnóstica do problema do mal só surgiu mais recentemente; durante muito tempo, porque os filósofos eram teístas e não duvidavam seriamente da existência de Deus, era o problema lógico do mal que os preocupava. Este problema é a dificuldade de explicar como a existência da divindade teísta é logicamente compatível com a existência de males aparentemente gratuitos.
Quando duas ou mais proposições são logicamente incompatíveis, pelo menos uma delas é falsa. Ora, as seguintes cinco proposições parecem incompatíveis:
-
- Existe uma pessoa divina que é omnisciente.
- Essa pessoa é omnipotente.
- E é também sumamente boa.
- Além disso, criou o Universo.
- Existem males gratuitos.
Os pensadores religiosos não-teístas rejeitam uma ou mais das proposições 1, 2, 3 ou 4. Os teístas, ao invés, mantêm essas proposições e rejeitam a 5: defendem que não há afinal males gratuitos, ainda que assim o pareça.
E é precisamente assim que Leibniz encara o problema do mal.
Leibniz introduziu o termo “teodiceia” a partir das raízes gregas teo, “Deus”, e dikê, “justiça”. Uma teodiceia é uma tentativa de mostrar que a justiça divina é compatível com o mal. Ora, Leibniz considera que da concepção teísta de Deus se conclui correctamente que esta é uma divindade absolutamente perfeita: é maximamente grandioso, como Anselmo também pensava. Mas Leibniz tem plena consciência de que nem sempre há uma grandiosidade máxima, ou absoluta, tal como não existe um número par que seja o maior de todos. Contudo, ele pensa que a divindade teísta tem nesse grau máximo todas as características que não é contraditório considerar que têm um máximo.
A ideia de Leibniz é que não há um número par que seja o maior de todos porque a consideração dessa hipótese rapidamente conduz a uma contradição. Imagine-se que n é por definição esse tal número par maior de todos. Mas n + 2 é outro número par, certamente, e ainda maior que n. Logo, n é e não é o maior de todos. Chegámos a uma contradição, e isso significa que a hipótese inicial era falsa — não existe o número par maior de todos.
Contudo, Leibniz pensa que noutros casos, como no conhecimento, não se chega a esta contradição. Ele pensa que a hipótese de um conhecimento maior que o qual nenhum outro pode ser pensado não conduz a uma contradição — e por isso existe esse conhecimento máximo. E essa é precisamente uma das características da divindade teísta — é omnisciente, em absoluto, no sentido de ter o conhecimento mais perfeito ou completo de todos. Eis as palavras do próprio Leibniz:
A noção de Deus mais comummente aceite e a mais significativa que temos expressa-se muitíssimo bem nestes termos: que Deus é um ser absolutamente perfeito; mas as consequências disto não foram suficientemente bem pensadas. Para ir um pouco mais longe é de notar que há várias perfeições completamente diferentes na natureza, que Deus as tem todas em conjunto, e que cada uma lhe pertence no mais alto grau. É também necessário entender o que é uma perfeição. Eis um indicador fidedigno: uma forma ou natureza que não possa ser tomada no seu mais elevado grau não é uma perfeição — por exemplo, a natureza do número ou da figura. Pois o maior de todos os números (ou melhor, o número total de todos os números), tal como a maior das figuras, implica uma contradição, ao passo que o maior conhecimento, e omnipotência, não envolvem qualquer impossibilidade. Logo, o poder e o conhecimento são perfeições, e na medida em que pertencem a Deus, são ilimitadas. (Leibniz, Discurso de Metafísica, §1)
Assim, Leibniz considera que a divindade teísta tem no máximo grau todas as características que é logicamente possível ter nesse grau. Não tem no máximo grau a característica de ter a maior dimensão, porque é contraditório pensar que uma entidade seja a maior de todas as possíveis — há sempre outra entidade possível ainda maior. Porém, Deus tem o poder, o conhecimento e a bondade no maior grau porque, pensa Leibniz, não é contraditório imaginar tal coisa.
Precisamente porque Deus é perfeito, pensa Leibniz, o Universo que criou é o melhor de todos os possíveis. É isso que significa a sua conhecida expressão “O melhor de todos os mundos possíveis”. Leibniz pensa que o Universo que Deus criou é o melhor que poderia ser criado precisamente porque Deus é perfeito: é omnipotente, e por isso pôde criar o melhor Universo; é omnisciente, e por isso sabia como criá-lo; e é sumamente bom, e por isso queria criar o melhor Universo. E, portanto, criou-o.
Como explicar, porém, a existência de males aparentemente gratuitos?
Leibniz considera que os males que nos parecem gratuitos não o são de facto. São características indissociáveis de bens que Deus promove. Do mesmo modo que Deus não pode fazer o maior número par — porque isso é logicamente impossível — também não pode criar um universo maximamente perfeito sem criar ao mesmo tempo coisas que, aos nossos olhos, nos parecem males gratuitos, apesar de não o serem de facto. Leibniz usa duas analogias para explicar o que tem em mente.
Considere-se qualquer quadrado com dois centímetros de lado. O quadrado é matematicamente perfeito, no sentido em que cada lado é rigorosamente igual aos outros três, assim como os seus ângulos; e a área do quadrado exprime-se também de uma maneira matematicamente perfeita: 2 cm × 2 cm = 4 cm2. Porém, não há maneira de criar este quadrado sem ao mesmo tempo criar a imperfeição da hipotenusa dos dois triângulos em que o quadrado se divide. A linha diagonal que une os vértices opostos do quadrado é incomensurável relativamente à dimensão dos lados do rectângulo. É isto que se sabe pelo teorema de Pitágoras: o quadrado da diagonal é igual à soma do quadrado dos dois lados. Mas isto significa que a diagonal não tem qualquer medida perfeita. O quadrado da diagonal tem 22 + 22 = 8 cm, o que significa que a diagonal em si é igual à raiz quadrada de oito: 2,82842712475… Ou seja, não há qualquer número perfeito que seja a medida da diagonal. Assim, ao criar a figura perfeita do quadrado, Deus cria também o que parece uma imperfeição gratuita. Mas não é gratuita; é uma condição da existência do próprio quadrado. Eis as palavras de Leibniz:
Não é verdadeiro que se a ordem das coisas, ou a sabedoria divina, exigiu que Deus fizesse quadrados perfeitos, então Deus, tendo resolvido fazê-lo, não poderia deixar de fazer linhas incomensuráveis, apesar de terem a imperfeição de não poderem ser expressas de maneira exacta? Pois um quadrado não pode deixar de ter uma diagonal, que é a distância dos seus ângulos opostos. (Leibniz, “Diálogo sobre a Liberdade Humana e a Origem do Mal”, pp. 116–117)
A segunda analogia de Leibniz é a ideia de que quando os seres humanos vêem apenas uma parte insignificante da realidade, ficam com a ilusão de estar a ver males gratuitos; na verdade, são componentes fundamentais de bens mais grandiosos que Deus criou. O mesmo acontece se um ser humano estiver perante uma pintura maravilhosa, mas que mede tantos quilómetros que os seres humanos só são capazes de ver as partes que têm sombras e outros aspectos que não parecem belos — mas que fazem parte de uma totalidade de beleza superlativa. Eis as suas palavras:
Acredito que Deus criou coisas em perfeição última, apesar de não nos parecer isso ao considerar partes do Universo. É um pouco como o que acontece na música e na pintura, pois as sombras e dissonâncias melhoram verdadeiramente as outras partes, e o autor sábio de tais obras obtém destas imperfeições particulares um benefício tão grandioso para a perfeição total do seu trabalho que é muito melhor dar-lhes espaço do que tentar passar sem elas. Assim, temos de acreditar que Deus não teria permitido o pecado nem teria criado coisas que sabe que irão pecar, se não tivesse obtido delas um bem incomparavelmente maior que o mal que daí resulta. (Leibniz, “Diálogo sobre a Liberdade Humana e a Origem do Mal”, pp. 115)
Em suma, Leibniz considera que não há afinal qualquer mal gratuito. Os muitos males que parecem fazer parte do Universo são afinal constituintes de bens muitíssimo mais importantes. Leibniz admite, pois, que existem males, mas nega que sejam gratuitos — e é por isso que são compatíveis com a bondade, omnipotência e omnisciência de uma pessoa divina que criou o Universo e tudo o que ele contém. Contudo, o conhecimento imperfeito dos seres humanos não lhes permite ver a totalidade do Universo, e por isso não vêem os bens associados aos males a que assistem; e é por isso que lhes parece erradamente que são gratuitos.
Terá Leibniz razão?
A primeira dificuldade da posição de Leibniz é que a sua resposta ao problema lógico do mal limita-se a explicar genericamente, mas não em particular, como os males são compatíveis com a divindade teísta. Considere-se um caso particular de sofrimento: uma criança de cinco anos, com uma doença grave e incurável, morre, depois de dois anos de sofrimento intenso. Não só sofreu ela, como sofreram os pais e familiares da criança, assim como os seus amigos; além disso, foram gastos recursos imensos que poderiam ter sido usados para fazer coisas criativas, como pintar quadros, praticar desportos ou escrever sonatas. Leibniz não nos diz em pormenor qual é o bem maior do qual todo este sofrimento é uma componente fundamental. Claro que podemos imaginar alguns desses bens: o estoicismo da própria criança, a abnegação dos pais e familiares, o profissionalismo e empatia profunda de médicos e enfermeiros. Contudo, é pura e simplesmente falso que, do nosso ponto de vista, estes bens superem o mal daquele sofrimento — basta pensar que nenhum progenitor que não seja perverso provocaria aquela doença no seu filho só porque daí resultam alguns bens.
Esta dificuldade, porém, tem uma resposta óbvia da parte de Leibniz. Claro que não sabemos em pormenor quais são os bens maiores que fazem parte dos males que nos parecem gratuitos, diria ele; não o sabemos porque somos limitados. Porém, dado que se prova facilmente que a divindade teísta é logicamente incompatível com males gratuitos, levar a sério a existência dessa divindade obriga a levar a sério a ideia de que não há realmente males gratuitos. Esta ideia tem de ser levada a sério, por mais que isso nos pareça estranho e por mais que sejamos incapazes de explicar em pormenor que bens são esses que são constituídos por males aparentemente gratuitos. Tem de ser levada a sério porque não há outra maneira de tornar a divindade teísta compatível com o mal.
A primeira dificuldade recebe uma resposta óbvia, e perfeitamente razoável, mas acaba por levantar uma dificuldade muitíssimo mais importante e aparentemente fatal.
Muito humildemente, Leibniz considera que somos demasiado limitados para saber em pormenor quais são os bens que superam e tornam necessários os males evidentes. Porém, se somos limitados para saber isso, também somos limitados para saber se Deus existe ou não. É incoerente, ou pelo menos arbitrário, aceitar que não há a possibilidade de erro quando consideramos que sabemos que Deus existe, mas que somos demasiado limitados para saber quais são os bens que dão sentido aos males e os anulam. Ou somos demasiado limitados nos dois casos, ou em nenhum, porque é tão difícil saber se Deus existe, como difícil é saber quais são os bens que superam e anulam os males evidentes, caso Deus exista.
Em suma, a resposta de Leibniz ao problema do mal parece epistemicamente incoerente, ou pelo menos arbitrária.
A resposta de Leibniz ao problema do mal está longe de ser satisfatória. Mostrar a compatibilidade lógica entre a existência de males aparentemente gratuitos e a existência da divindade teísta é um exercício frívolo porque com suficiente imaginação consegue-se defender que quaisquer duas coisas aparentemente incompatíveis são afinal perfeitamente compatíveis. Quem quiser continuar a insistir que a Terra está imóvel no centro do Universo, consegue continuar a insistir que as observações e medições aparentemente incompatíveis com essa hipótese são afinal perfeitamente compatíveis. É preciso ter a boa vontade de considerar as duas hipóteses de maneira imparcial, para determinar então qual é a mais razoável face ao que sabemos ou temos boas razões para pensar que sabemos. E foi isso precisamente que Leibniz não fez.