por Ricardo Mantovani
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A parábola oriental conhecida como “Os cegos e o elefante” narra o seguinte acontecimento: após a chegada de um elefante a um vilarejo, alguns sábios cegos que lá moravam se puseram a tatear o animal, do qual não possuíam qualquer conhecimento prévio. O sábio que apalpou a barriga do elefante afirmou que este era semelhante a uma parede. O sábio que tocou a tromba do mamífero, por sua vez, negando o que dissera seu colega, garantiu que o elefante era similar a uma cobra. O sábio que sondou as pernas da besta, não tendo dúvidas em contradizer os demais, assegurou que o elefante parecia um grande tronco. Outro sábio, agarrado ao rabo do paquiderme, jurou que este lembrava uma corda…
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Dependendo da fonte em que nos baseamos, o número de sábios engajados no conhecimento do elefante varia, assim como variam alguns outros detalhes da história registrada, pela primeira vez, no Udana, um dos mais antigos textos budistas. Note-se que, originalmente, a parábola não pretendia indicar que a verdade não existe ou que é relativa, mas tão somente que, em geral, visamos a Verdade (com “v” maiúsculo) a partir de uma certa perspectiva — por definição, limitante, restringente. Trata-se, antes de mais nada, de um convite à aceitação de uma visão mais abrangente (como aquela apresentada pelos ensinamentos de Buda), e não de um manifesto pós-moderno!
“A verdade não existe. Tudo o que existe são interpretações”: eis, no entanto, uma declaração que, já há algum tempo, vem sendo tida por signo inequívoco da inteligência e da tolerância daquele que a profere. Ora, mas será que isto deveria ser assim? De saída, perceba o leitor que tal tese, quando aplicada à parábola mencionada, exige que concluamos que o elefante não existe, existindo apenas as intepretações que dele fizeram os sábios: insanidade que muitos parecem abraçar felizes e orgulhosos.
Urge denunciarmos que proposições tais como “a verdade é relativa” não sobrevivem ao menor exame. Afinal, se a verdade é relativa, a própria frase “a verdade é relativa” é, também ela, relativa — e, assim sendo, não preciso lhe dar ouvidos, podendo permanecer, tranquilamente, na minha posição não-relativista (ou, como alguns a chamam, absolutista). O fato é que toda afirmação relativista sofre da “síndrome do lenhador estúpido”, o que significa dizer que toda afirmação relativista corta, incontinente, o galho em que está sentada — ou que, na melhor das hipóteses, lança seu propositor em situações embaraçosas. Vejamos alguns exemplos deste curioso fenômeno.
Que se considere o relativismo histórico, teoria segundo a qual cada época possui sua própria verdade. Pois bem. Se os relativistas históricos estivessem certos, seria necessário concluir (como eles o fazem) que o conhecimento humano não progride — todas teses científicas e filosóficas não passando de criações datadas. Mas pense direito. Se nenhuma tese científica ou filosófica constitui um real ganho para a civilização, possuindo data de validade como um iogurte, o próprio relativismo histórico não precisa mais ser levado a sério, já que ele mesmo é uma tese datada — e que, a bem da verdade, começa a cheirar mal.
Peguemos, agora, o caso do relativismo moral (ou cultural). De fato, diferentemente dos grandes eruditos e pesquisadores responsáveis pelo estabelecimento da Antropologia como ciência, inúmeros antropólogos formados ao longo das últimas décadas professam um relativismo moral sem limites. Infanticídio, estupro, roubo: não há uma coisa sequer que estes profissionais não considerem aceitável — e mesmo bela — desde que possam exorcizá-la com a seguinte expressão mágica: “isto faz parte dos costumes deles”. Ironicamente, os mesmos antropólogos relativistas, que defendem que não há um certo e um errado absolutos, repreendem missionários cristãos quando estes se põem a divulgar sua religião para os indígenas — mesmo que “pregar a boa nova” seja um dos costumes mais arraigados do Ocidente. E aí? Os costumes são ou não são o cânone supremo da moral?
Por fim, considere-se aqueles que, à moda de Michel Foucault, defendem que cada saber não é senão uma forma de poder. Segundo esta visão, todo conhecimento (ou pretenso conhecimento) não passa de um discurso que visa estabelecer a dominação de um grupo social sobre outro. Neste contexto, a pergunta pela Verdade se torna obsoleta, já que as “verdades” (entre mil aspas) estão sempre — e só podem estar — a serviço de alguém. Mas, se assim é, que motivos teríamos para aderir ao saber desenvolvido por Foucault e seus acólitos? Não seria também ele apenas um instrumento de dominação? Ou será que os foucaultianos se consideram a única exceção a sua própria teoria? Decifra-me ou devoro-te.
Nestas breves linhas, não quis dar a entender que a verdade é algo fácil de ser conhecido. Ao invés disto, quis indicar que a inegável dificuldade de encontrar a verdade não deve — e não pode — servir de pretexto para negar sua existência: o relativismo, como demonstrado, enfrenta sérias dificuldades para se sustentar quando levado às últimas consequências. A título de conclusão (e de gancho para reflexões posteriores), quero chamar a atenção do leitor para a seguinte hipótese: quer parecer-me que se nossa sociedade passa, atualmente, por uma grave crise de autoridade, isto se deve, em grande medida, à massiva difusão da tese segundo a qual a verdade não existe — ou que é relativa, o que dá no mesmo. Por que deveriam os jovens obedecer aos pais, aos professores e às leis se, no fundo, tudo é relativo, uma construção histórico-cultural-opressiva? Pois é. As ideias têm consequências: eis uma verdade que nunca fica velha!
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