por Luiz Bueno
Cientista político, historiador e professor da Universidade de Columbia, o norte-americano Mark Lilla, que esteve no Brasil em 2018 para participar do ciclo Fronteiras do Pensamento e de programas jornalísticos, como o Roda Viva da TV Cultura, ficou conhecido internacionalmente devido à grande polêmica produzida por um artigo que publicou no jornal The New York Times em 18 de Novembro de 2016, chamado The End of Indentity Liberalism, no qual fazia uma severa autocrítica de seu partido, o Democrata, quanto à política identitária adotada pela esquerda americana (os progressistas, ou “liberals”).
Segundo Lilla, este teria sido um grande erro de visão dos progressistas americanos pois os teria colocado em um caminho que conduzira à fragmentação de seu eleitorado como consequência da contínua afirmação das identidades políticas particulares. Um pensamento e uma prática que teria feito com que cada grupo identitário fosse paulatinamente se fechando sobre si próprio e se tornando incapaz de estabelecer vínculos ou conexões com outros grupos.
Essa espetacular fragmentação identitária levou grande parte do eleitorado americano, especialmente aquele do próprio Partido Democrata, à percepção de que os progressistas estavam focados na defesa apenas dos direitos de minorias e que tinham se desconectado das maiorias, como as dos trabalhadores de setores industriais que estavam desempregados ou em dificuldades econômicas devido às grandes mudanças trazidas pela globalização da produção. Lilla mostra que a decisão por colocar seus esforços na política identitária fez com que o partido perdesse a conexão com a base da sociedade, tornando-se incapaz de produzir uma visão do país que integrasse e incluísse os muitos segmentos sociais e econômicos. Esta perda de conexão com a base da sociedade fez com que os progressistas não percebessem que uma grande parcela de pessoas reais já não se via representada pelo partido Democrata nem via nele a capacidade de lhes enxergar como cidadãos. Esta grande maioria se sentiu marginalizada pela elite do partido Democrata e, por esta razão, voltou-se para o candidato que lhes pareceu enxergar a sua situação, que teve uma linguagem que lhes fosse compreensível e que lhes pareceu ser capaz de falar com esta grande maioria que se sentia excluída ou esquecida pelos progressistas. Sendo assim, na visão de Lilla, a derrota para Donald Trump é de responsabilidade, primeiramente, dos próprios progressistas norte-americanos. Mark Lilla disse em seu artigo que “o liberalismo americano derrapou para um tipo de pânico moral sobre identidade racial, de gênero e sexual que distorceu a mensagem liberal e o impediu de se tornar uma força unificadora capaz de governar”.
Não foi por menos que o jornalista J. Oliver Conroy, do jornal inglês The Guardian, que também se posiciona à esquerda na Inglaterra, se referiu a Mark Lilla, no título de seu artigo de 21 de Dezembro de 2017, como O liberal que reúne mais inimigos na esquerda do que na direita.
Lilla disse ainda em seu artigo que “em períodos sadios, uma política de âmbito nacional não trata de ‘diferença’ mas daquilo que é comum a todos” (“commonality”). As reflexões desenvolvida no artigo foram ampliadas e aprofundadas e se tornaram o livro O Progressista de Ontem e do Amanhã, publicado no Brasil pela Companhia das Letras. Especialmente o trecho acima, que se refere ao foco no que é comum, foi objeto tanto de exposição no livro quando de colocações que Lilla fez várias vezes em suas participações ao vivo em debates e entrevistas.
Colocar seus esforços na política identitária fez com que o partido perdesse a conexão com a base da sociedade
O que queremos chamar a atenção aqui é que Lilla estende seu pensamento a ponto de dizer que esta visão nacional, esta visão integradora e unificadora, para superar o enclausuramento na política identitária, deveria se embasar em princípios amplos como a cidadania e a solidariedade. No livro, Lilla afirma que o liberalismo identitário teria banido a palavra “nós” do seu discurso político. Em sua visão, no discurso liberal clássico, o “nós” seria um apelo ao sentimento de solidariedade para com os desafortunados e um chamado a ajudá-los. Hoje, o “nós” do progressista refere-se apenas aos membros de cada um dos muitos grupos identitários que são o foco de sua política atual. Nesta crítica, Lilla aponta diretamente para aquilo que no Brasil se conhece como “lugar de fala”, uma atitude de autoenclausuramento em que os grupos liberais identitários “querem afirmar sua diferença e reagem com petulância a qualquer indício de que sua experiência e suas necessidades particulares estejam sendo apagadas. Mas, quando cobram ação política, para ajudar seu grupo X, exigem-na de pessoas que eles próprios definiram como não X e cuja experiência, dizem, não se compara às suas. Mas, se é assim, por que esses outros responderiam ao apelo? Por que os não X haveriam de dar a mínima importância aos X se não acreditassem que têm com eles alguma coisa em comum?”
Diante desse quadro, Lilla enxerga uma única solução: recobrar o velho conceito de cidadania. Esta palavra encerra a ideia de que haveria algo em comum que todos as pessoas poderiam reconhecer como um status político compartilhado por todos. A noção de cidadania seria, em sua visão, a única forma de sair do individualismo extremo. Lilla acredita, ainda, que a cidadania permitiria recuperar também uma outra relação social fundamental: a solidariedade. Neste caso, a cidadania permitiria ultrapassar os vínculos identitários para que a solidariedade pudesse ser experimentada. Mas, um terceiro elemento aparece, que está fora da visão tanto de liberais identitários quanto de progressistas em geral: a noção de que tanto a cidadania quanto a solidariedade dependem de que se tenha a clareza que eles implicam em deveres. Se se quer direitos identitários respeitados, é preciso saber que eles implicam em uma contrapartida de deveres recíprocos. Em suma, para que a esquerda americana pudesse falar em justiça econômica (algo que Lilla ainda precisaria esclarecer, pois não é um conceito claro e tampouco evidente), seria preciso que deixasse de pensar em termos de classe e passasse a apelar para o conceito comum de cidadania.
Para superar o enclausuramento na política identitária, deveria se embasar em princípios amplos como a cidadania e a solidariedade
Note-se que, para que os progressistas norte-americanos possam recobrar a capacidade de falar com todos os eleitores de seu país, Lilla passa a apontar para conceitos que são comumente encontrados não no pensamento progressista, mas na tradição conservadora.
A noção de solidariedade que implica deveres depende de algo que Lilla também reconhece, que são os vínculos básicos que sustentam a cidadania. Essa noção de vínculos elementares é muito bem discutida pela historiadora norte-americana Gertrude Himmelfarb em seu estudo sobre os fundamentos do Iluminismo Britânico, que foram assentados nas noção de “virtudes sociais”, isto é, aqueles sentimentos e atitudes básicas que eram tidos em alta conta moral e que representavam as relações mais importantes entre as pessoas: a benevolência, a compaixão, empatia, dentre outras. Estes afetos sociais eram oriundos daquilo que os filósofos morais britânicos do século XVIII chamavam de sentimentos morais, um senso moral inato que apontaria na direção das atitudes sociais corretas, antes mesmo de seu conceito racional ser explicitado.
Em todos estes conceito e termos trazidos pelos filósofos morais iluministas britânicos, há uma indicação de que a sociedade se constrói sobre esta teia de vínculos afetivos e sociais básicos. Eles não eram produzidos por construções racionais fruto de decisão consciente nas assembleias ou nos gabinetes. A sociedade era, em verdade, viabilizada e estabilizada por se apoiar nestes vínculos fundamentais que estavam mais no plano dos afetos e dos hábitos longamente estabelecidos do que das razões.
A solidariedade apontada por Lilla poderia ir nesta mesma direção. Se isto fosse possível, em algum momento ela poderia tocar nesta noção no campo cultural e político conservador. Este encontro, este contato entre as duas vertentes políticas, possibilitado pelo conceito de solidariedade, talvez pudesse permitir a construção de uma ponte entre os dois campos políticos, permitindo-lhes olhar para além de seus muros e perceber as possíveis convergências entre seus interesses e objetivos políticos, naquilo que visaria o bem comum.
Mas, no pensamento de Lilla, está presente a forma de conceber a cidadania e o vínculo social que a sustenta como sendo uma construção social e consciente. “Ninguém nasce cidadão; os cidadãos são produzidos. (…) O máximo que se pode esperar é que os cidadãos sejam formados nos princípios do governo autônomo (…) Para motivarem ação, é preciso que estes princípios tenham raízes num sentimento que não trazemos do berço”, diz ele em seu livro. A filosofia moral britânica, desde o século XVIII, pensa o oposto, como apontamos acima. Os sentimentos morais são produzidos na longa história de cada povo; não são fruto de um projeto racional de sociedade nem de uma decisão de assembleia. Enquanto Lilla pensa que a evocação destes sentimentos seria algo parecido com um milagre, o empirismo britânico olha para o hábito, para o costume, para a tradição, e vê neles os agentes que foram produzindo lentamente estes sentimentos, dando-lhes consistência com o passar do tempo. Não é preciso milagre, é preciso tempo e uma sociedade que vá percebendo, valorizando e cultivando estes valores em suas relações sociais.
Prossegue Lilla: “Quando o vínculo de cidadania é mal forjado ou se consente que enfraqueça…”. Algumas linhas à frente, Lilla chega a admitir que o “sentimento de cidadania” é “obra de gerações”. É exatamente o que pensa a filosofia política de caráter mais cético e empirista. Sentimentos de cidadania, de solidariedade, não são produzidos socialmente por decisões políticas, são fruto de tempo e de fortalecimento de vínculos e afetos sociais. O campo político vai percebê-los e se apoiar neles, mas não vai produzi-los.
Eis aí o indicativo da grande dificuldade. Se esta posição de Lilla é surpreendentemente prudente e tendente a compreender o aspecto afetivo que sustenta a solidariedade e a cidadania, ela se fragiliza muito ao retornar à tradição do pensamento progressista, que remonta a figuras como Rousseau, que pensam que a decisão racional é capaz de produzir as atitudes e vínculos que sustentam um contrato social. Sentimentos, afetos e vínculos são produzidos nas relações concretas, dependem do tempo e são consagradas no hábito e no costume. O pensamento de Lilla, nesse aspecto, opera a partir daquilo que Michael Oakeshott chama de racionalismo em política, isto é, a ideia de que princípios racionais seriam capazes de se impor ao mundo concreto e criar a realidade política; que uma “ideia” de cidadania possa ser encarnada nas relações sociais, que um sentimento como o da solidariedade possa ser despertado, evocado, por ato racional, pela luz da razão. Oakeshott apontaria para o equívoco de tomar a cidadania e a solidariedade como ideologias e, como tal, serem levadas ao mundo concreto, quando o que se observa é o exato oposto: a prática social é o que consolida a solidariedade. O problema da cidadania reside em sua natureza racional, abstrata, portanto não originada nas relações concretas. Sendo assim, sempre será dependente de alguma força partidária ou estatal para estabelecer esta “igualdade” na sociedade, determinando este “status político”, que Lilla aponta, de cima para baixo, mas que, ao fim e ao cabo, é um produto racional, que, para ser efetivo, deveria estar enraizado na teia de vínculos sociais na base da sociedade política e como tal ser valorizado, evocado como realidade, como experiência concreta e acumulada na sociedade, e não ser o ponto de partida para construir a tal sociedade solidária.
De qualquer forma, a autocrítica produzida por Lilla é poderosa e iluminadora e, ainda que tendo cedido ao pensamento racionalista que constitui a sua vertente filosófica política, o fato de pensar a cidadania e junto com ela o sentimento de solidariedade como formas de se sustentar uma visão de coesão nacional já são grandes passos. Talvez uma ponte realmente possa surgir daí, mas o desafio de ultrapassar o racionalismo sempre estará diante de um grande pensador como Lilla.
Por fim, a decisão de fazer uma autocrítica por um pensador de esquerda norte-americano, que angariou mais inimigos à esquerda do que à direita, talvez explique a razão de a esquerda brasileira – militância, intelectualidade, partidos – ter praticamente ignorado a presença deste grande escritor e pensador aqui no Brasil.