Mentalizações e interações sociais comunicativas: representacionais?

"Uma das perguntas fundamentais da filosofia da linguagem é a de se o significado de frases que comunicamos socialmente e que vêm acompanhadas por mentalizações — processos mentais conscientes de primeira pessoa acerca de seus próprios estados mentais — são espécies de representações, e, se forem, que tipo de representações são. Seria tarefa do filósofo da linguagem descobrir evidências empíricas para os fenômenos semânticos? Ou será sua tarefa explicar o fenômeno do significado de palavras e frases, em princípio inescrutável por mera observação, inferindo de outros fenômenos, esses, sim, observáveis?" Leia o ensaio da Prof. Sofia Stein sobre Mentalizações e interações sociais comunicativas.

por Sofia Stein

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332. Chamamos muitas vezes de “pensar” ao acompanhamento de uma frase com um processo anímico, mas não chamamos de “pensamento” aquele acompanhamento. — Pronuncie uma frase e pense-a; pronuncie-a com compreensão! — E agora não a pronuncie e faça apenas aquilo com que você a acompanhou ao falar com compreensão! (Cante esta canção com expressão! E agora não a cante, mas repita a expressão! E mesmo aqui poderíamos repetir algo; por exemplo, o balançar do corpo, respiração mais lenta ou mais rápida etc.)

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Ludwig Wittgenstein, Investigações Filosóficas (1953)

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Wittgenstein em Swansea, 1947

Representações, tais como imagens ou pensamentos, são o resultado de interações corpóreas e são, portanto, corporificadas. Afora formar imagens resultantes de nossas interações com objetos externos, somos capazes de mentalizar processos corpóreos internos — internos ao nosso corpo ou ao corpo de outras pessoas. Durante estados representacionais, ocorrem ativações neuronais, que acompanham as experiências qualitativas fenomênicas privadas de nossas mentes conscientes, que podemos chamar de representações em sentido amplo. Uma das perguntas fundamentais da filosofia da linguagem é a de se o significado de frases que comunicamos socialmente e que vêm acompanhadas por mentalizações — processos mentais conscientes de primeira pessoa acerca de seus próprios estados mentais — são espécies de representações, e, se forem, que tipo de representações são.

Por um lado, temos os objetos da experiência, como as impressões, sensações e percepções, com seus conteúdos variados, que são mediados pelo aprendizado linguístico intersubjetivo, e, por outro lado, temos os objetos das teorias anatômicas e fisiológicas, tais como os tecidos epidérmicos, os nervos e os impulsos elétricos. A observação da ativação neuronal durante o processo de percepção de objetos físicos nos levou à conclusão de que a percepção passa por diferentes estágios e que, em sentido lato, objetos são realmente construídos gradualmente em nossos cérebros por meio de inter-relações estabelecidas entre suas várias partes, enquanto cada parte tem sua própria função. Parece que a procura pelo elo causal que nos leva de objetos a suas percepções tem de incluir a investigação sobre aquilo que é chamado de “representação”, um conceito ainda considerado controverso, tanto na filosofia quanto nas neurociências. É por essa razão que todo método e teste tem de levar em consideração o que a primeira pessoa tem a dizer sobre as suas experiências representacionais “subjetivas” (ou fenomenais: que aparecem à pessoa), que são privadas.

A comunidade científica está atualmente enfrentando um dilema: ou (1) aceitamos as descrições ordinárias feitas por seres humanos de suas próprias experiências subjetivas (a sua “fala sobre impressões”), e as correlacionamos com o que observamos cientificamente acerca das alterações físicas que se manifestam (como se fossem eventos paralelos, mas simultâneos), ou (2) tentamos investigar de um ponto de vista behaviorista o que ocorre fisicamente e em termos de comportamento durante o processo de percepção e comunicação, desconsiderando a descrição de primeira pessoa de estados mentais e vinculando teoricamente comportamento físico inicial com comportamento físico resultante. De qualquer forma, a relação causal exata entre experiências subjetivas e os comportamentos físicos inicial e final ainda é algo a ser descoberto.

É importante pensar acerca de eventos mentais para alcançar explicações da comunicação social. No entanto, devemos tomar cuidado com o “método” por meio do qual queremos coletar evidências empíricas para as investigações semânticas. Quando somos chamados, por exemplo, a efetuar introspecção para “constatarmos” certos “fenômenos mentais” que serviriam de base para a significação, se estamos supondo que isso seria uma evidência empírica, devemos tentar estabelecer a conexão causal entre a introspecção e o que queremos investigar: a linguagem comunicativa. Podemos também utilizar hipóteses, descrições de observações e experiências científicas e associar, eventualmente, aos relatos introspectivos.

Devemos escolher sempre um método para abordar os fenômenos semânticos envolvidos em nossas trocas comunicativas diárias, fundamentais para todas interações sociais. No entanto, para a escolha desse método, temos de já refletir acerca da natureza do objeto enfocado. Ou seja, aparentemente, pode ser necessária a compreensão prévia do que são os objetos da semântica — da teoria do significado —, como, por exemplo, em que consiste o significado de frases enunciadas, para escolhermos o método com o qual abordá-los. Giramos em círculos.

Seria tarefa do filósofo da linguagem descobrir evidências empíricas para os fenômenos semânticos? Ou será sua tarefa explicar o fenômeno do significado de palavras e frases, em princípio inescrutável por mera observação, inferindo de outros fenômenos, esses, sim, observáveis? Seguindo a segunda alternativa, estaríamos estabelecendo espécies de — utilizando a noção tão fecunda de Immanuel Kant (1724-1804) — “condições de possibilidade” do significado, da compreensão e da comunicação.

Immanuel Kant

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Levando em conta os progressos científicos das últimas décadas e o que sabemos da história das ciências — que nos mostra a capacidade impressionante de explicarmos cientificamente hoje fenômenos antes impensáveis —, não devemos desprezar conhecimentos científicos das novas neurociências ou da psicologia etc. ao procurarmos explicar aspectos semânticos da comunicação, como a veiculação, pelo falante, de informações por meio de frases e a compreensão dessas informações pelos interlocutores.

Nesse caso, novamente, surge a questão se o método permite, de fato, alcançar esclarecimento sobre o assunto, pressupondo, como afirmei, que sabemos vagamente o que queremos explicar. Dado que contatamos, por observação, que a significação é um fenômeno da comunicação intersubjetiva, não seria prudente somente focar na investigação de processos mentais ou em seus correlatos neurológicos. A descrição e explicação de comportamentos sociais e, especificamente linguísticos, deve contribuir em nossa ponderação.

Devido à sua noção muito limitada de “uso linguístico”, relacionada ao estabelecimento, por condicionamento, de correlações entre frases e estímulos, quando Willard Quine (1908-2000) explica o discurso do conhecimento cotidiano e da ciência em geral, ele tem, segundo Canfield, que pressupor uma correlação entre frases elementares e “estados dos receptores [nervosos] externos” e também uma correlação entre “estados do cérebro e os estados de ‘ter pensamentos’ ou ‘ter intenções’” (p. 138). Ao contrário, para o Wittgenstein tardio, o significado de uma frase não seria um estado interno, físico ou mental, do falante, mas sim uma ação: a enunciação de frases seguindo regras de uso em contextos permitidos que indicam aos outros falantes o que está ocorrendo, ocorrerá, desejamos que ocorra, intencionamos fazer etc. A compreensão da frase não pressuporia nem a referência direta a objetos externos nem a ocorrência de um estado de pensamento específico nas pessoas que compreendem a frase. No caso de afirmações que expressam — muitas vezes de forma implícita e contextual — intenções, podemos enunciar “O elevador está próximo” simultaneamente descrevendo um estado de coisas e informando que utilizaremos o elevador, sem, com isso, segundo Wittgenstein, estabelecer uma relação direta e inequívoca entre palavras e objetos e sem tampouco produzir na mente dos interlocutores um processo singular, reprodutível, de pensamento. Se nosso interlocutor conhece as regras de nossa linguagem — sua gramática em sentido amplo —, entenderá o que estamos dizendo e sugerindo.

Quine (Kyoto Prize, 1996)

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Tal qual Quine criticando o mito do museu dos empiristas clássicos, o mito de que para cada palavra haveria uma ideia correspondente, Wittgenstein critica a ideia de que palavras seriam etiquetas de objetos, contradizendo sua própria concepção anterior, exposta no Tractatus (1921). Wittgenstein não está apenas preocupado com os valores de verdade de frases — verdadeiro ou falso. O Wittgenstein tardio está interessado em mostrar como expressamos não só o que consideramos ser verdadeiro, mas como ordenamos, interrogamos, brincamos com as palavras, ironizamos etc. Wittgenstein conjetura acerca do “treinamento” pelo qual as pessoas passam para conseguirem comunicar intenções, desejos, medos etc. e seus conteúdos específicos. Tem de haver um acordo acerca do “uso” de frases em certos contextos, em certo jogo de linguagem, que faz parte de uma forma de vida determinada. Isso quer dizer que pessoas que fazem parte de uma forma de vida determinada, como músicos em uma orquestra, ou matemáticos na academia, ou enxadristas em campeonatos de xadrez, no contexto de seu jogo de linguagem, tenderão a expressar, por exemplo, o temor de errar, com exclamações e entonações que podem não ser compreendidas em outros contextos.

Wittgenstein, 1930

Muitas de nossas enunciações iniciam por “eu penso”, “eu acredito”, “eu desejo”, “eu intenciono”, “nós tememos”, “nós esperamos” etc., isto é, por expressões representativas das chamadas atitudes proposicionais: “eu penso que p”. O segundo Wittgenstein sustenta, como expõe Ian Hacking, que a forma como autodescrevemos nossos estados mentais, nossa vida mental, e, portanto, também como descrevemos o que mentalizamos quando enunciamos ou quando escutamos enunciações alheias, depende de, anteriormente, compartilharmos práticas, interagirmos com outras pessoas socialmente (2002, p. 215). O Wittgenstein tardio (Hacking, 2002, p. 121) seria hostil à ideia de tentar identificar no cérebro, como o fazem as neurociências ou a psicologia cognitiva hoje, funções ligadas aos processos semânticos de compreender conscientemente uma informação suscitada por uma enunciação, por exemplo, sobre as cores de um objeto presente. Ao contrário das neurociências atuais, Wittgenstein diria que não importam os locais do cérebro onde processamos o pensamento, nossas representações ligadas a estruturas gramaticais, tais como as representações que a descrição linguística de objetos coloridos suscita em nossa mente. O relevante para Wittgenstein seria dominarmos as regras de uso dos verbos “pensar”, “compreender”, “perceber”, “acreditar”, de forma a sabermos em quais contextos de nossa vida estamos autorizados a usá-los, e, dessa forma, porquanto nossos interlocutores também dominam essas regras, sermos bem-sucedidos nas expressões de frases nas quais eles aparecem. Por isso, somos capazes de asserir com sentido as frases “Eu compreendo o que você enunciou” ou “Também percebo este objeto como azul e acredito que ele seja azul”.

Precisamos, segundo Wilfrid Sellars (1912-1989) — um dos wittgensteinianos norte-americanos mais importantes do século XX —, de uma “teoria de eventos e processos mentais” para elaborar juízos sobre, por exemplo, pensamentos e impressões, tais como o pensamento “estou exultante por assistir este filme” — “Eu estou exultante por p”. O ponto de partida não são, obviamente, os dados dos sentidos, não são os conteúdos derivados de nosso contado sensorial com o mundo, como afirmava Bertrand Russell (1872-1970).

Bertrand Russell

Defender isso seria apoiar o que Sellars chama de “mito do dado”. Sellars sustenta um tipo de behaviorismo filosófico, no qual o comportamento, incluindo o comportamento verbal e suas regras, tem prioridade em relação a autopercepções internas e autoconhecimento. O discurso sobre pensamentos internos e impressões depende de uma teoria da mente socialmente compartilhada. Logo, conceitos determinam nossa forma de compreender processos internos e como referi-los. A ênfase sellarsiana na linguagem, na prioridade epistêmica do discurso em relação à percepção corpórea interna, leva-o a uma espécie de convencionalismo semântico. A forma com a qual descrevemos conceitualmente nossos estados mentais e o conteúdo desses estados define nossa compreensão tanto dos processos internos quanto daquilo que este interno representa: o mundo, os fatos, os objetos e suas propriedades.

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Wilfrid Sellars

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A visão ordinária do senso comum, como sustenta outro neowittgensteiniano, John McDowell, deveria evitar a tentação de falar de atos mentais semânticos — como atos intencionais que expressam conteúdos significativos: “Intenciono escrever um livro”, “Eu intenciono p”— de forma a hipostasiá-los, transformando-os em objetos, que, então, poderiam ser classificados ou como concretos ou como abstratos e poderiam, em princípio, ser conhecidos também por terceiros, incluindo cientistas. Uma crença no “ser azul” de algo azul, portanto, não seria uma imagem do azul (Lormand, 2006), não seria uma representação precisa na mente humana, nem tampouco uma representação enquanto rede neural localizável no cérebro humano.

John McDowell

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Essa diferença entre um estado mental determinado e aquilo do qual ele trata, a sua referência, o seu objeto ou o seu conteúdo, pode ser estabelecida por exemplos. Um estado de depressão prolongado devido a uma perda não faz com que atribuamos a propriedade da depressão — ou seja, o estado mental interno ao sujeito, que tem como seu conteúdo a perda de algo — ao próprio objeto perdido (Lormand, 2006, p. 350). Em contraste com as impressões fenomenais que se apresentam em forma de imagens e detêm a característica da transparência — ver o prato sobre a mesa consistiria na mesma experiência de lembrar do prato sobre a mesa, sem mediação de outras imagens, seria, pois, uma percepção direta —, existem estados mentais conscientes, tais como os estados mentais de desejar algo ou pensar algo, que são não-fenomenais. As nossas atitudes proposicionais, tal qual “Eu desejo que p”, devem estar acompanhadas de pensamentos “ou sintomas” para serem conscientes. Porém, esses pensamentos não seriam representáveis por “percepções internas” (experiências introspectivas), pois não seriam estados fenomenais genuínos — é isto que quer nos indicar Wittgenstein na epígrafe acima. Já as percepções de dor compartilhariam da transparência dos estados fenomenais genuínos, ou seja, nós sentimos a dor como localizada em uma parte de nosso corpo, não como uma mera “experiência de dor” sem relação com um objeto representado. Estados mentais não-fenomenais podem acompanhar estados fenomenais, tal como um estado de “pensar” acompanha a representação de um objeto azul ou o estado de “desejo” acompanha a representação de um prato de comida. Mas não seriam, eles próprios, representações. A análise de Lormand corrobora, mesmo que parcialmente, a visão pragmática de Wittgenstein neste ponto.

A investigação semântica acerca de significados de frases poderia, creio, assumir a posição intermediária entre o representacionalismo e o antirrepresentacionalismo. Não temos mais que negar, como o fez Ludwig Wittgenstein (1889-1951) no período pragmático de sua filosofia da linguagem, que a análise de processos mentais —relacionados a processos cerebrais de uma forma ainda bastante desconhecida — contribua para a explicação da comunicação, já que, de fato, temos evidências das relações causais entre cérebro, mente e eventos linguísticos. Não seria aconselhável pontuar o limite da investigação no comportamento social, como o desejavam os behavioristas filosóficos, entre os quais costumam perfilar o Wittgenstein tardio. Portanto, seguindo sugestões metodológicas do próprio Wittgenstein, poderíamos efetuar a descrição e explicação de várias dimensões de nossa comunicação social, mentais e pragmáticas, e não as contrapor.

Da perspectiva científica de terceira pessoa, não há ainda consenso sobre se devemos ou não dividir as representações em pensamentos proposicionais e imagens.  E tampouco há concordância sobre até que ponto é realmente possível identificar de forma precisa uma representação, seja por introspecção, seja por fotografias da ativação do encéfalo humano durante atividades de percepção, compreensão ou comunicação. Talvez a identificabilidade precisa de representações proposicionais, suscitadas por enunciações comunicativas, seja uma outra ilusão útil pragmaticamente, como sugerido por Wittgenstein.

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Ludwig Wittgenstein , schoolteacher, c. 1922 Permission, courtesy of the Joan Ripley Private Collection; Michael Nedo and the Wittgenstein Archive, Cambridge; and the Bodleian Library, Oxford.

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Referências bibliográficas:

McDowell, John. Intentionality and Interiority in Wittgenstein. In: Puhl, Klaus (ed.) Meaning Scepticism. Berlin; New York: Walter de Gruyter, 1991. p. 148-169.

Canfield, John V. (1996). The passage into language: Wittgenstein versus Quine. In: Arrington, Robert L. & Glock, Hans-Johann.  (Eds.). Wittgenstein and Quine. London/New York: Routledge, 1996. p. 118-143.

Hacking, Ian. Wittgenstein as philosophical psychologist. In: Hacking, Ian. Historical Ontology. Cambridge/London: Harvard University Press, 2002.

Lormand, Eric. Phenomenal Impressions. In: Gendler, Tamar S., & Hawthorne, John (Eds.), Perceptual Experience. Oxford: Claredon Press, 2006. p. 316-353.

Quine, Willard Van Orman. Palavra e Objeto (1960). Tradução de Sofia Stein e Desidério Murcho. Petrópolis: Vozes, 2010.

Quine, Willard V. O. Pursuit of Truth. Cambridge/London: Harvard University Press, 1990.

Wittgenstein, Ludwig. Investigações Filosóficas (1953). Tradução José Carlos Bruni. 2ª ed. São Paulo: Abril Cultural, 1979. (Os Pensadores).

Wittgenstein, Ludwig. Tractatus Logico-Philosophicus (1921). Tradução Luiz Henrique Lopes dos Santos. São Paulo: EDUSP, 1993.

Russell, Bertrand. The Analysis of Mind. London: George Allen & Unwin Ltd.; New York: The Macmillan Company, 1921.

Sellars, Wilfrid. Empirismo e Filosofia da Mente (1956). Com uma introdução de Richard Rorty e um guia de estudos de Robert Brandom. Tradução de Sofia Inês Albornoz Stein. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008.

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