Metafísica

Por Desidério Murcho, um ensaio sobre a metafísica, palavra de acidente histórico — sobre aquilo que é e como é.

por Desidério Murcho

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Demócrito e Heráclito, Richard Gaywood, ca. 1630–1680

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A metafísica tem por objeto de estudo vários problemas filosóficos sobre a realidade. Isto contrasta com a epistemologia, que tem por objeto de estudo vários problemas filosóficos sobre o conhecimento da realidade, ou a tentativa de conhecê-la. Assim, ao passo que em metafísica se faz perguntas filosóficas sobre o que é e como é, em epistemologia faz-se perguntas filosóficas sobre como se sabe ou se tenta saber.

Na física, assim como noutras ciências da natureza, investiga-se vários aspetos da realidade, alguns muito gerais e outros bastante específicos; e o mesmo acontece na metafísica. Por isso, o que distingue uma da outra não é o grau de generalidade — ainda que alguns problemas da metafísica sejam bastante mais gerais do que qualquer problema da física. O que as distingue é que nesta última só se aborda aqueles aspetos da realidade suscetíveis de estudar apropriadamente usando métodos empíricos ou matemáticos; o resto é excluído. E é aqui que entra a metafísica: nesta área, aborda-se precisamente aqueles aspetos da realidade que não são apropriadamente estudados usando esses métodos. Caso se queira investigar a natureza do Big Bang, a melhor maneira de o fazer é usar os métodos da física: observação, experimentação e raciocínio matemático. Seria inadequado usar os métodos da metafísica porque estes não são empíricos nem matemáticos; são conceptuais. Porém, com os métodos da física não se investiga adequadamente os problemas da metafísica.

As fronteiras entre a física e a metafísica não são rígidas; pelo contrário, são porosas e, além disso, vão mudando à medida que se descobre novos métodos de investigação. Vários problemas que numa época pertenciam à metafísica, porque não se sabia como investigá-los com os métodos da física, passaram mais tarde para esta área de estudos porque se descobriu maneiras empíricas e matemáticas de fazê-lo. Isto aconteceu em grande parte porque as próprias fronteiras entre o conceptual e o empírico estão longe de ser rígidas. O caso de Leucipo e Demócrito que, na Antiguidade grega, defenderam que toda a realidade era constituída exclusivamente por átomos e vazio, ilustra este aspeto. Como acontece com vários filósofos daquele tempo, os seus escritos originais perderam-se; tudo o que resta são vários fragmentos e comentários de outros autores. Quanto a Leucipo, duvidou-se até que tenha realmente existido, mas foi supostamente professor de Demócrito. Eis como Aristóteles (citado por Simplício, Comentário a De Caelo de Aristóteles 295.1–22) descreve as ideias deste último:

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Demócrito acredita que a natureza das coisas eternas é constituída por pequenas substâncias em número infinito. O lugar delas pensa ele por hipótese que é outra coisa, infinita em dimensão, e a que chama “o vazio” […] Ele defende que as substâncias são tão pequenas que escapam aos sentidos. Têm todo o tipo de formas e configurações e diferenças de dimensão. É destes elementos que se gera as formas visíveis e os corpos percetíveis.

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Essas “pequenas substâncias”, como lhes chama Aristóteles, são os famosos átomos: unidades ínfimas, indivisíveis e sem partes (que não correspondem, pois, ao que hoje se chama “átomo” em física). Esta hipótese era filosófica e não científica, no sentido moderno do termo (os termos “ciência” e “física”, no sentido moderno, são muito recentes), porque era defendida conceptualmente. Era-o porque eles não tinham maneira, naquele tempo, de testá-la empiricamente; nem tinham como desenvolver consequências matemáticas dessa hipótese que pudessem ser testadas empiricamente. Porém, não era também uma ideia religiosa, porque não era defendida recorrendo a um suposto contacto com uma divindade ou fazendo apelo a um texto tido como sagrado, mas antes raciocinando conceptualmente. Eis como Aristóteles (Da Geração e Corrupção, 1.2 316a13–b16) explica o raciocínio de Demócrito:

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Demócrito parece ter sido persuadido por argumentos que são apropriados à ciência da natureza. O ponto principal tornar-se-á claro à medida que prosseguirmos. Pois há uma dificuldade em supor que há um corpo, uma magnitude, sempre divisível e que isto é possível. Pois o que haverá que escapa à divisão? […] Assim, dado que tal corpo é sempre divisível, que seja dividido. O que sobrará, então? Uma magnitude? Mas isso não pode ser. Pois haverá algo que não foi dividido, ao passo que a suposição era que a divisão era sempre possível. Mas se não resta corpo ou magnitude e, contudo, a divisão continua, ou [o corpo original] consiste de pontos e as suas componentes não terão magnitude, ou não será coisa alguma, caso em que o todo não seria senão aparência. Do mesmo modo, se for composto de pontos, não será uma quantidade. Pois quando contactam e formam uma só magnitude coincidente, não fazem o todo maior. Pois quando é dividido em dois ou mais, o todo não é menor nem maior do que antes. E por isso, mesmo que todos os pontos se juntem, não formam qualquer magnitude. […] Estes problemas resultam de supor que qualquer corpo, de qualquer dimensão, é sempre divisível. […] E assim, dado que as magnitudes não podem ser compostas de contactos nem de pontos, é necessário que existam corpos e magnitudes indivisíveis.

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O jovem Rembrandt como Demócrito, c. 1628–29

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Leucipo e Demócrito tentaram então imaginar como um número finito de átomos indivisíveis de diferentes tipos se combinariam de maneiras diferentes para dar origem à imensa diversidade de coisas que constituem a realidade. Quando se considera a atual tabela periódica dos elementos, vê-se que estes primeiros filósofos não andavam longe da verdade, ainda que estes elementos sejam divisíveis — mas acaba-se por chegar aos seis tipos de quarks, que hoje se pensa serem os verdadeiros átomos, no sentido etimológico, que constituem toda a realidade.

O que interessa aqui, contudo, é este aspeto metodológico: aqueles filósofos não tinham como testar empírica nem matematicamente a hipótese atomista. Tudo o que estava ao seu alcance era raciocinar conceptualmente; e é isto a especulação metafísica. Um dos seus resultados felizes, se as coisas correrem bem, é precisamente o desenvolvimento de métodos empíricos e matemáticos para tentar descobrir quais dessas especulações são verdadeiras. Mais tarde, os telescópios e os microscópios, além de muitos instrumentos de medida rigorosa (coisa que faltava aos gregos da Antiguidade, que não conheciam sequer os relógios mecânicos), permitiram testar essas e outras especulações. É então que as hipóteses originalmente metafísicas, que eram apenas conceptuais, se tornam científicas.

Claro que isto levanta uma pergunta óbvia: haverá problemas acerca da realidade que nunca se investigará adequadamente recorrendo aos métodos científicos? Talvez sim, talvez não. Não é preciso responder a esta pergunta para ter uma compreensão preliminar razoável do que é a metafísica. O importante é ver que, pelo menos hoje em dia, há vários problemas desses; se daqui a dois mil anos transitaram todos, ou não, para a ciência, é atualmente irrelevante.

As fronteiras entre a metafísica e a ciência não são rígidas também devido a uma segunda razão: porque muitas especulações metafísicas incluem aspetos científicos. Alguns filósofos defendem que se a água for realmente H2O, como se estabeleceu em química, não poderá ser outra coisa. A tarefa filosófica aqui é extrair consequências metafísicas de resultados científicos, ou pelo menos propor especulações metafísicas que aparentemente se harmonizam melhor com os resultados científicos, ou que explicitam o seu significado.

A palavra “metafísica” não era usada pelos primeiros filósofos que dedicaram algumas das suas reflexões a esta área de estudos: Parménides, Heraclito, os atomistas, Platão e Aristóteles, entre outros, discutiram vários problemas hoje reconhecidos como metafísicos, mas sem usar essa palavra; muitos davam às suas obras o título genérico “Sobre a Natureza” (e a palavra grega para “natureza” é ?????, que é a raiz de “física”). A palavra “metafísica” foi um acidente histórico, ocorrido aquando da edição das obras de Aristóteles por Andrónico de Rodes. Era necessário organizá-las tematicamente, e decidir onde pôr uma obra em catorze livros, com reflexões sobre aspetos fundacionais da realidade, do conhecimento, da lógica e da linguagem. A essa obra foi dada uma designação grega que significa “depois da Física” (?? ???? ?? ??????), e é dessa designação que resulta a nossa palavra “metafísica”. A ideia, pois, era que a Metafísica de Aristóteles era aquela obra que se seguia à sua Física, tendo com esta algumas conexões evidentes. Assim, o significado original da palavra revela parcialmente o que é a metafísica: aquela área de estudos na qual se estuda problemas sobre a realidade que estão além da física, entendendo-se este termo no sentido grego antigo de “estudo da natureza”. Porém, o significado original da palavra é também enganador, pois faz pensar que a metafísica trata de imaginados domínios espirituais que estão para lá da realidade física, o que é falso.

O prefixo “meta” desempenha em “metafísica” um papel muito diferente do mesmo prefixo tal como ocorre, mais literalmente, em “metalinguagem”. Neste caso, trata-se de uma linguagem acerca de outra linguagem (ou da mesma). É o que acontece numa gramática da língua inglesa escrita em português: a língua portuguesa é a metalinguagem, e tem por objeto a língua inglesa. Porém, a metafísica não é uma física da física; o prefixo de “metafísica” não desempenha, pois, um papel literal, como em “metalinguagem”. Além disso, o prefixo não desempenha também em “metafísica” o papel que desempenha em “metaética”. Neste caso, trata-se de uma teoria sobre os fundamentos da ética. Mas a metafísica não é uma teoria sobre os fundamentos da física, no sentido moderno do termo.

Uma ideia menos inequivocamente falsa, porque contém um grão de verdade, associa a metafísica à formulação de hipóteses exóticas acerca da natureza última da realidade: Parménides defendia que tudo era um só Ser, esférico, imóvel e imutável; Tales de Mileto afirmava que tudo era água; e, já no século XX, J. M. E. McTaggart sustentava que só existem pessoas, no sentido espiritual e hegeliano do termo. Apesar destes exemplos, a ideia é enganadora, porque também a ciência produz afirmações exóticas acerca da realidade: que uma sólida mesa imóvel é, na sua maior parte, vazio, no qual forças invisíveis sustêm invisíveis eletrões em estonteante movimento incessante. Sempre que se começa a investigar mais de perto seja o que for, descobre-se que é mais intricado e exótico do que parece à primeira vista. Assim, a distinção entre a mera aparência e a realidade não é, em si, uma especificidade da metafísica, mas antes de qualquer estudo aprofundado seja do que for. O que realmente conta é haver ou não boas provas a favor de tão exóticas afirmações.

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McTaggart

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E é aqui que a metafísica, por mais exótica que seja, se aproxima da ciência, afastando-se do misticismo: nos dois primeiros casos, mas não no último, há provas cuidadosamente desenvolvidas e abertas à crítica, ao invés de se declarar apenas dogmaticamente que as coisas são assim ou assado. Compare-se, a título ilustrativo, as ideias de Parménides com as primeiras linhas do livro bíblico do Génesis. Ambas são igualmente exóticas, mas no primeiro caso partem de provas, coisa que manifestamente não acontece no segundo. Dá-se até o caso de Parménides escrever como se a sua mensagem fosse ditada por uma deusa; mas era uma deusa maravilhosamente filosófica, que se dá ao trabalho de raciocinar cuidadosamente para tentar provar as suas ideias. Em contraste, no Génesis nenhuns raciocínios significativos pretendem provar as ideias aí apresentadas sobre a origem da Terra; o texto não oferece provas apropriadas, além da sua suposta origem divina, para pensar que as coisas aconteceram daquela maneira.

Uma área importante da metafísica é a ontologia. Porém, esta não é uma meditação mística sobre o Ser, que é por vezes uma maneira de falar de Deus, de divinizar a existência ou de falar religiosamente de atitudes humanas algo pretensiosas e tolas perante a vida e a morte. A palavra “ontologia” resulta de acrescentar o sufixo “-logia” (que neste contexto significa “estudo de”) ao termo grego “?????”, cuja base, “??”, significa “ser”. Assim, etimologicamente, a palavra “ontologia” quer dizer apenas “estudo do ser”. Isto traduz muitíssimo bem a maneira como Aristóteles caracteriza o objeto de estudo do seu livro mais tarde intitulado Metafísica:

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Há uma ciência que tem uma compreensão teórica do ser enquanto ser e dos coincidentes que lhe pertencem intrinsecamente. Mas isto não é o mesmo que qualquer uma das denominadas ciências especiais, pois nenhuma investiga o ser enquanto ser de maneira universal. Ao invés, cada qual separa uma parte do ser e tem uma compreensão teórica do que é um coincidente intrínseco dessa parte — como fazem, por exemplo, as ciências matemáticas. Mas dado que investigamos agora os pontos de partida e as causas mais elevadas, é claro que têm de ser os pontos de partida e as causas de alguma natureza tal como é intrinsecamente. Assim, para que quem investiga os elementos dos seres investigue estes mesmos pontos de partida, é necessário que também sejam elementos do ser enquanto ser e não apenas coincidentemente. É por isso que é do ser enquanto ser que também nós temos de compreender as primeiras causas. (Aristóteles, Metafísica IV.1: 1003a)

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Aristóteles por Johann Jakob Dorner, o Velho, 1813

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A ideia de Aristóteles é que cada ciência particular estuda os seres enquanto, por exemplo, entidades biológicas, ou entidades físicas, encontrando-se na sua Metafísica um estudo mais geral das entidades, dando atenção exclusivamente ao simples facto de existirem. Assim, o termo latino capta muito bem este estudo, tal como Aristóteles o delimitou. A confusão é que atualmente se usa a palavra “metafísica” para falar deste estudo, e não “ontologia”; e dá-se a esta última palavra outro significado.

Em ontologia, os filósofos dedicam-se atualmente a duas tarefas, sobretudo.

A primeira é estabelecer uma teoria das categorias fundamentais da realidade. Para compreender o que é uma teoria das categorias, considere-se a mencionada tabela periódica dos elementos. Uma teoria das categorias é algo como esta tabela, mas visando abranger todos os tipos ou categorias de entidades. A tabela periódica é excelente, mas todos os elementos pertencem à mesma categoria ontológica: são elementos químicos. Numa teoria das categorias, ao invés, trata-se de incluir ou não universais como a brancura no cardápio das entidades fundamentais, ou particulares abstratos como o número três; e trata-se de determinar se as ficções e as sonatas são entidades que dependem de nós para existir, ou não, e que tipo de existência têm os buracos e as sombras. Uma teoria das categorias visa especificar os tipos fundamentais de entidades que constituem toda a realidade. Esta é uma tarefa muitíssimo ambiciosa, e por isso não é frequente que seja levada a cabo. Mas está relacionada com outra, mais modesta, que visa esclarecer apenas algumas das categorias mais fundamentais. Para ver um exemplo, considere-se as seguintes afirmações:

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(1) Fídias é grego

(2) José Maria é Eça de Queirós.

(3) A água é H2O.

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Em todas ocorre o verbo “ser”, que desempenha, porém, um papel lógico e ontológico muitíssimo diferente em cada uma. A frase (1) atribui ao nome próprio “Fídias” o predicado “ser grego”. O nome próprio refere um particular, e o predicado exprime uma propriedade, atributo ou característica. Estas duas categorias — particular e propriedade — são muitíssimo diferentes. Os particulares têm propriedades, e as propriedades também as têm, porque há propriedades de propriedades — a brancura tem a propriedade de ser uma cor. Porém, nenhuma entidade tem particulares como propriedade, e isso distingue-os das propriedades. Contudo, serão as propriedades categorias fundamentais? E o que são elas, afinal? E que dizer dos particulares? Fídias é só uma coleção apropriadamente organizada de partes? Os nomes próprios são usados para referir particulares — porém, é fácil dar nome seja ao que for, pelo que o simples facto de ter um nome, ou de não o ter, não significa que se esteja perante um particular, nem que não se esteja. O mesmo acontece com as propriedades: forma-se predicados quase sem restrição, mas não é de esperar que a realidade seja assim tão solícita que se apresse a acomodar-se às libertinagens linguísticas dos seres humanos. Não parece razoável considerar que a propriedade de não ter propriedades é genuína, só porque o predicado “sem propriedades” é tão banal quanto “sem arestas”.

A frase (2), “José Maria é Eça de Queirós”, não atribui um predicado a um nome próprio, até porque não tem qualquer predicado, mas antes dois nomes próprios. Enquanto na (1) o verbo “ser” é predicativo, aqui é identitativo; mas a identidade é apenas uma propriedade relacional: uma relação, como ser mãe de alguém. A relação de maternidade existe entre dois organismos, e a relação de identidade entre quaisquer particulares — mas as asserções afirmativas de identidade só são verdadeiras quando se trata de dois designadores do mesmo particular, como na frase (2). Surpreendentemente para uma relação tão simples, a identidade levanta perplexidades metafísicas de monta. Uma delas é compreender a identidade dos particulares ao longo do tempo, dado que ganham e perdem várias propriedades e partes.

A frase (3), “A água é H2O”, introduz uma terceira categoria: a constituição. A água não tem a propriedade de ser H2O no mesmo sentido em que Fídias tem a propriedade de ser grego, porque a água é constituída por dois átomos de hidrogénio e um de oxigénio, adequadamente combinados numa molécula. A água é constituída por aqueles átomos, tal como um copo é feito de vidro. Porém, destrói-se facilmente um copo, deixando-o cair ao chão, sem destruir o vidro que o constitui. Por isso, a constituição, mesmo que se especifique todas as partes, não é o mesmo do que a identidade; só a constituição em conjunção com o modo como as partes se organizam se aproxima da identidade.

A segunda tarefa da ontologia é especificar e discutir os compromissos ontológicos de uma dada teoria ou, como por vezes se diz, a sua ontologia: as categorias de entidades que essa teoria pressupõe. A matemática está ontologicamente comprometida com os números; mas que género de entidade exatamente é um número? Nestas discussões, apela-se por vezes ao princípio da parcimónia ou navalha de Ockham, o princípio metodológico segundo o qual é de evitar multiplicar entidades desnecessariamente. A ideia é a seguinte: imagine-se duas teorias que explicam a mesma coisa adequadamente; a primeira contudo, tem uma ontologia mais rica, ou seja, compromete-se com mais categorias de entidades. A ideia do princípio é que isso é uma boa razão para preferir a segunda teoria à primeira. Apesar de aparentemente sensato, é preciso ter em conta quatro aspetos quanto a este princípio.

O primeiro começa por ser meramente histórico, e por isso de pouca importância filosófica — mas depois ganha algum peso. O próprio Guilherme de Ockham não escreveu, tanto quanto se sabe, a afirmação que lhe é atribuída (entia non sunt multiplicanda praeter necessitatem: as entidades não são de multiplicar sem necessidade); limitou-se a apontar, em vários casos, que as teorias dos seus contemporâneos pressupunham mais entidades do que as necessárias para explicar o que queriam. Ora, considerar que, em vários casos particulares, não há boas razões para aceitar uma teoria ontologicamente mais exuberante, é compatível com a rejeição da ideia de que é sempre de preferir uma teoria ontologicamente mais económica. De modo que talvez a própria formulação do princípio denuncie alguma simplificação grosseira.

O segundo aspeto é que o princípio, entendido da maneira mais plausível, é meramente epistemológico e não verdadeiramente ontológico. Para ver o que isto quer dizer, considere-se o seguinte caso:

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Uma pessoa repara que numa casa da sua rua vive um jovem muito educado e cortês. Ao mesmo tempo, dá-se conta de que ele parece ter o hábito singular de usar roupas diferentes no mesmo dia. Quando o vê pela manhã indo para o emprego, ele veste fato e gravata; mas quando o vê regressando do emprego, ao final da tarde, vem de ténis e calças de ganga. A pessoa pensa então que ele muda de roupa no emprego, antes de regressar a casa, por qualquer razão desconhecida. Claro, há também uma hipótese menos parcimoniosa: ele vive com um irmão gémeo. Dada a navalha de Ockham, todavia, a pessoa aceita a primeira hipótese, em detrimento da segunda.

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O que este caso mostra é a irrelevância ontológica do princípio. Talvez seja verdadeiro que só há um vizinho e não dois gémeos; mas, se o for, isso não se deve a qualquer parcimónia, mas apenas porque a mãe dele não concebeu duas crianças ao mesmo tempo, mas apenas uma. E, claro, se acaso ele tiver mesmo um irmão gémeo, é a segunda hipótese, menos parcimoniosa, que é verdadeira e não a primeira. Consequentemente, o princípio da parcimónia, se for adequado, indica apenas quais são as entidades que é apropriado crer que existem e não quais são as entidades que existem; ou seja, não é um princípio ontológico mas antes epistemológico (ou apenas metodológico).

O terceiro aspeto é que o princípio, seja entendido como apenas epistemológico seja como genuinamente ontológico, será simplista se não distinguir entre compromissos com mais entidades e compromissos com mais categorias de entidades. Imagine-se uma teoria que rejeita a existência de universais, como a brancura. À partida, parece mais parcimoniosa do que outra que admita a sua existência, pois parece admitir menos entidades. Contudo, quando se vê os pormenores da primeira teoria, descobre-se que nela se sustenta que cada particular branco tem a sua própria brancura, de modo que quando se está perante três particulares brancos, trata-se de seis entidades ao todo. Agora a teoria dos universais parece mais parcimoniosa, pois afirma que quando se está perante três particulares brancos, trata-se apenas de quatro entidades: os três particulares e o universal da brancura. A diferença entre as duas é que a primeira compromete-se com mais entidades, mas pertencem todas à mesma categoria ontológica (nenhuma daquelas seis entidades é um universal), comprometendo-se a segunda com menos entidades, mas uma delas pertence a uma categoria bastante diferente (é um universal). A crítica é que, em casos como este, um entendimento simplista da navalha de Ockham nos deixa hirsutos, não ajudando a decidir qual das teorias é mais razoável aceitar. Para que a navalha faça o seu trabalho metodológico de higiene capilar, urge especificar que se pretende evitar multiplicar categorias de entidades, e não apenas entidades.

Finalmente, o quarto aspeto é que não é óbvio que o ónus da prova em matérias ontológicas esteja sempre do lado de quem admite categorias de entidades. Parece tão inadequado, ao fazer teorias, incluir entidades de uma categoria que não há boas razões para aceitar, como é inadequado excluí-las também sem boas razões; o que é inadequado, quanto aos compromissos ontológicos, é não ter boas razões, sendo algo irrelevante se são razões para incluir entidades de uma dada categoria ou antes para excluí-las:

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Postular sem razão que há entidades de um dado tipo é objetável. Postular sem razão que não há entidades de um dado tipo também é objetável; postular seja o que for sem razão é objetável. (Timothy Williamson, “Necessary Existents”, in Logic, Thought and Language, ed. Anthony O’Hear. Cambridge: Cambridge University Press, 2002, p. 249)

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Por vezes, sobretudo em ciência, entende-se o princípio da parcimónia meramente como a ideia de que, perante duas teorias com o mesmo poder explicativo, a mais simples é preferível. Neste caso, não se entende o princípio como um critério de parcimónia ontológica, mas antes de simplicidade teórica. Este entendimento do princípio levanta dificuldades adicionais porque há teorias que, precisamente para não se comprometerem com entidades de categorias consideradas duvidosas, são muito menos simples do que as alternativas que as admitem. Assim, uma teoria preferível do ponto de vista da simplicidade não será preferível do ponto de vista da parcimónia ontológica, e vice-versa.

Uma maneira de tornar o princípio da parcimónia razoável é começar por considerar que se trata de um princípio meramente epistemológico e restringir a sua aplicação do seguinte modo: imagine-se duas teorias, T e U, com o mesmo poder explicativo e ambas igualmente simples. Porém, T inclui ou pressupõe entidades de mais categorias que U, entidades essas que não há razões independentes para aceitar. Nestas circunstâncias, não há boas razões para acreditar que as entidades dessas categorias existem, precisamente porque se consegue explicar tudo adequadamente sem elas. Esta formulação é razoável, pelo menos inicialmente, mas é importante sublinhar que, entendido deste modo, o princípio não permite concluir validamente que não existem as entidades que não se tem boas razões para aceitar; o princípio determina apenas o que é razoável aceitar, e não o que existe. E seria muitíssimo surpreendente que a realidade fosse assim tão solícita que se acomodasse aos modos humanos de teorizar.

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Manuscrito da Summa Logicae de Ockham, 1341

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