Milenarismo, apocalíptico e milenarismo demótico. Entrevista com Richard Landes

Por Rodrigo Coppe Caldeira e Adelaide de Faria Pimenta

O prof. Dr. Richard Allen Landes nasceu em 26 de junho de 1949, em Neuilly-sur-seine, Ile-de-France, França, de nacionalidade norte-americana. Aos 73 anos, é historiador e autor profícuo, com mestrado e doutorado em História e Filosofia, e especialista no pensamento milenar medieval. Lecionou na Boston University, no departamento de História, e foi diretor do Center for Millennial Studies, da Universidade de Boston, até 2015, quando iniciou seus trabalhos na Bar-Ilan University, em Israel, sendo Membro Sênior do The Center for Internacional Communication. Atualmente, mora em Jerusalém. 

Dr. Landes desenvolveu o conceito de religiosidade demótica, que inclui:  1) a igualdade perante a lei; 2) a dignidade do trabalho manual, 3) acesso aos textos sagrados para todos os crentes, e 4) integridade moral acima da honra social.

Dentre seus interesses, está a defesa da política de Israel em relação ao que ele considera uma manipulação da mídia pelos palestinos. Realizou uma série de documentários em 2005 com o título “De acordo com fontes palestinas…”, nos quais documentou o que denominou Pallywood (a prática de encenação de imagens), e o impacto dessas falsificações transmitidas como “notícias” pela mídia ocidental.

É o editor da Encyclopedia of Millennialism and Millennial Movements (2000), e autor de vários artigos e livros, como: Heaven on Earth: the varieties of the millennial experience (LANDES, 2011); o pré-lançamento Can “The Whole World” Be Wrong?: Lethal Journalism, Antisemitism, and Global Jihad (Antisemitism in America) (LANDES 2022), e o ainda no prelo, While God Tarried: Disappointed Millennialism from Jesus to the Peace of God, 33-1033 (LANDES). Planeja em seguida “trabalhar em seu comentário sobre a Bíblia demótica, uma análise das maneiras que o texto bíblico promove a religiosidade demótica e o modo como uma secularização dessa religiosidade contribuiu para o surgimento do mundo moderno.” (ISGAP, 2022, tradução nossa).

Dr. Landes gentilmente respondeu por e-mail às questões seguintes, a respeito do tema milenarista.

Confunde-se milenialismo e milenarismo. Pode-se considerar o milenialismo uma das possíveis correntes dentro do milenarismo judaico-cristão?  

Eu uso milenialismo e milenarismo/quiliasmo como intercambiáveis, referindo-me ao advento da salvação coletiva, um período messiânico de “céu na terra” com todas as perigosas implicações políticas do aperfeiçoar a vida na terra (como oposição à escatologia, onde o continuum espaço-tempo desaparece). O termo milenialismo ou milenarismo deriva da crença cristã de que esse período irá durar 1000 anos (Apocalipse 20). 

A confusão que eu tento fazer é entre apocalíptico e milenar. Eu uso apocalíptico para me referir tanto a um senso de iminência de transformação (seja para um céu na terra milenar como para um céu e inferno cósmicos escatológicos), quanto ao cenário pelo qual se vai daqui para lá. O título grego do último livro do Novo Testamento – Revelação –, é Apocalipse. Embora os cenários apocalípticos e as crenças sobre qual forma de salvação coletiva irá ocorrer, possam existir por um longo período (por exemplo: o milênio sabático, o qual, quando introduzido em cerca de 200 d.C., teve um período de 300 anos, até 6000 Annus Mundi, que é igual a 500 d.C.), quando um novo texto profético aparece, os contemporâneos o tomam como um sinal da iminência. Se você tivesse dito aos primeiros discípulos do Jesus crucificado e ressuscitado que 2.000 anos depois ele ainda não teria retornado, não acho que haveria o cristianismo.  

Em seu livro Heaven on Earth: the varieties of the millennial experience (LANDES, 2011) o senhor trata a Revolução Francesa como um momento inaugural do milenarismo democrático. Como ele se caracterizaria? Encontramos traços dele ainda hoje?

Eu não discuti muito isso no livro, mas, na verdade, eu penso que a Revolução Americana também foi uma expressão democrática, ou, como eu a denomino, um milenarismo demótico. Caracteriza-se por: 1) noções de igualdade de todos os crentes (todos os grupos que se opuseram à escravidão desde o início eram milenaristas – Quakers, Shakers, (Ana)Batistas, Metodistas); 2) a dignidade do trabalho manual; 3) visões políticas antimonárquicas (nenhum rei senão Deus, ou no caso da Revolução Americana, nenhum rei senão Jesus); 4) todo indivíduo é um agente moral autônomo; 5) um iconoclasmo que transgride todos os limites convencionais. 

De algum modo, o Iluminismo é uma secularização dessa religiosidade demótica (por exemplo: Kant, uma secularização do Quietismo[1] de seus pais).  Isso continua a ser um impulso extremamente poderoso, especialmente no Oeste. No mínimo, ela se tornou mais pronunciada a cada rearticulação subsequente da visão milenar (Marx a levou da igualdade perante a lei para a oportunidade à igualdade de resultado) e a cada episódio apocalíptico (bolcheviques, 1917; maoístas, 1949; Khmer Vermelho, 1975). Penso que o final dos anos 60 foi uma onda apocalíptica de milenarismo demótico.

Hoje os rastros estão por toda parte, desde o milenarismo apocalíptico cataclísmico ativo da jihad global (os Mujahideen são os agentes de Alá para destruir o mal e preparar o caminho para a redenção coletiva no califado global), até a crítica radical da TCR (Teoria Crítica da Raça) que empurra (novamente) para a igualdade de resultados, e transgride todos os limites. Não acho que seja possível entender a política louca de hoje (transgênero, BLM [Black Lives Matter], pró-palestinos) sem reconhecer o impulso perfeccionista por trás disso: o mundo é insuportavelmente mal e apenas minha visão radical e transformadora pode salvar a todos nós.

Em termos da aliança vermelho-verde (esquerda radical e jihadis), ela se reúne em um cenário apocalíptico conjunto que considera Israel e os USA o anticristo, ou como Khomeini e seus seguidores colocam, os dois satanases. Como disse Eric Hoffer (1951), um dos mais brilhantes analistas do milenarismo: “Movimentos de massa podem surgir e se espalhar sem a crença em um Deus, mas nunca sem a crença em um demônio”. (HOFFER, 1951, p. 65, tradução nossa[2]). A esquerda anti-imperialista está tão cega por sua raiva (apocalíptica) contra o imperialismo dos EUA (e seus lacaios sionistas) que abraçam grupos como o Hezbollah e o Hamas como “membros da esquerda progressista global” (Judith Butler[3]), embora sejam talvez os imperialistas mais cruéis e aterrorizantes do planeta (uma boa definição do “anti-imperialismo dos tolos”).

Gostaria que comentasse a respeito de sua visão sobre “quando Deus tarda”, como as pessoas reagem quando a profecia falha.

A resposta clássica daqueles ansiosos para ver e participar da transformação apocalíptica, para a inevitável decepção (pelo menos até agora, nada fazendo), é um estado de dissonância cognitiva aguda (eles não podem acreditar na evidência de fracasso). Então, na primeira etapa, eles se envolvem no jazz apocalíptico, onde improvisam o cenário para sustentar o tempo apocalíptico, e quando isso falha (muito tempo passa), eles renovam a data, enquanto mantêm as esperanças milenares. Assim, quando 1848 fracassou, e Marx teve que fugir da Alemanha – a qual ele tinha certeza que estava prestes a se transformar –, ele escreveu Das Kapital, no qual o cenário apocalíptico do Manifesto Comunista foi mantido, mas o processo de realização foi adiado. Quando ficou claro que a transformação não estaria acontecendo nas sociedades capitalistas avançadas (Inglaterra, EUA, França), seus seguidores, como Lenin, decidiram que a Rússia poderia pular a fase capitalista e passar de agrária a comunista. Qualquer coisa para tornar possível o trabalho do céu na terra. 

Meu argumento geral é que, embora Deus tenha demorado por quase 3.000 anos (para os judeus), 2.000 (para os cristãos) e 1.450 (para os muçulmanos), as repetidas ondas de expectativa e milenarismo ativo (especialmente perceptível no Ocidente após 1.000 d.C.), transformaram, ao longo do tempo, as sociedades nas quais elas ocorreram. Nesse sentido, as democracias ocidentais modernas, com seus compromissos igualitários, são as consequências não intencionais do milenarismo fracassado – longe de ser perfeito, mas significativamente superior ao que ocorreu antes. Um camponês medieval testemunhando o mundo de proezas tecnológicas, produtividade econômica e igualdade política nos dias de hoje, o consideraria o paraíso na terra – sem fome, pouca dor, nenhuma classe aristocrática com o direito de condenar os plebeus à morte. Mas para nossos guerreiros da justiça social, as imperfeições de um tal sistema são insuportáveis.

Em sintonia com sua percepção de que o agir humano substitui Deus, vemos uma profunda conexão entre o milenarismo judaico-cristão e o movimento secular transumanista, que intenciona criar um mundo paradisíaco onde não haverá sofrimento ou morte. Como entende essa relação?   

Absolutamente. Quanto mais secular o milenarismo, mais ativo. Sem Deus para fazer parte do (ou todo) trabalho, a responsabilidade recai sobre a humanidade. O Transumanismo incorpora todas as loucuras da imaginação milenar: a ideia, por exemplo, de que a libertação do sofrimento é uma meta ideal incorporada na estranha frase “bem-estar”, como se isso não fosse uma condição relativa. Como fome ou saciedade. A ideia de que um corpo de silício que não envelhece ou sofre é preferível a um que sente dor e alegria. A ideia de que criaremos uma nova raça de humanos tecnologicamente “melhorados” (deixando para trás a grande maioria dos humanos que não podem pagar por essa tecnologia), um apocalipse nerd que leva a uma distopia monstruosa.

Por outro lado, as consequências não intencionais do apocalipse da IA [inteligência artificial] que não acontecerem são todos os tipos de desenvolvimentos úteis.

É possível afirmar que o imaginário apocalíptico faz parte do horizonte político contemporâneo. Como se manifestaria?

Veja acima nas respostas e na TCR.

Encontramos traços da violência milenarista em vários momentos históricos. Podemos encontrá-la contemporaneamente? Como?

Bem, é claro como um sino, no apocalíptico jihadista. Menos claro, mas presente, nos tumultos quase casuais do BLM [Black Lives Matter] e antifascismo, e na crescente violência da extrema direita. O apocalíptico jihadista é medieval; a TCR (Teoria Crítica da Raça) e o BLM são pós-modernos e, portanto, o caminho para a violência é menos direto. Mas a linguagem absolutista, a crescente frustração e raiva, a adoção da cultura do cancelamento, o bode expiatório quase instintivo, são todos sinais preocupantes. O apocalíptico é como um redemoinho, suga o verdadeiro crente.

A ideia de um paraíso na terra ainda faz sentido ou podemos compreendê-la como uma ideia utópica do passado?

É uma esperança que nunca morre. Basta ouvir os jovens dizendo “mas o comunismo não foi realmente tentado” para perceber que as lições da história nunca obliterarão a ultrajante esperança da utopia. O ópio é viciante.

Você irá publicar em 22 de novembro de 2022 o livro Can “The Whole World” Be Wrong, em tradução livre: Pode “o mundo inteiro” estar errado? (LANDES, 2022). O que entende como jornalismo letal e como ele se relaciona com o contexto global religioso?

jornalismo letal é quando você relata a propaganda de guerra de um lado (em uma guerra estrangeira) como notícia.

O jornalismo de gol contra é quando você relata a propaganda de guerra do seu inimigo como notícia para o seu lado.

Em 2000, com a eclosão da “intifada”[4] (na verdade, a Jihad de Oslo, o primeiro ataque da jihad global às democracias ocidentais), a legacy press[5] ocidental relatou reivindicações palestinas como notícias (incluindo o libelo de sangue Al-Durrah, das Forças de Defesa de Israel, visando o assassinato de um menino nos braços de seu pai[6]), e enquadrando a história como combatentes da liberdade resistindo ao imperialismo ocidental, em vez de jihadistas imperiais atacando uma democracia. Este foi um grande impulso para os jihadistas globais como Bin Laden, que explorou o “ícone do ódio” Al-Durrah para um recrutamento entre os muçulmanos e fazer com que o Ocidente apoiasse a (pelo menos a versão palestina da) Jihad.

Em 2002, quando os jornalistas letais relataram um massacre do tipo nazista em Jenin [na Cisjornânia], os progressistas ocidentais usaram cintos suicidas simulados e aplaudiram as pessoas que odiavam e tinham como alvo o Ocidente… jornalismo de guerra de gol contra.

A hostilidade não reconhecida do Ocidente aos judeus, alimentada por essa onda de notícias falsas, tem sido o ponto fraco pelo qual a Jihad conseguiu invadir. A reação ao 11 de setembro cimentou uma mentalidade que chamo de Y2KMind [Year 2000Mind ou Mente do Ano 2000] (porque se cristalizou naquele ano) em que, quando os jihadistas atacam uma democracia, você culpa a democracia. Não é necessariamente uma mentalidade apocalíptica (embora tenha tendências), mas é um grande benefício para as ambições apocalípticas jihadistas.

*

Rodrigo Coppe Caldeira é Historiador e Professor do Programa de Pós-graduação em Ciências da Religião da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. É líder do Laboratório de Estudos em Religião, Modernidade e Tradição (LeRMOT) da PUC Minas. (As opiniões do autor são de cunho pessoal e não refletem necessariamente a posição oficial da instituição). (Twitter: @rodrigocoppe)

Adelaide de Faria Pimenta é psicóloga e analista junguiana, mestra em Ciências da Religião pela PUC Minas com a dissertação Gnosticismo e modernidade no pensamento de Eric Voegelin (1901-1985), 2018 (bolsa CAPES). Desenvolve atualmente pesquisa de doutorado no mesmo programa sob o título Imortalidade digital e o tecno-paraíso na terra: milenarismo judaico-cristão e o Transumanismo (bolsa CAPES), ambos sob orientação do Prof. Dr. Rodrigo Coppe Caldeira. E-mail: adepimenta@gmail.com

REFERÊNCIAS

HOFFER, Eric. The true believer: thoughts on the nature of mass movements. New York: Harper e Row, 1951.

ISGAP. Richard Landes. The Institute for The Study of Global Antisemitism and Policy, 2022. Disponível em: https://isgap.org/fellow/professor-richard-landes/. Acesso em: 09 nov. 2022.

LANDES, Richard. Can “The Whole World” Be Wrong?: lethal journalism, antisemitism, and global jihad (Antisemitism in America). Brookline: Academic Studies Press, 2022. (Lançamento em 22 de novembro de 2022).

LANDES, Richard. Encyclopedia of Millennialism and Millennial Movements. New York: Routledge, 2000.

LANDES, Richard. Heaven on Earth: the varieties of the millennial experience. Oxford: Oxford University Press, 2011.

RADICALARCHIVES. Judith Butler on Hamas, Hezbollah & the Israel Lobby (2006). March, 28, 2010. Disponível em: https://radicalarchives.org/2010/03/28/jbutler-on-hamas-hezbollah-israel-lobby/. Acesso em: 09 nov. 2022.


NOTAS

[1] Do latim quiesquietus, inativo, em repouso. Nome dado ao conjunto de crenças cristãs entre o final de 1670 e 1680, que se tornou popular na França, Itália e Espanha, tendo como mentor o espanhol Miguel de Molinos e seus escritos, condenados como heresia pelo Papa Inocêncio XI, uma vez que seria considerado um desvio da fé: ao permanecer quieto, e passivamente esperar que Deus opere no indivíduo, retira-se sua responsabilidade moral diante da busca da transformação, e enfatiza-se uma fé individual, alijada da Igreja.

[2] Mass movements can rise and spread without belief in a God, but never without belief in a devil. 

[3] “Yes, understanding Hamas, Hezbollah as social movements that are progressive, that are on the Left, that are part of a global Left, is extremely important.”. Em livre tradução: “Sim, entender o Hamas, o Hezbollah como movimentos sociais que são progressistas, que são de esquerda, que são parte de uma esquerda global, é extremamente importante.” (BUTLER, 2006, tradução nossa). Resposta à plateia proferida em aula na University of California, Berkeley, EUA, a respeito da guerra entre Israel e Hezbollah. 

[4] A agitação popular palestina contra as forças de ocupação de Israel na faixa de Gaza e Cisjordânia.

[5] Legacy press = a velha imprensa – como o rádio, a televisão, as revistas, os jornais –, anterior às mídias eletrônicas, on-line.

[6] No segundo dia da Segunda Intifada na Faixa de Gaza, o menino de 12 anos, Muhammad Al-Durrah, foi morto a tiros nos braços de seu pai, em 30 de setembro de 2000, tornando-se, segundo Landes, um ícone do ódio palestino. 

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