por Telma Birchal
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Simone de Beauvoir observou a ambiguidade ou contradição presentes nas ideias de Michel de Montaigne (1533-1592) sobre as mulheres. Em O Segundo Sexo ela reconhece que Michel de Montaigne foi um dos raros filósofos que “entendeu bem a arbitrariedade e injustiça do quinhão destinado às mulheres […]” e não teremos, depois dele, tão cedo na História da Filosofia um outro que tão certeiramente descreva tal injustiça. Beauvoir cita uma marcante passagem dos Ensaios (publicados em sucessivas edições de 1580 a 1595) que funda seu juízo:
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“As mulheres não estão totalmente erradas quando rejeitam as regras de vida que são introduzidas no mundo, pois foram os homens que as fizeram, sem elas.”
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No entanto, continua, “ele não foi longe o suficiente para lutar pela causa das mulheres”. E Beauvoir está certa. Penso, no entanto, que aquelas e aqueles que advogam a causa feminista têm boas razões de ler o ensaísta francês. Vejamos.
Os Ensaios combinam de maneira bastante instigante uma crítica muito original das regras que definem os papeis femininos e masculinos, sobretudo em relação à questão dos códigos de conduta sexual, com uma espécie de conservadorismo em relação aos lugares sociais a serem ocupados pelos dois sexos, conservadorismo este baseado muitas vezes numa naturalização das (in)capacidades femininas.
Montaigne observa, lapidarmente, que as leis foram feitas pelos homens, sem as mulheres e, por isso mesmo, em detrimento delas. Ao contrário do que ensinou Aristóteles, e ao contrário do que continuaram ensinando os colonizadores europeus, as leis dos senhores não contemplam os interesses dos escravos. Mesmo séculos depois do diagnóstico de Montaigne, as mulheres não foram chamadas por Locke, ou por Rousseau, para assinar o Contrato Social; grandes Repúblicas modernas foram fundadas sem nem imaginar a cidadania de metade da humanidade. Então, digamos, o ensaísta está neste ponto um tanto à frente de seu tempo e de tempos vindouros.
Ele observa, ainda, que a recusa das leis pelas mulheres, em geral, se dá pelo fingimento ou pelo engano. Montaigne que, em outros contextos, considera a mentira como o pior dos vícios, concede às mulheres esta exceção: elas estariam certas, por exemplo, em fingir que são puras e castas, ocultando suas transgressões, pois as leis que regulam o comportamento sexual feminino são tanto irracionais quanto injustas. Como Caetano Veloso em “Dom de Iludir”, ele leva a sério a ideia de que estratégias diferentes de ação cabem a pessoas que ocupam lugares diferentes de poder. Canta o poeta baiano: “Não me venha falar da malícia de toda mulher… Como podes querer que a mulher vá viver sem mentir?”. O exemplo “exótico” registrado nos Ensaios pode ser lido na mesma chave: “As mulheres citas vazavam os olhos de todos os seus escravos e prisioneiros de guerra, para poderem servir-se deles mais livremente e em segredo”. O prazer das antigas mulheres citas deve permanecer invisível, de modo a permitir que seus maridos guardem não só suas boas reputações, como também suas falsas ideias sobre o desejo feminino.
Penso que, embora significativa e reveladora, a permissão de mentir ou enganar concedida às mulheres não é, ao final, uma vantagem: apenas mostra que boa parte da vida feminina foi e é ainda condenada ao segredo. Marguerite Yourcenar, primeira mulher a entrar para a Academia Francesa, em 1980, expressa algo parecido, ao justificar a escrita de seu monumental romance Memórias de Adriano (1951):
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“Impossibilitada também de tomar como personagem central uma figura feminina, de dar, por exemplo, como eixo à minha narrativa Plotina em lugar de Adriano. A vida das mulheres é demasiado limitada ou demasiado secreta. Basta que uma mulher narre sua história e a primeira censura que lhe será feita é a de deixar de ser mulher. Já é bastante difícil colocar qualquer verdade na boca de um homem”.
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Estou ainda hoje reagindo a essas frases, que li pela primeira vez quando o livro de Yourcenar foi publicado no Brasil, em 1980. Uma maneira de entender que uma mulher “deixa de ser mulher” ao narrar sua história é porque, ao falar, ela recusa o lugar tradicional onde fora colocada: o do silêncio, da escuta, da leitura; enfim, o da passividade. Também a mudança nas leis — do sufrágio feminino, assegurado no Brasil em 1934, à descriminalização do aborto, ainda um tabu entre nós — faz com que uma certa imagem de mulher vá desaparecendo, o que não agrada a muitos, pois perturba sobremaneira a ordem estabelecida.
A propósito da ordem estabelecida, Montaigne é bem conhecido por seu “conservadorismo”: não é favorável a revoluções, sejam elas políticas, sejam nos costumes, o que se deve em parte entender no contexto da guerra civil sangrenta que opôs católicos e protestantes na França do sec. XVI. Ele assume o lema dos céticos antigos — “cada qual siga as leis de seu país” —, porque não há garantias de que mudanças radicais serão para melhor, pelo contrário. Do mesmo modo, o ilustre francês também não defende nenhuma revolução nas leis ou regras que regem as relações entre os sexos ou nas normas que regem a família (lembrando que o que está em foco é sempre a classe nobre). Ele apenas defende que tais regras não sejam levadas tão a sério, em nome de um princípio de inteligência ou de humanidade — como dito, as mulheres estão justificadas em transgredi-las ou em contorná-las e a sociedade pode fingir que não está vendo isso. Aqui, portanto, está uma das ambiguidades de Montaigne quanto às mulheres: ele revela a ineficácia e injustiça das normas criadas pelos homens e, ao mesmo tempo, defende a permanência delas.
A meu ver, a fina análise dos equívocos masculinos já é motivo suficiente para nenhuma feminista abandonar os Ensaios. No capítulo Sobre Versos de Virgílio, ele insiste na ideia de que as regras sobre a castidade feminina impostas pelos homens são absurdas, pois se opõem à natureza: “[…] tratamo-las sem consideração nisso: depois de termos reconhecido que são, sem comparação, mais capazes e ardentes do que nós nos feitos do amor […], fomos aquinhoá-las particularmente com a continência, e sob as penas derradeiras e extremas”. São, também, contraditórias: “Não sabemos circunscrever-lhes com precisão as ações que lhes proibimos. Temos que conceber nossa lei sob palavras gerais e incertas”. Ele reconhece, por fim, que o que se pretende, finalmente, é anular as mulheres: “É preciso que elas [as mulheres] se tornem insensíveis e invisíveis para satisfazer-nos”. O veredito sobre o gênero masculino não é, portanto, nada elogioso: “É loucura tentar refrear nas mulheres um desejo que lhes é tão lancinante e tão natural”. O fruto de tudo isso, segundo nosso autor, é a constituição de uma moralidade focada na regulação da sexualidade e que deixa os verdadeiros vícios à solta. Nesta discussão das regras e leis, portanto, o momento mais significativo está na crítica dirigida aos homens, mais do que em na visão que Montaigne tem das mulheres: o que não é surpreendente num autor cujo projeto é de autoconhecimento.
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Quanto ao que ele diz sobre as mulheres, seria interessante distinguir duas perspectivas: uma, a do olhar que se estende para longe, para as mulheres de culturas distantes no tempo ou no espaço, e outra, a do olhar atento ao que está perto, às mulheres francesas e europeias de sua época e sociedade. Aqui também uma ambiguidade tem lugar. Antes de tudo é importante lembrar que, segundo Montaigne, o costume é um tirano que faz dos seres humanos o que quer, ele molda o corpo e a alma, de maneira que a diversidade de crenças e formas de vida define a humanidade. Não há, propriamente falando, uma “essência” ou natureza humana, além daquela de ser conformada pelos costumes. Encontramos, assim, passagens diversas dos Ensaios que afirmam que o que uma mulher pode ser ou fazer é simplesmente uma questão de costume e de hábito: “Há povos onde se veem bordeis públicos de homens, e mesmo casamentos; em que as mulheres vão para a guerra, junto com seus maridos, e tomam parte não só no combate mas também no comando”. Também o valor das mulheres varia enormemente segundo os povos, pois há lugares em que “a condição das mulheres é tão mal valorizada que matam as meninas que nascem e compram dos vizinhos mulheres para o necessário”.
Enfim, quando Montaigne volta seu olhar para longe, as mulheres são entendidas como seres de cultura e, portanto, antes de estarem destinadas a vestir cor de rosa ou à obediência, elas podem andar nuas, como entre os indígenas descritos em Dos canibais, ou vestir uma armadura e ir à guerra, como entre as Amazonas que também, sem nenhuma obrigação de serem recatadas, assumem um papel ativo quando se trata de sexo.
No entanto, o reconhecimento das múltiplas possibilidades abertas às mulheres se altera significativamente desde que Montaigne passa a considerar suas contemporâneas e vizinhas na França. Para elas há bem menos caminhos abertos e, surpreendentemente, a justificativa para tal posição recorre fortemente à ideia de natureza — e não à de costume, como seria de se esperar. Um exemplo que não deixa dúvidas será encontrado em Da afeição dos pais pelos filhos, quando ele, discutindo as relações familiares, afirma “não saber bem por que” mulheres não são aptas a comandar, seja na política, seja em casa. Sua ignorância, no entanto, é apenas retórica, pois logo a seguir são apresentadas as possíveis razões para as incapacidades femininas. Devido a processos que hoje chamamos de fisiológicos, mulheres não têm o equilíbrio psicológico ou clareza de julgamento suficientes para o comando: “Pois o apetite desregrado e o paladar doentio que elas têm na época da gravidez, têm-no na alma a todo tempo”. Sendo assim, mulheres tendem a apegar-se aos “mais fracos e mal feitos”, protegendo-os em detrimento de seus filhos saudáveis, contrariamente ao que seria racional e segundo o mérito. Em outros lugares, Montaigne afirma que o sexo feminino não tem firmeza de alma suficiente para estabelecer laços de uma verdadeira amizade e que não entende os argumentos filosóficos, apenas os repete da boca para fora; que mulheres deveriam ficar satisfeitas em seu lugar de musas inspiradoras ao invés de ocuparem-se em escrever. Se, de todo modo, elas insistirem na ideia, que se limitem à poesia, que é bela como elas. Para terminar, sem ser exaustiva: mulheres francesas não devem imitar as Amazonas, ocupando o lugar ativo na conquista amorosa. Isso cai bem lá longe, não na França.
Não pretendo justificar a incoerência manifesta entre as perspectivas sobre a mulher apresentadas por Montaigne; sugiro apenas que se atente para a contribuição original do ensaísta ao tema, a qual ainda não foi suficientemente explorada. Quanto à naturalização das (in)capacidades das mulheres, ela não apresenta nenhuma novidade em relação ao que pensaram outros filósofos, de resto inteligentes, e penso não exigir uma explicação sofisticada. Afinal, a liberdade das Amazonas não afeta em nada a vida e o conforto de um nobre francês; já se as francesas resolvem trocar a roca de fiar pela pena ou pela carreira no judiciário, nesse caso, a vida dele vai mudar.
A filósofa Marie de Gournay — que se considerava filha adotiva de Montaigne e que se ocupou da publicação dos Ensaios depois da morte do autor — cuidadosamente criticou seu pai intelectual por não ter ido até o fim em suas ideias:
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“Parece-lhe, diz ele [Montaigne], e, no entanto, ele não sabe o porquê, que raramente encontramos mulheres dignas de comandar os homens. […] Embora ele pudesse justificar sua restrição pela pobre e degenerada educação desse sexo”.
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Este trecho é da obra intitulada Da igualdade dos homens e das mulheres, publicada em 1622. Se Montaigne escreve não saber por que mulheres não são aptas ao comando, Gournay não tem dúvida: é apenas por uma questão de educação.
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