por Augusto de Carvalho
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A humanidade em sua época geológica, o Antropoceno, converteu-se em patógeno entre os agentes naturais. O gênero humano, ao trabalhar tecnicamente em benefício do domínio do mundo natural, arquitetou e realizou uma estrutura de consumo e instrumentalização de seus recursos — um conhecido processo insustentável de dimensão global, em vias de se exaurir. Da perspectiva filosófica, está em jogo uma das ideologias fundamentais do Ocidente, o naturalismo, doutrina que advoga o aprimoramento da Natureza pela Cultura; o que se tornou mais que um hábito, uma obsessão.
É difícil reconhecer que a ciência moderna, origem de boa parte de nossa felicidade, de forma oculta, estimulou-se pelas promessas do naturalismo. Metaforicamente, e a despeito de seus muitos sucessos, no Antropoceno, a ciência exibe um rosto demoníaco, dirá Martin Heidegger, fisionomia que salienta seu caráter dissimulado.
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Os Deuses vendem quando dão.
Compra-se a glória com desgraça.
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Esses versos de Fernando Pessoa podem expressar a adversidade do progresso científico, que nos fez projetar por séculos nosso revés numa sinistra encruzilhada: entre as glórias da técnica, e a desgraça da humanidade.
O problema identificado pelo Antropoceno parece repousar no ponto médio entre a Natureza e a Cultura, na técnica; isto é, no uso técnico da Natureza transformada em Cultura. Se a técnica e sua capacidade de governar o mundo natural são o núcleo do problema da relação entre Cultura e Natureza, de um ângulo não-ocidental, Yuk Hui propõe uma alternativa à téchn? [?????], princípio conceitual da técnica naturalista. Na obra acerca do que ele nomeou cosmotécnica — o ponto de vista que concentra na tecnologia toda identidade humana e não-humana —, Hui sugere que a díade Dao [?] e Qi [?], que traduz de modo sintético a cosmologia ou a ontologia do taoísmo e do confucionismo chinês, apresenta uma variação do par Natureza e Cultura útil para repensar os efeitos danosos da interferência humana no meio ambiente. A tradicional distinção filosófica entre númeno e fenômeno, entre a coisa em si e sua aparência, é a mais adequada para traduzir, respectivamente, Dao e Qi. Seria, igualmente, apropriado traduzi-los como referências ao que é natural e ao que é cultural. De acordo com Hui, diferentemente da téchn?, o jìshù [??] ou simplesmente ji [?], a habilidade poética e criativa de mediar o par Dao e Qi, não pretenderia nenhum aprimoramento dessas duas dimensões da existência. Ji não carregaria o desejo ou o impulso de perfectibilidade intrínseco ao naturalismo. Ao contrário, ji só aspira a harmonia entre as reconhecidas partes, almeja apenas o equilíbrio entre Dao e Qi, entre Natureza e Cultura, e não o domínio de uma sobre a outra. Gelassenheit, a serenidade proposta por Heidegger.
Acusados pela sentença do Antropoceno, é fascinante imaginarmos um mundo regido somente pela jìshù, sereno e avesso ao lado arrogante da Cultura. Mas antes de elevar eticamente ji em detrimento da téchn?, através de um exercício de contraposição antropológica, a obra de Hui expõe um dilema teórico localizado entre dois conceitos que ressaltam uma mesma ideia: Ji e téchn? são mediadores universais da agência humana sobre a alma do mundo, que se revelam em toda atividade intelectual ou prática de quem carrega alguma ferramenta. Hui, então, põe em xeque o naturalismo como ideologia, não o gesto tecnicamente poético da interferência humana, a Cultura. Afinal, constatar os limites do progresso científico e da dominação técnica nunca tornou a tecnologia um mal em si. Nenhum artifício humano, na verdade, é, por essência, harmônico ou dominador. Não há, enfim, como se furtar dos efeitos da intenção de domínio ou de equilíbrio da tecnologia, uma vez que a humanidade existe entre as causas da Natureza e da Cultura, seja ela ocidental ou não.
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