por Rogério P. Severo
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Os debates públicos no Brasil costumam ser tão pobres e os interlocutores tão mal informados que apenas de vez em quando as acusações mútuas de estultícia e má fé com que via de regra terminam deixam de ser adequadas — para todas as partes. Confirma isso a frequência com que são entoadas conclamações à razoabilidade e à boa vontade. Ocorre, no entanto, que essas exortações não são motivadas apenas pelo que corretamente identificam — a visível e preocupante falta de razoabilidade e honestidade de boa parte desses debates —, mas também pela ideia ingênua de que se os interlocutores fossem todos honestos e racionais, chegariam às mesmas conclusões.
Essa é uma crença razoavelmente bem distribuída entre intelectuais e há mesmo quem faça dela uma espécie de profissão de fé. — Se ao menos fôssemos todos racionais e esclarecidos! Se ao menos fôssemos mais científicos! — Trata-se de uma marca da nossa herança iluminista. Isaiah Berlin ousou mesmo afirmar (em Raízes do romantismo, cap. 2) que toda a tradição racionalista do ocidente ancora-se nestas três proposições: (i) se uma questão não tem como ser racionalmente respondida, então não é uma questão, (ii) todas as respostas podem ser conhecidas e ensinadas e (iii) devem ser compatíveis umas com as outras. Manifestações desse pensamento não são difíceis de encontrar em clássicos do iluminismo, como a Crítica da razão pura, de Kant, por exemplo. Podem ser igualmente encontradas em autores contemporâneos como Wittgenstein (“Só pode existir dúvida onde exista uma pergunta; uma pergunta, só onde exista uma resposta; e esta, só onde algo possa ser dito” — Tractatus 6.51) ou no projeto de uma ciência unificada perseguido por Carnap e seus amigos do Círculo de Viena (“Não há enigmas insolúveis”, escreveram, no seu Manifesto) e em diversos outros, de Hilbert a Quine, de Bentham a Rawls.
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Antropófagos que somos, nós brasileiros ingerimos essa carne iluminista, incorporando-a de vez em quando. Apenas de vez em quando, no entanto, pois no carnaval nacional ninguém brinca duas vezes no mesmo rio. A fluidez é nossa marca, se é que se pode falar em “marca”, tão inconstante parece a nossa alma selvagem. Ainda assim, aquela esperança iluminista se faz ouvir entre nós, tímida mas corajosamente, na voz da advogada e professora Gabriela Prioli (“que tal parar de pensar com o fígado?”), na do já exacerbado ex-ministro Mandetta (“precisamos seguir as recomendações técnicas”), e com certeza na de muitos outros, menos televisionados.
Não se trata aqui de louvar o pensamento hepático nem de desprezar os técnicos, embora algo nesse sentido obviamente também mereça ser dito. Em vez disso, sejamos modernos! Vivamos no limite de nosso tempo, os dois pés plantados no presente. Reconheçamos, então, a complexidade do mundo e a fraqueza de nossas simplificações. A tão sonhada unificação das ciências não aconteceu, nem há indícios convincentes de que esteja a caminho. A psicologia não foi reduzida à biologia, a biologia não foi reduzida à física, a física não se reduziu a uma só, nem foi a antropologia reduzida a pó. O que temos hoje nas ciências é o que sempre tivemos: uma pluralidade de métodos, princípios, modelos, linguagens e ontologias, nem sempre compatíveis, nem sempre intertraduzíveis. O acelerado progresso das ciências a que assistimos década após década ampliou vertiginosamente o escopo e a sofisticação das suas disciplinas, mas a fagocitação mútua não aconteceu. Barreiras teóricas inesperadas e difíceis de transpor renovaram-se década após década. Hoje a crença na unificação das ciência é mais esperança metafísica do que realidade empírica. Alimenta-se da ideia (também ela metafísica, posto que nenhuma ciência a afirma) de que a realidade é uma só e que, portanto, todas as verdades devem ser compatíveis. Trata-se de um sentimento elevado à condição de norma, e não de um fato constatado. Podemos supor que assim é, se quisermos, mas a rigor não o sabemos.
Esse, no entanto, não é o único entrave ao nosso esperançoso iluminismo. No domínio da lógica discursiva e da retórica, sabemos (graças a Marcelo Dascal e outros) que nem toda divergência ou polêmica tem a estrutura de uma discussão que visa à verdade. Boa parte das polêmicas públicas contemporâneas tem a estrutura de controvérsias, em que os interlocutores não partilham das mesmas premissas, ou disputas, em que a meta não é sequer a persuasão, mas o silenciamento do interlocutor (que nesses casos é visto como adversário ou inimigo). Apenas muito raramente dialogamos tendo como meta a verdade. Acontecimentos desse tipo são a um só tempo exigentes e frágeis demais para se materializarem em ambientes públicos heterogêneos e complexos, como são os nossos.
A dificultar o nosso iluminismo temos também essa mesma complexidade e heterogeneidade, de ideias e valores, sentimentos e expectativas. A complexidade é um traço inegável das sociedades contemporâneas. O conjunto de axiomas, regras e valores compartilhados por todos é pequeno e fragmentário demais para servir de guia ou baliza para a solução de problemas públicos. Esse é um fato já há muito apontado pelo economista conservador Thomas Sowell, em seu Conflito de visões, mas igualmente apontado pelo psicólogo semi-progressista Jonathan Haidt, em A mente moralista, e pelo linguista de esquerda George Lakoff, em Moral politics. Não obstante seus posicionamentos políticos amplamente divergentes, os três dizem o mesmo no que diz respeito à natureza de nossas discussões públicas contemporâneas: em geral o que está em questão não é o que diretamente se tematiza.
Temos concepções implícitas muito diferentes sobre a natureza humana e os processos sociais, nos lembra Sowell. Alguns acreditam que seres humanos são essencialmente bons, e que as mazelas que vivemos devem-se à perversidade de nossas instituições. Outros são céticos quanto ao potencial humano e acreditam que as instituições são perversas justamente porque foram por nós mesmos criadas. O resultado disso são expectativas antagônicas com relação aos benefícios de qualquer tipo de engenharia social. Discussões técnicas das políticas sociais são desde o início como jogos de cartas marcadas, pouco importando a sutileza ou correção dos argumentos.
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Além disso, nos lembra Haidt, cada um de nós tem disposições psicológicas únicas, que nos inclinam naturalmente a valores e tipos de vidas específicos. Nosso intelecto via de regra não busca soluções, mas justificações para aquilo em que já cremos. Desse modo, o peso que damos a valores distintos (justiça ou liberdade, lealdade ou equidade, autoridade ou sacralidade) depende menos de argumentos do que de predisposições psicológicas geralmente inconscientes.
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Por fim, nos lembra Lakoff, as metáforas e narrativas que automaticamente adotamos para formular e moldar as nossas opiniões e análises determinam o desfecho de nossas discussões mais seguidamente que os argumentos em que efetivamente nos concentramos. Esses alinhamentos inconscientes e não diretamente tematizados nos levam automaticamente a lados opostos de discussões, pouco importando os argumentos. Não fazemos isso por falta de ciência ou excesso de fígado, embora essa falta e esse excesso possam agravar o impasse.
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Sim, a injustiça é abominável, sim, a miséria é inaceitável, sim, a nossa educação é pavorosa, sim, a corrupção e a violência correm soltas, sim, precisamos de mais ciência e menos fígado. Mas cada um desses e quaisquer outros tópicos de polêmica nacional ou internacional podem ser enquadrados sob visões, valores, narrativas e metáforas distintas e incompatíveis. São em torno destes últimos, e não de razões, que as opiniões se aglutinam. E é por isso que pessoas que de outro modo nos parecem perfeitamente razoáveis e ponderadas podem chegar a conclusões que nos parecem absurdas por meio de raciocínios impecáveis.
A intensidade e a frequência desse tipo de interação comunicativa alçou esse problema ao centro de nossas atenções. Não há quem não o experimente hoje em dia. Não é algo que possa ser resolvido apenas com instrução e boa vontade. Trata-se de uma questão de reconhecimento, não de raciocínio. Mais precisamente, de reconhecimento de perspectivas. Tornamo-nos todos perspectivistas, ainda que inconscientes.
Em uma palestra de 1938 intitulada “A época das imagens de mundo”, Heidegger justamente identificou esta como “a essência” de nossa época. Passamos a ver o mundo como imagem, isto é, como conjuntos de cenários e eventos vistos por uma certa perspectiva. Tornou-se natural falar de concepções científicas, religiosas e morais. Concebemo-nos como partícipes de uma cultura ou tradição, diferente de outras. Imaginamos nossos próprios pensamentos como formando visões de mundo ou como sendo moldados por esquemas conceituais. Em consequência, nossas divergências mais profundas e duradouras não dizem respeito ao mundo, mas às perspectivas com que o vemos, às nossas imagens de mundo. O desenvolvimento da ciência moderna é justamente um dos marcos dessa história, pois nela são modelos e teorias que se apresentam pedindo justificação ou refutação, e não o próprio mundo. Isso ajuda a entender o nosso fascínio contemporâneo pela fotografia e pelo cinema, em que a imagem do mundo se apresenta concretamente, como se fosse o próprio mundo. “Esse sou eu”, dizemos, apontando para a fotografia na carteira de identidade.
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Conflitos de perspectivas não têm como ser resolvidos pela apresentação de novas perspectivas. Qualquer perspectiva que se apresente como a mais razoável ou correta está fadada a tornar-se mais uma, ao lado das outras. A proliferação de perspectivas é inevitável, mas produz labirintos de complexidade crescente, de que as redes sociais são testemunha. Por isso, conflitos de perspectivas só podem ser resolvidos por movimentos combinados, sucessivos e insistentes de (1) reconhecimento consciente das perspectivas subjacentes a quaisquer polêmicas, e (2) experiências de anulação da própria perspectiva, isto é, experiências em que não nos percebemos como espectadores de imagens do mundo ou como portadores de visões de mundo, mas nos engajamos direta e participativamente com as outras pessoas e com a natureza. Experiências exemplares desse último tipo são as de apaixonamento amoroso, de apreciação e embevecimento artístico, de envolvimento místico e de contato direto com a natureza. Essas são experiências em que tipicamente o mundo se apresenta para nós como parcialmente desconhecido sem que tenhamos imagens claras, uma vez que nelas não somos espectadores, mas como que heróis de nossas próprias mitologias, protagonistas, e não leitores, da história de nossas próprias vidas.
Esses movimentos combinados de reconhecimento consciente e reflexivo de perspectivas e de engajamento incorporado e sensível com realidades desconhecidas não têm como ser exercidos simultaneamente. Eles exigem um vai e vem de sentimentos e raciocínios, disposições e atitudes que não são fáceis de equilibrar. Mas, como brasileiros que somos, nada do que é samba nos é estranho. Ao menos esse vento parece soprar ao nosso favor.
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