Nenhuma Europa existe. E acaso existirão os europeus?

"Europa em transição" de Luuk van Middelaar é indispensável para entender a história da União Europeia e o impasse entre ela e seus Estados-membros.

por Cláudio Ribeiro

No parágrafo final do ensaio “Modernidade” (incluso em Futuro Passado – Contribuição à semântica dos tempos históricos[1]), o historiador alemão Reinhart Koselleck diz que a

determinação da modernidade como tempo de transição, desde que foi descoberta, não perdeu a evidência de seu caráter de época. Um critério infalível desta modernidade são seus conceitos de movimento — como indicadores da mudança social e política e como elementos linguísticos de formação da consciência, da crítica ideológica e da determinação do comportamento.

O destaque dado por Koselleck à associação entre “tempo de transição” e “modernidade” não é à toa. O que está no cerne disso é o fato de que ser moderno consiste em viver num tempo de disponibilidade para o “novo”, da “passagem” para um “futuro aberto”, com múltiplas possibilidades de construção etc.

Pôster do primeiro ano da Primeira Guerra Mundial. Na Inglaterra, lê-se: “Negócios como sempre”, enquanto o italiano canta “Você me fez lhe amar. Eu não queria”.

Ao ler o último livro do historiador e filósofo político neerlandês Luuk van Middelaar, recentemente lançado no Brasil (Europa em transição – Como um continente se transformou em União[2]), percebemos que a escolha do tradutor (e, claro, também do editor) de verter o título original De passage naar Europa (“A passagem para a Europa”) para Europa em transição foi muito acertada, pois, de certa forma, alude à observação de Koselleck que evocamos.

Middelaar concebeu uma obra indispensável para qualquer pessoa que queira entender não apenas a história da União Europeia, mas, sobretudo, as principais linhas de discussão sobre o impasse que há, desde os anos 1950, entre ela e seus Estados-membros, isto é, entre a entidade coletiva forjada gradualmente e hoje representada pela sigla “UE” e as nações que a compõem, que procuram “sentar-se à mesa” para um xadrez de tensão e equilíbrio. Por isso, uma das perguntas que norteiam as reflexões do autor é a seguinte: “É possível se falar em nome da Europa?” Ou, de modo mais radical: “Existe Europa?”

A resposta, logicamente, não é simples nem óbvia.

O exame que Middelaar empreende o leva a destrinchar o histórico de embates entre as instituições (políticas, jurídicas, financeiras etc.) nacionais e supranacionais, bem como o reflexo de tal embate a nível individual. De que modo, por exemplo, um cidadão alemão se vê como “cidadão europeu”? Quando alguma instituição da União Europeia toma determinada decisão em nome da Europa, e tal decisão afeta, na prática, mais a situação financeira de um cidadão alemão do que a de um grego, o que está em jogo: o futuro de uma Europa concreta e unida, tendo em vista o progresso conjunto, ou um remanejamento indiscriminado de problemas nacionais particulares?

Muito distante das análises apressadas, enviesadas e simplistas que procuram reduzir a tensão entre a autonomia e a soberania dos Estados europeus e a União, e que atribuem a esta última e aos burocratas de Bruxelas projetos inexoráveis de dominação globalista, Middelaar opta pela precisão da análise conceitual, pela medida do peso das palavras e dos discursos e pela avaliação daquilo que é se encontrar quase que permanentemente em “tempo de transição”.  Para tanto, o que o autor holandês faz, de início, é mapear os argumentos do que ele denomina “os três sincretismos”, a saber: “supranacionalismo”, “intergovernamentalismo” e “constitucionalismo”. Isto se faz necessário porque “cada palavra tem uma sonoridade e uma coação própria”.  Coação esta terminantemente ideológica.

Deste modo, a cada um dos termos acima correspondem outros que erigem a sua arquitetura argumentativa e, também, pragmática — isto é, as pessoas são efetivamente orientadas a agir tendo em vista esses discursos. Então, algo como A Europa é atravessado por três perspectivas, segundo Middelaar: a da “integração”, da “cooperação” e da “construção”. A primeira delas pode ser chamada de “Europa das Repartições”, que tem como ponto de apoio as atividades funcionais, e é defendida e estruturada por politicólogos e cientistas sociais; a segunda, de “Europa dos Estados”, que tem na figura dos historiadores aqueles que não creem no conjunto supranacionalista e, para os quais, portanto, “a Europa é uma farsa”; por fim, a “Europa dos Cidadãos”, que tem na figura dos juristas e magistrados, nos criadores de regra, naqueles que buscam a “razão cidadã” e a “saída constitucionalista”, a sua defesa. Middelaar pergunta-se: “Como escapar dessa coação ideológica (arrolada a cada um desses termos)? Ou seria isso impossível, permitindo-nos substituir a frustrada reivindicação de objetividade por um relativismo indolente?”

Há que se destacar, primeiro, que os discursos sobre a ordem europeia são ideológicos “na medida em que de um lado fazem um apelo legítimo ao futuro e do outro podem ser impugnados pela história.” Neste ponto, Middelaar pensa a ideologia atrelada à utopia, ao modo de Meinnheim, poderíamos dizer. Temos, portanto, o confronto entre projetos e programas e a pressão dos fatos novos; a tensão entre a expectativa projetiva de um futuro sempre adiado e a exigência de soluções práticas ante a irrupção de acontecimentos (como a Queda do Muro de Berlim, em 1989, ou o 11 de Setembro, em 2001, ou ainda o recentíssimo Brexit).  Por isso, tentar fazer algo “em nome da Europa” é o maior desafio, segundo Middelaaar, pois trata-se de buscar “um equilíbrio entre a Comissão, o Conselho Ministerial e o Parlamento, as três instituições europeias nas quais as linhas de força Repartições, Estados e Cidadãos desembocaram.”

Mas em meio à tensão, existe uma “esfera intermediária”, cujo movimento “surge primordialmente porque os Estados buscam cada um seus próprios interesses.” — O leitor familiarizado com Bernard Mandeville poderá vislumbrar aqui ecos do que este autor imprimiu em sua Fábula das abelhas. Tal esfera, “por si menos contundente”, diz Middelaar, “pode falar em nome dos Estados-membros europeus reunidos e de suas populações”. Entre uma esfera interna e uma esfera externa da política europeia, o espaço da esfera intermediária assemelha-se ao Purgatório, lugar limítrofe entre o Inferno e o Paraíso — Dante e Le Goff, inclusive, são trazidos à baila por Middelaar para tornar claro este ponto. As soluções, portanto, nunca serão dadas por seres iluminados e, tampouco, serão incineradas no fogo infernal dos satânicos “inimigos da Civilização Ocidental”.

O título deste artigo é a paráfrase de um verso do poema “Hino Nacional”, de Carlos Drummond de Andrade, que se aplica ao Brasil. Mas se a União Europeia transformou um continente num espaço e não num lugar, como diz Middelaar, e se isso levou as nações e os indivíduos que as compõem a permanecerem num “intervalo entre o ‘já está’ e o ‘ainda não’”, o verso do autor de Alguma poesia curiosamente se ajusta ao “velho continente”. Isso pode nos remeter às reflexões que o social-democrata britânico Tony Judt levou adiante nas páginas finais de seu monumental Pós-Guer­ra: Uma História da Europa Desde 1945[3], nas quais pergunta: “qual é o futuro dos Estados europeus? Teriam eles futuro?”

Talvez um bom autor para ser lido junto de Judt e Middelaar, a fim de tangenciar respostas possíveis, seja Ernest Gellner: um autor que precisa ser reintegrado ao debate sobre os nacionalismos e os desafios do mundo globalizado. Mas isso é pauta para outro momento.

[1] Tradução de Wilma Patrícia Maas e Carlos Almeida Pereira. Contraponto; Ed. PUC-Rio, 2006, 268 páginas.

[2] Tradução de Ramon Alex Gerrits. São Paulo: É Realizações, 2017, 576 páginas

[3] Tradução de José Roberto O’Shea. São Paulo: Objetiva, 2007, 847 páginas.

Para saber mais

Atmosfera de decadência

Podcast – O Estado de Bem-Estar Social

https://www.teatrodomundo.com.br/asia-x-europa-a-epopeia-grega-segundo-a-persia/

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