por Gabriel Ferreira
Em dezembro de 1783, o filósofo prussiano Immanuel Kant escreveu um texto que, embora não seja nem de longe um de seus mais profundos, é dos mais influentes. Em “Resposta à pergunta: O que é o Iluminismo?” (ou o “Esclarecimento” – Aufklärung –, como preferem alguns), Kant avança uma das mais apaixonadas defesas já escritas da autonomia e do conhecimento individual contra as ameaças da heteronomia. Frente ao saber potencialmente controlador dos nobres, da igreja ou dos especialistas, Kant oferta aquilo que ficaria conhecido como o grande lema de sua perspectiva de Iluminismo: Sapere Aude! (Ouse Saber!). Mas ainda que Kant sugerisse que tal ousadia enfrentasse até o monopólio do saber do médico (afinal por que haveríamos de “deixar que outros decidam sobre a nossa dieta”) ele jamais poderia prever o que uma mutação radical do seu conselho, elevada à enésima potência, viria a produzir. Em um livro ainda fresco, The death of expertise, lançado pela Oxford University Press no dia 1º de março de 2017, o professor da US Naval War College, Tom Nichols, expõe e analisa um fenômeno que, embora não seja propriamente recente, tem exibido particularidades notavelmente novas nos tempos atuais.
É claro que a suspeita sobre os expertos em suas múltiplas facetas não é um fenômeno recente. A começar pelos quase nunca levados a sério profetas do Antigo Testamento, passando por professores, sacerdotes, superiores hierárquicos dos mais distintos tipos, e chegando aos intelectuais públicos do século XX, aqueles que se arrogam um saber superior sempre foram alvo de desconfiança. No entanto, parece que tal fenômeno não apenas radicalizou-se ou, ao menos, tornou-se mais visível, como também se revestiu de novos matizes e, portanto, de novas possíveis consequências. Uma das novidades mais sensíveis apontadas por Nichols é a crença amplamente difundida na igualdade a priori de opiniões, injustificavelmente derivada de uma torpe concepção de democracia. E embora o autor veja como consequência mais desastrosa a ameaça à própria democracia, uma vez que a ignorância geral convicta de si mesma pode prestar-se a qualquer inclinação que a afague melhor, creio que um dos pontos altos da análise de Nichols sobre as consequências desse processo de radicalização, exposto já no capítulo dois, seja o quanto ele envenena o diálogo – público e privado – entre as pessoas. Discordâncias legítimas – que deveriam ser tratadas no diálogo racional e argumentativo – tornam-se cada vez mais conflitos belicosos irreconciliáveis. Para quem tem na cabeça, ao menos como ideal regulativo, a concepção de cultura humana como uma imensa, atemporal e frutuosa “aventura da conversação”, para usar a fórmula do filósofo britânico Michael Oakeshott, tal desmoronamento é a condição de possibilidade daquela ameaça de tirania.
É absolutamente imperativo notar que não se trata de criticar o saudável ceticismo que se deve nutrir frente aos especialistas e intelectuais; estão aí a Revolução Francesa e seus epígonos que não nos deixam esquecer até onde intelectuais convictos do que é melhor para todo mundo também podem ir. Mas a questão aqui nada tem a ver com uma submissão irrefletida. Até porque o leitor poderia – e deveria – lembrar que, nos últimos tempos, os especialistas não têm dado grandes mostras de notório saber. Do Brexit à eleição de Trump, passando pelo referendo sobre as FARC na Colômbia, especialistas em política internacional e os autointitulados intelectuais erraram vergonhosamente, não sem antes espezinhar aqueles que apostavam em contrário e ganhar algum dinheiro ou projeção com suas previsões furadas.
Contudo, o principal traço do livro de Nichols parece ser não meramente apontar que aquela tradicional e desejável suspeita tenha ganhado o inflamável combustível da internet, com discussões tão vazias quanto virulentas, escoradas em informações compostas por cacos provenientes da internet (e, em grande parte das vezes, de origem duvidosa), mas aquilo que o autor chama explicitamente de “morte do ideal de expertise”. A novidade não se reduz então meramente ao quanto a internet e as redes sociais potencializaram o velho ranço contra aqueles que acham que sabem, mas diz respeito sobretudo a uma hostilidade positiva contra o conhecimento em geral. O saber não é somente alvo de uma desconfiada indiferença, mas ele é agora odiosamente renegado em favor de uma equidade estúpida. E daí segue-se um dos deliciosos paradoxos da modernidade que consiste no fato de que, ao mesmo tempo em que vivemos na, assim chamada, era do conhecimento, talvez nunca tenhamos tido tamanho desprestígio público e raivoso pelo saber. Ou, para usar a fórmula do diagnóstico de Nichols, “Como a informação ilimitada está nos tornando mais idiotas”.
Aqui é impossível não lembrar que o livro de Thomas Nichols faz um excelente par com a já clássica obra de 2005, que é quase um panfleto, do filósofo americano Harry Gordon Frankfurt, On Bullshit, adequadamente traduzido ao português como Sobre falar merda (Intrínseca). Frankfurt inicia o livro com o diagnóstico, tão evidente quanto incômodo, de que a nossa época está repleta de bullshit e que cada um de nós colabora com o estado geral fornecendo sua própria cota de bobagem. No entanto, o traço mais saliente da análise de Frankfurt, e que é o que me interessa aqui, é sobre a mais essencial característica do bullshit. O aspecto distintivo do bullshit é que ele não é uma falha em reproduzir a verdade, como o simples erro ou engano, e nem tem a pretensão consciente de esconder ou obliterar a verdade, como a mentira deliberada, mas caracteriza-se sobretudo pelo total e absoluto descaso para com a verdade. O bullshit não tem pretensão alguma de ser verdadeiro ou esconder a verdade porque, basicamente, não se importa ou se interessa por ela. Assim, uma volta a mais no parafuso da morte do ideal de expertise e chegamos então à morte da própria verdade como ideal. Estão aí os jornais e o Oxford Dictionary que não me deixam mentir. Pavimentada e concretada por anos a fio de sócio-construtivismo, chegamos à era da “Pós-verdade”.
Mas, assim como todas essas paranoias da moda, chegamos a mais um daqueles paradoxos que mais se assemelha a certa esquizofrenia. A situação atual consiste em, simultaneamente, negar a existência da verdade para, então, indignar-se até a medula com os “fatos alternativos”. Da mesma maneira, nega-se qualquer precedência ao especialista para, então, fazer de cada um, alguém que deve ser ouvido como uma autoridade suprema (aos moldes do politicamente correto que diz que beleza não existe para, imediatamente depois, impor que achemos todos bonitos). Do fato evidente de que em certos assuntos sensíveis, em especial sobre determinados aspectos de política ou saúde, mais pessoas devam ser ouvidas, não se segue que todas as opiniões devem ter exatamente a mesma relevância ou que devam ser consideradas igualmente válidas. A passagem da primeira parte à segunda não é um incremento de igualdade. É apenas a multiplicação da estultícia.
Iniciei o texto com a referência ao Iluminismo porque, não é segredo algum, a promessa era de difundir e propalar as Luzes. Mas quando Habermas afirmava, já há tempos, que o Iluminismo é um projeto ainda não efetivado, creio que nem ele pensava que a razão disso seria tamanha inversão (nem copernicana, nem ptolomaica). O convite kantiano era a “sair da menoridade”. No entanto, “Ouse Saber!” degenerou em “Opine confortavelmente”, uma vez que não apenas não se trata de incomodar-se em saber sobre nada – e para quê, se não há verdade alguma a ser conhecida? – e, muito menos, de ousadia; as opiniões são, em sua grande maioria, um mar de platitudes nada desafiadoras. Isso, em parte, porque não há argumentos – que pressupõem justamente certo saber minimamente concatenado – a serem analisados, esmiuçados e refutados e, em parte, por uma consensual atrofia da capacidade reflexiva, banhada em autocomiseração ressentida e selada pela perversão da concepção da universidade para fazer dela um safe space cheio de trigger warnings. A invocação à “coragem de fazer uso do seu próprio entendimento” resultou em covardia obstinada diante da própria ignorância.