por Gabriel Ferreira
Meu texto de junho para este Estado da Arte girava ao redor de duas questões intimamente relacionadas, a saber, frente ao avanço das ciências específicas que têm o ser humano como objeto, seja direta ou indiretamente, há ainda alguma possibilidade de contribuição genuína ou distintamente filosófica ao tratamento do problema “O que é o homem?”. Em caso afirmativo, qual seria tal contribuição? Que forma ela teria? É a esse espectro de questões que os títulos dos artigos – tanto daquele como deste – fazem referência; ainda há espaço para alguma intromissão filosófica em um problema que parece ser cada vez menos suscetível de um tratamento “especulativo”?
O parágrafo acima – bem como uma parte considerável do meu texto anterior – coloca uma série de questões prévias que não é possível perseguir agora. Talvez a mais importante delas seja a meta-questão “o que significa um tratamento filosófico de um problema?”. Isso nos levaria a uma das mais interessantes questões sobre a qual pretendo tratar em textos futuros, a saber, a do assim chamado “excepcionalismo” da filosofia, ou seja, se a filosofia, como discurso articulado cuja pretensão é descrever (e/ou prescrever) a realidade possuiria algo de excepcional, único, que outras descrições sobre a realidade não possuiriam. O problema não é simples e deve ficar para um próximo texto; por ora, basta dizer que mesmo alguns defensores da ideia de que a filosofia possua sim um método específico, simultaneamente negam tal excepcionalismo (como Timothy Williamson, por exemplo). No entanto, se o objetivo aqui é perseguir a possibilidade e o caminho de uma abordagem filosófica sobre o ser humano, é preciso apontar ao menos alguns aspectos do que entendo aqui por tal abordagem. Para isso, é preciso uma pequena digressão.
Se é verdade que, como apresentei no texto passado, as ciências naturais conheceram um boom inaudito nos últimos dois séculos, não é menos verdade que a própria filosofia passou por profundas modificações. Para o que me interessa aqui, a mais saliente delas talvez tenha sido a paulatina aproximação com aquelas ciências naturais de uma forma porventura sem precedentes em sua história. É fato que a filosofia historicamente foi o tronco comum a partir do qual emergiram as ciências específicas tal como compreendidas hoje e que, para além disso, a relação para com tais ciências sempre esteve no escopo dos filósofos. De Aristóteles a Kant, passando por Descartes, Hume, Kant e uma parte considerável de pensadores dos séculos XIX e XX, salvo poucas exceções, houve sempre franca abertura para a recepção dos conhecimentos provenientes da física, biologia, química etc., bem como para a reflexão sobre eles. No entanto, nas últimas décadas, perspectivas e visões sobre o trabalho filosófico como devendo não apenas recepcionar os conhecimentos gerados pelas hard sciences, mas como tendo de buscar produzi-los segundo os mesmos métodos, culminou em concepções tais como a articulada por Joshua Knolbe e Shaun Nichols em seu manifesto de uma filosofia experimental. Ali, Knolbe e Nichols propugnam que a filosofia deveria voltar a uma concepção de si própria que não se preocupava em distinguir-se da psicologia, da história ou da ciência política, bem como não apenas refletir sobre os ganhos das diversas ciências, mas deveria ela mesma conduzir seus próprios experimentos.
Não se trata, por ora, de investigar o movimento descrito acima ou se, de fato, houve uma tal fase áurea na qual não teria sido importante distinguir a filosofia de outras áreas. O objetivo com a breve reconstrução acima – certamente mais próxima de um esboço – é apontar que, sob um certo ponto de vista e para alguns filósofos contemporâneos, as duas questões que trato aqui simplesmente não se colocam ou, ainda, colocam-se com ressalvas; o que uma aproximação não-empírica sobre o homem traria como vantagem? Seriam seus “resultados” confiáveis?
Contudo, o que pretendo aqui é, precisamente, apontar para a relevância e para a importância de uma espécie de reflexão filosófica “igualmente” tradicional, sobretudo em relação ao problema antropológico. Dito diretamente, o que tenho em mente ao apresentar o problema da validade e do estatuto de uma antropologia filosófica é o problema da relevância de um discurso intuitivo sobre o ser humano. E aqui outras considerações (meta) filosóficas sobre o método são necessárias. Uma vez mais, pretendo voltar a esse tema posteriormente. Por ora, bastam algumas pequenas clarificações. Por intuição em filosofia quero me referir a proposições que, para usar as palavras de van Inwagen, parecem nos mover em direção a aceitarmos algo como evidente, verdadeiro, correto etc. Há uma série de debates, encampados por filósofos como David Lewis, Ernest Sosa, Hilary Putnam, Joel Pust, Timothy Williamson, Daniel Nolan e outros, sobre o que são, mais precisamente, intuições e qual sua validade epistêmica ou como justificativa de crenças (ou mesmo da validade de uma armchair philosophy). Para o meu objetivo aqui, é suficiente ter em mente a formulação de van Inwagen e alguns exemplos mais simples tais como: “É impossível um triângulo não ter três lados”, “se ‘p’ é verdadeiro, então ‘não p’ é falso”[1].
Assim, agora podemos recolocar as nossas questões em uma formulação mais precisa: é possível um discurso filosófico intuitivo sobre o problema antropológico que seja ainda hoje, sob algum aspecto, relevante? Minha resposta é afirmativa e pretendo utilizar o resto desse artigo para apontar um exemplo de tal construção e, por fim e mais importante, um caminho particularmente significativo e profícuo aberto por esse tipo de abordagem.
O filósofo alemão Helmuth Plessner (1892-1985), um dos principais propositores da antropologia filosófica no início do século passado, tem como centro de suas reflexões duas noções ou, melhor, intuições. Tais noções ou conceitos parecem ter uma notável capacidade de interação tanto com explicações das hard sciences quanto com abordagens sociológicas e partem igualmente de uma cogente intuição, a saber, que o homem dá mostras de possuir uma relação peculiar com o corpo. Diferentemente de Heidegger, para quem a perspectiva central da compreensão dos fenômenos humanos é sua relação com o tempo, Plessner assume um ponto de partida espacial. Desse modo, uma primeira intuição fundamental quanto ao fenômeno humano é sua relação – ou suas relações – com aquilo que ele chama de “posicionalidade” (Positionalität). Os corpos – animados ou inanimados – apresentam limites ou fronteiras (Grenze), pensados, a princípio, espacialmente mesmo. Entretanto, embora tais limites físicos estejam presentes em todos os objetos e entidades, eles parecem possuir um papel distinto para o ser humano. Diferentemente do que parece ocorrer às plantas – cujas fronteiras cumprem um papel estritamente fisiológico – e aos outros organismos animais – os quais apresentam um “centro” que se relaciona com aquilo que intercepta seus limites –, no homem esse “centro” que marca um “dentro” e um “fora” dos limites dá mostras que pode ir ainda mais longe. Como aponta Plessner, o homem não apenas coloca-se ora do ponto de vista “interior”, ora do ponto de vista “exterior” aos limites físicos de seu corpo, em uma perspectiva necessariamente dupla, mas tem a capacidade de olhar sua própria posicionalidade, seu próprio centro, a partir de um “fora” que não se identifica com o exterior físico; é o que Plessner chama de “excentricidade” ou “posicionalidade excêntrica” (exzentrische Positionalität). Em outras palavras, o homem é um animal que simultaneamente “é um corpo”, “tem um corpo” e que “está fora de um corpo”.
A possibilidade de uma “centralidade fora de centro” constitui para Plessner a condição para o mundo da cultura, abrindo-se então o espaço para a sua segunda intuição básica, derivada daquela sobre a excentricidade, que é a de que somos animais “artificiais por natureza”. Se a excentricidade é condição para a abertura de todo um mundo, isso ocorre porque tal exigência é também falta de identificação completa com “ser um corpo” ou “ter um corpo”. Por isso o homem naturalmente se inclina à fabricação de universos (simbólicos, diria Cassirer) de substituição e complementação. E apresenta-se, enfim, como um animal composto; se não por duas naturezas, por duas perspectivas.
Aqui poderíamos, por exemplo, deixar as intuições fundamentais de Plessner e avançar por outros caminhos. O homem é um animal que não se satisfaz com a natureza tal como ela é dada. Mas mais do que isso, o homem é o único animal para o qual há, de fato, algo como “natureza”. Com isso quero dizer que somente o homem – ao menos no presente e no planeta Terra – (1) contempla entidades naturais em relações umas com as outras e, num nível superior, segundo leis (da física, da química etc. Que elas possam ser expressas matematicamente é, aqui, um plus) e, principalmente, (2) faz da natureza um todo único passível de ser tomado como objeto intencional de diversos tipos: a ser explicado, admirado, modificado etc., bem como (3) entende-se a si mesmo e a seus propósitos a partir dos diversos níveis de consciência e relação com (2). Em outras palavras, algo como “o cosmo” só é objeto para um tipo de animal, o tipo de animal que nós somos. Da mesma forma, só há vida – como biografia, e não somente como biologia, como afirma Ortega y Gasset – e história no interior dessa perspectiva. O ponto fundamental parece ser que o mundo existe para nós – como conjunto das propriedades físicas, sociais e históricas – e há algo como (e estou me referindo ao tipo de perspectiva descrita por Thomas Nagel em seu clássico What is like to be a bat?) um “como é ser eu frente a esse mundo”. E aqui a noção de self parece ganhar um sentido e uma importância mais determinada.
Neste ponto, até mesmo a questão do excepcionalismo humano frente a outros animais começa a ser secundária. O mesmo acontece com a questão sobre a gênese de tais configurações descritas acima. Chego agora ao meu segundo ponto que só indicarei de forma breve, mas, creio, suficiente. Por que razão e como tais coisas chegaram a ser tais como são não parece ser tão urgente quanto a minha experiência de tais fenômenos. E parecemos encontrar certa relevância para essa forma de abordar o problema “O que é o homem?”.
Muito antes de Plessner, a intuição de que o homem é, de algum modo, uma certa composição deficiente, já encontra diversas ocorrências na filosofia. Para além de Aristóteles e seus epígonos medievais, Blaise Pascal forneceu uma das melhores formulações: “O homem não é nem anjo nem besta e a infelicidade exige que quem quer fazer-se de anjo, seja besta”. No auspicioso século XIX, o filósofo Søren Kierkegaard também fez eco à mesma intuição ao dizer que o homem é sempre um inter-esse – um ser intermediário – entre diversos polos (finitude-infinitude, necessidades e possibilidades etc.). Mesmo depois de Plessner, nosso conterrâneo Ferreira Gullar, em seu simples e delicioso Acidente na sala experimenta as mesmas questões:
Movo a perna esquerda de mau jeito
E a cabeça do fêmur atrita com o osso da bacia
Sofro um tranco
E me ouço perguntar
Aconteceu comigo ou com o meu osso?
E outra pergunta
Eu sou o meu osso?
Ou sou somente a mente que a ele não se junta
E outra, se osso não pergunta, quem pergunta?
Alguém que não é osso, nem carne, que em mim habita
Alguém que nunca ouço
A não ser quando no meu corpo um osso com outro osso atrita?
Mais do que as questões especificamente técnicas da filosofia, que fiz apenas apontar anteriormente, o que emerge das considerações que se desenrolam a partir de intuições quase fenomenológicas é que tanto o problema “o que é o homem?” quanto tais intuições transpassam incólumes as limitações científicas do século IV a. C., as querelas religiosas do século XVII ou ainda as questões sobre a validade do discurso filosófico no século XIX. A autoimposição de intuições sobre nossa experiência do mundo em primeira pessoa não pode senão arrastar-nos para tais reflexões que, se Sócrates tem razão ao repreender os arroubos de Alcibíades, devem preceder todas as demais ações e decisões. O lugar e a relevância de tal aproximação ao problema parecem sempre emergir, ainda que desordenada e desarticuladamente, no interior do homem que reflete sobre si, fazendo ressoar de maneira tão intensa e atual as palavras do príncipe dinamarquês:
Que obra-prima o homem! Tão nobre em sua razão, tão infindo em faculdades, em forma e movimento quão rápido e admirável, na ação tão próximo dos anjos, na apreensão tão semelhante a um deus: a beleza do mundo, o paragão dos animais – mas que é isso para mim senão a quintessência do pó (Hamlet, Ato II, Cena II).
[1] Evitei propositalmente o uso de expressões tais como “em virtude de sua forma lógica” ou, ainda, distinções como analítico/sintético e a priori/a posteriori uma vez que elas ou não explicam exaustivamente o que conta como uma intuição – como no caso da forma lógica ou da distinção a priori/a posteriori – ou abrem problemas mais complexos cujos tratamentos superariam os ganhos deste texto, como a distinção analítico/sintético.