por Celina Alcântara Brod
A reflexão filosófica é repleta de “sinucas de bico” teóricas. A maioria delas é provocada por desafios céticos intransponíveis. São problemas que, além do tom aporético, envolvem a compatibilização de realidades aparentemente irreconciliáveis. Este parece ser tanto o caso da tensão entre responsabilidade moral e liberdade, como da relação quase beligerante entre a pluralidade ética e a moralidade social.
No primeiro caso nos vemos diante do embaraço entre livre-arbítrio e determinismo. Se todas nossas ações são provocadas por variáveis involuntárias, feito linhas imperceptíveis que controlam marionetes, como pode a responsabilidade moral ser justificada? Que culpa tem um homem que não poderia ter agido diferentemente? E se não há culpa, que sentido há na prática da punição?
Já no segundo caso, nos defrontamos com a difícil dinâmica política social entre a multiplicidade dos ideais individuais e o terreno moral comum que envolve a vida em sociedade. Qual é o tipo de ambiente político que equaciona esfera privada e esfera pública sem que a última sufoque a primeira?
Nossa condição perene de zoon politikón, demanda a reflexão contínua sobre nossas práticas sociais. Este conceito aristotélico, que sobrevive há mais de dois mil anos de história jamais perderá seu vigor, afinal, somos uma espécie social inventiva, que questiona sobre o significado de uma vida boa. Pensar sobre o sentido de responsabilidade moral e compreender o valor da diversidade parecem ser duas de nossas carências contemporâneas mais urgentes.
Qual é o tipo de ambiente político que equaciona esfera privada e esfera pública sem que a última sufoque a primeira?
Reflexões instigantes para estes dois embaraços- nem tão teóricos assim- vieram de uma voz inesperada: Peter Frederick Strawson (1919-2006). Filósofo inglês, professor da Universidade de Oxford de 1968 até 1987, renomado por suas contribuições analíticas para a filosofia da linguagem, para a metafísica e epistemologia. Fortemente influenciado por Kant, Strawson apontou para o uso de nossos esquemas conceituais e estruturas de pensamento que viabilizam nossa descrição da realidade e produção do conhecimento. Tais conclusões resultarem em seu principal projeto: uma metafísica descritiva. Porém, foi o naturalismo de David Hume e Wittgenstein que Strawson ecoou para desarmar o ceticismo, aquele cujas dúvidas colocam em xeque a própria estrutura pela qual funcionamos como seres humanos.
Seu ensaio Freedom and Ressentment, publicado em 1960, fez com que a reflexão acerca da responsabilidade moral voltasse para o homem inserido no mundo. Strawson discorreu sobre a responsabilidade não a partir das relações lógicas entre os conceitos filosóficos, mas sim como fenômeno que dava vida ao próprio objeto de investigação. Sua tática para neutralizar o pessimista, aquele que duvida da legitimidade da responsabilidade diante do determinismo, foi apelar para aquilo que Wittgenstein chamou de “animal” e Hume de natureza humana. Ou seja, antes mesmo de um alvará filosófico para sermos livres e consequentemente culpados, existe algo que está fora de nossa escolha racional: o ser humano faz parte de uma espécie que se magoa e sabe que se magoa.
O nosso agir e as práticas sociais que desenvolvemos, como punição e recompensa, expressam este sentimento causado por um intercâmbio social de ação e reação. Strawson lembra-nos que não dependemos de uma noção metafísica de liberdade para sentir ressentimento, indignação, gratidão, culpa, remorso, arrependimento e toda uma gama de sentimentos. Negar esta condição seria caluniar contra o mundo real. Se de fato somos marionetes, puxadas por fios do determinismo, isso não aniquila com aquilo que Strawson denominou de atitudes reativas. “Esse comprometimento é parte do quadro geral da vida humana,” escreve Strawson. Culpamos, condenamos, reprovamos e responsabilizamos uns aos outros porque ressentir-se nos é inevitável. Com isso, esperamos que o outro aja de boa vontade e que não nos cause qualquer dano. Quando tal comprometimento se rompe o ressentimento acontece. Nada há de extraordinário nestas afirmações, mas foi este lugar-comum, de fôlego sentimentalista, que deu novos rumos para o debate moral na Filosofia do século XXI.
O debate filosófico parecia ter esquecido que a existência do ato de responsabilizar não dependia da falsidade do determinismo. Nenhum convencimento teórico, por mais elaborado que fosse, seria capaz de extinguir tal fenômeno. Strawson, com rigor e lucidez avaliativa, invocou o lugar-comum das relações interpessoais, que segundo ele “é fácil de esquecer quando nos ocupamos com a filosofia, especialmente em nosso frio estilo contemporâneo”. Em nossas vidas sabemos, sem o auxílio de qualquer intelectualização, que a dor que sentimos quando alguém pisa intencionalmente em nossa mão é diferente da dor de um ato acidental.
Envolvidos em uma comunidade moral, a responsabilidade está ligada a capacidade em prever, dentro desta rede de expectativas e demandas emocionais, o efeito de nosso próprio comportamento. Por isso, não responsabilizamos uma criança quando ela faz uma “arte”, pois é na infância que se vive a curiosidade em apreender o curso natural das coisas. Nossas atitudes reativas são inibidas quando lidamos com alguém que não esteja inserido em “relações humanas adultas ordinárias”. Contudo, responsabilizamos um indivíduo que tenha agido de má-fé, porque o nosso engajamento social faz parte de uma rede de afetos que não conseguimos suprimir, pelo menos não permanentemente.
Podemos nos distanciar e adotar um ponto de vista imparcial, de lentes puramente científicas, para analisar, por exemplo, o comportamento de Pol Pot, Hitler e Stalin. Mas será que podemos imaginar um mundo onde eles não sejam culpados? Nossas atitudes reativas se estendem aos danos causados aos demais, não apenas em relação a nós mesmos, e é esse caráter impessoal que concede ao sentimento um cunho “moral.” Sentimos pelas vítimas de desastres, massacres, atentados, ou qualquer violência e desaprovamos moralmente aqueles que causaram tal dano. Todos esses sentimentos “se conectam humanamente”, escreve Strawson. A perspectiva do filósofo de Oxford ecoa a célebre frase de Hume, de que “a moralidade, portanto, é mais propriamente sentida que julgada.” Assim, o texto Freedom and Ressentment atenuou um possível ceticismo radical acerca da responsabilidade ao resgatar realidades que a natureza não deixou à nossa escolha.
Para tratar da tensão entre os múltiplos ideais subjetivos e a esfera social, Strawson reitera uma abordagem naturalista. Ele destaca aspectos essenciais que compartilhamos enquanto criaturas sociais: interesse mútuo pela vida em sociedade e a nossa intrínseca multiplicidade.
Strawson abre seu texto Social Morality and Individual Ideal (1961) com a seguinte frase: “Os homens fazem para si mesmos imagens de formas de vida”. Tal multiplicidade de imagens não existe apenas entre homens, mas no próprio homem. Logo, qualquer tentativa de espremer a diversidade humana em um único ideal está fadada ao fracasso. É bastante tentador sustentar que os homens deveriam viver de uma determinada maneira. Afinal de contas, um único modo de vida seduz pela sua simplicidade; apaga as diferenças e dá um fim às tensões geradas pelo embate entre as múltiplas imagens que os homens forjam para si. Mas, certamente “qualquer diminuição desta variedade empobreceria o cenário humano”, defende Strawson. Quando observamos a realidade, livre de amarras unidimensionais, é com um caleidoscópio que nosso olhar se depara. Basta um único novo ângulo, que a imagem que reflete a humanidade já não é mais a mesma.
Strawson reitera uma abordagem naturalista. Ele destaca aspectos essenciais que compartilhamos enquanto criaturas sociais: interesse mútuo pela vida em sociedade e a nossa intrínseca multiplicidade.
Muito tempo transcorreu desde os ditos de Heráclito, mas a constante mudança continua sendo o que há de mais permanente. Podemos a partir de nossa experiência comprovar tal perspectiva, afinal, transitamos entre diversos territórios, influenciados, como diz Strawson, pela “idade, experiência, ambiente atual, leitura atual e estado físico atual”. Não é nada raro conhecer pessoas que no passado se autoproclamavam socialistas e hoje defendem princípios liberais, ou crentes que após anos de devoção e fé tornaram-se ateus convictos. Ex-veganos, ex-fumantes, ex-defensores da poligamia e hoje monogâmicos ferrenhos. Somos cativados por diversos modos de vida, que carregam diferentes enunciados éticos.
Obviamente a zona de interação destas imagens será conflituosa. Porém, a coexistência de múltiplos ideais é a condição sine qua non de uma interação social compreensiva. Intolerável, nas palavras de Strawson, é impor “qualquer doutrina que proponha que o padrão de uma vida ideal seja o mesmo para todos.” Reduzir a pluralidade e unificar forçosamente as múltiplas imagens a um padrão universal é eliminar o caráter essencial do que nos faz humanos. Em uma sociedade que realmente se interessa em preservar este terreno múltiplo, deve acolher o fato de que conflitos são inevitáveis e desejar que visões antagônicas tenham espaço para se expressar.
Por outro lado, a esfera da moralidade social diferente da imaginação ética é caracterizada por regras que se aplicam universalmente para regular o comportamento. Evidente que há aqui uma relação complexa. Strawson busca harmonizar esta sobreposição a partir da evidência que se segue. Para a realização de qualquer um de nossos fins, dependemos de alguma forma de sociedade e qualquer forma de sociedade depende de algum conjunto de regras. Há que se ter, para Strawson, “uma concepção mínima de moralidade”, que seja reconhecida reciprocamente, contendo deveres e obrigações indissociáveis das posições e ofícios que indivíduos ocupam dentro da sociedade. Ora, toda pessoa sujeita a demandas morais sociais tem interesse na moralidade, pois a realização de seus fins individuais depende da existência de tais regras. Ademais, como sugere Strawson, certas virtudes humanas são gerais e fundamentais como o socorro mútuo, a obrigação de abster-se de infligir dano físico e o desejo de não ser enganado. Tudo isso requer um equilíbrio delicado que para Strawson é possível em uma sociedade liberal, “na qual existem diferentes entornos morais, mas na qual nenhum ideal trate de monopolizar a moralidade comum e determinar seu caráter.” Uma sociedade onde haja a tentativa de fazer com que a aspiração moral de um Estado reflita uma única imagem moral de todos seus membros estará suprimindo uma das disposições naturais dos homens: a multiplicidade de ideais. Assim, o indivíduo strawsoniano, reconhece seus ideais particulares, porém percebe o ganho mútuo da cooperação e pluralidade inerente do intercâmbio social.
Certamente os dois textos não esgotam toda a perplexidade dos embaraços apontados aqui. Strawson mesmo admite não ter oferecido resposta completa e absolutamente adequada. Apesar disso, as suas reflexões de lugar-comum, contribuem enormemente para nossos questionamentos contemporâneos, na medida em que elas dizem respeito a um ser humano que expressa sua natureza tanto no domínio privado quanto público; um indivíduo híbrido, empático, responsável e múltiplo.