O jargão da crítica e a autenticidade da vida intelectual

No primeiro dia de 2017, o mundo perdeu um dos maiores e mais ativos filósofos em atividade até então, o britânico (nascido na China) Derek Parfit (1942-2017).

por Gabriel Ferreira

No primeiro dia de 2017, o mundo perdeu um dos maiores e mais ativos filósofos em atividade até então, o britânico (nascido na China) Derek Parfit (1942-2017). Com uma produção notável, tanto em número quanto em qualidade, Parfit foi certamente um dos pilares das discussões sobre ética, metaética e temas correlatos no século XX; obras como Reasons and Persons e On what matters são leituras incontornáveis para quem se interessa por tais temas (e, diga-se, também para quem não se interessa diretamente).

Ao escrever um de seus obituários, para a edição 119 da revista Philosophy Now, o professor de Oxford e amigo de Parfit, Jeff McMahan, relembra, para além de suas obras, alguns dos traços de sua personalidade que, caso não tivessem sendo narradas por um amigo de longa data, poderiam bem soar como uma caricatura, daquelas que geralmente povoam o pensamento do senso comum a respeito da vida de quem se dedica verdadeiramente à vida intelectual.

Segundo McMahan, não obstante Parfit tivesse sido abençoado com um gênio inato para a filosofia, o modo como o amigo trabalhava e devotava a vida ao trabalho intelectual era pouco menos do que sagrado. O professor nos conta que Parfit esvaziou sua vida ao máximo a fim de dedicar-se àquilo que lhe era mais caro, seu pensamento e sua obra. Ele praticamente não saía de casa e fazia apenas duas refeições ao dia, constituídas predominantemente de vegetais e frutas, que não exigiam preparo, a fim de afastar-se pouco ou nada de seus afazeres. Costumava deixar um livro aberto na cômoda para que pudesse ler enquanto se vestia e outro para ler enquanto pedalava, por uma hora todos os dias, em sua bicicleta ergométrica. McMahan conta ainda que, há alguns anos, quando lecionava em Rutgers, Parfit teve uma série de problemas de saúde que o levaram a ser internado em caráter de urgência. Após sair da sedação e ter os aparelhos de ventilação removidos, Parfit imediatamente começou a falar e debater com McMahan sobre os temas nos quais trabalhava logo antes de sua internação. O perfil de Parfit é coroado ainda com a lembrança de McMahan do quão gentil e generoso havia sido seu amigo e colega, que não raro costumava devolver os manuscritos de alunos e colegas com cuidadosos e estimulantes comentários, frequentemente maiores do que o próprio texto que lhe havia sido entregue.

O filósofo Derek Parfit

Quer se considere o relato uma leitura romântica do que significa levar a sério a vida intelectual, quer o tomemos como apenas um obsessivo-compulsivo, a imagem de Derek Parfit que emerge desse obituário é, sem dúvida, a de alguém que viveu para aquilo que acreditava. Do mesmo modo, é ainda, para muitos, uma dupla pedra de tropeço. Isso porque duas das mais recorrentes modalidades de análise e crítica da universidade – e aqui quero me ater, fundamentalmente, às humanidades na universidade – encontram em Parfit, e em outros como ele, um obstáculo, senão um retumbante desmentido, a seus pareceres. Há duas espécies de exame crítico acerca das relações entre a vida intelectual e a academia. Por uma mera questão de taxonomia, podemos chamá-las de crítica interna, ou autocrítica, e crítica externa. Passemos a uma breve exposição de cada uma delas.

Uma visão geral sobre como boa parcela das pessoas envolvidas na atividade intelectual no interior das universidades enxerga o atual estado das coisas pode ser tida através de um debate que, surpreendentemente, tem se dado simultaneamente tanto ao redor do mundo quanto no Brasil; é a querela acerca do “quantitativismo”. Debates, textos e congressos debatendo o tema têm sido uma tônica quando se trata de pensar a vida intelectual em conexão com a vida prática da universidade. O problema central, tanto “aqui” quanto “lá”, é, basicamente, que os atuais sistemas de aferição do trabalho de um pesquisador – e, portanto, o principal aspecto quando o assunto é contratação ou promoção – estão predominantemente baseados na quantidade de trabalhos publicados e em índices correlatos (como trabalhos publicados em revistas científicas de maior prestígio). Desse modo, prioriza-se a quantidade sobre a qualidade e se incentiva práticas pouco científicas, como a famigerada “Salami Science” – o “fatiamento” de trabalhos e pesquisas em diversos trabalhos menores (e, por vezes, irrelevantes), a fim de justamente aumentar a quantidade de publicações – ou ainda a publicação paga, em que editores de periódicos científicos de baixa qualidade cobram para publicar artigos, o que, na prática, significa que publicam qualquer coisa, desde que o preço seja pago.

Em oposição a isso, há toda uma miríade de análises e críticas, bem como bibliotecas escritas em repúdio à tal abordagem. Entende-se, então, que o cerne do que os acadêmicos querem é, portanto, tempo e paciência para estudar, pensar, discutir e publicar. Assim, o movimento “slow” (food, work, cinema, religion, etc.) chegou até à filosofia. No livro de dezembro de 2016, Slow philosophy: Reading against the institution (Bloomsbury), Michelle B. Walker, ao propugnar o “slow reading”, a autora afirma que, “de fato, a filosofia é a arte de ler vagarosamente – e isso se opõe inevitavelmente a muitas de nossas atuais práticas e demandas institucionais”. Por aqui, tornou-se famosa a posição de Marilena Chauí, professora da Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo, contra aquilo que ela chama, de maneira autoexplicativa, de “universidade operacional”.

Do outro lado, uma das principais e recorrentes críticas àqueles que, em tese, cultivam a vida intelectual entrelaçada à vida acadêmica é precisamente que não há vida intelectual genuína dentro da universidade, sobretudo quando examinamos as humanidades. Mesclada por vezes com um ponto de vista liberal que lhe confere uma demão de crítica econômica, boa parte da sociedade alimenta uma suspeita considerável sobre aqueles que veem a si mesmos como iluminados pagos – sempre de maneira insatisfatória – para pensar por todos os ignorantes. Mas para além desses, há ainda uma parcela de pessoas que cultiva uma vida de estudos fora da academia e para quem aquela suspeita geral aparece, não raro, cravejada de exemplos da decadência e da decrepitude que imperam na universidade. Para esses, a condição sine qua non da vida intelectual vivida em sua plenitude é, justamente, o seu afastamento da academia, sendo esta, atualmente, fonte e origem de tudo aquilo que é descaminho em se tratando da vida do espírito. A universidade é, antes, terreno fértil apenas para ideologias, egos inflados e charlatanismo.

Ora, não é preciso ser muito sagaz para ver pontos defensáveis e discutíveis na crítica à academia, tanto por parte daqueles que estão dentro dela, quanto daqueles que a acusam de fora. A denúncia do “quantitativismo”, bola da vez para explicar por que a universidade, em especial no que diz respeito às humanidades, tem falado tão pouco ao mundo extra muros, soa como uma retumbante falsificação, uma eloquente tergiversação. Se de fato fenômenos como “salami science” são preocupantes, por outro lado, quem ouve as lamúrias nos Congressos ou lê as análises preocupadíssimas com o futuro da filosofia, da pedagogia ou da sociologia – neste mundo em que a “dinâmica da produção” se apossou até da vida sagrada do intelecto –, dificilmente acreditaria que, caso fosse concedido àqueles reclamantes prazos e recursos indefinidos, surgiria uma nova Crítica da Razão Pura. De igual modo, quem não vê, ainda que através dos abundantes exemplos históricos, que estar na universidade ou passar por seus ritos não é condição necessária ou suficiente para uma vida intelectual plena e fértil? No entanto, a reserva de mercado da inteligência que os acadêmicos gostariam de eternizar só rivaliza com a ameaça recorrente nas falas dos escatologistas da intelectualidade, feita geralmente aos jovens, de que se aproximar da universidade é uma espécie particularmente indesejável de lepra (sendo uma das únicas vacinas eficazes, a matrícula em um dos incontáveis cursos oferecidos via internet).

Voltemos, então. ao exemplo de Parfit. Comecei este texto fazendo questão de mostrá-lo porque alguém como ele desmente todas as críticas fáceis, de todos os lados. O filósofo britânico foi um excelente e dedicado professor, ao mesmo tempo em que produziu incessantemente, mas não como quem faz avançar uma linha de montagem, e sim como quem colhe em si os resultados do trabalho realmente incansável. No entanto, para fazê-lo, Parfit e outros, alguns dos quais tenho o prazer de conhecer pessoalmente, assumem a vida intelectual naquela chave que costuma arrepiar os pós-modernos: como vocação profunda, que chegam a esvaziar e consumir a própria vida em vista do que a faz realmente ser vivida. E talvez vejamos aqui uma das razões pelas quais as humanidades significam cada vez menos no grande diálogo cada vez mais polifônico do mundo. Se, de fato, elas não podem – e nem querem – competir com as hard sciences no fornecimento de novos produtos, avanços tecnológicos e curas para doenças, suas contribuições talvez estejam exatamente na reflexão sobre o sentido de modos de vida, cujos fins se encontram em si mesmos. Ou, como dizia Aristóteles a respeito dos que primeiro filosofaram, em um saber cuja finalidade é tão somente fugir da ignorância. Ora, mas para isso não é possível ser “intelectual de carreira”. Quem vê nisso apenas uma confirmação da crítica à “universidade operacional” não compreende que quem vive a vida do espírito devotadamente enxerga como doação de frutos o que aqueles veem como exigência desmedida; e tampouco conseguem conceber a vida do intelecto como uma segunda natureza, ao invés de autossatisfação estética ou proselitismo ideológico.

Ora, mas exemplos como o de Parfit também ensinam algo aos críticos externos, uma vez que para eles, tais exemplos não existem – e não podem existir – mais na academia. A universidade atual é apenas o túmulo da vida intelectual e os departamentos de humanidades, com o terrível agravante de serem tradicionalmente o núcleo de tudo aquilo que se pode chamar de “formação superior”, seu pior epitáfio. Contudo, mesmo a contragosto de alguns, a academia continua a fornecer ainda hoje legítimos “filhos de Sócrates”, para fazer uso da expressão que é título do ótimo livro de Françoise Waquet sobre a relação entre mestres e discípulos na universidade.

Ao que parece, ficamos então entre o pior de dois mundos. De um lado, uma autocrítica preguiçosa que critica o cisco, mas deixa passar a trave do afastamento de sua vocação e impulso primeiros. De outro, um mau diagnóstico externo que incorre no mesmo engodo que pretende denunciar, ou seja, em benefício próprio – seja para vender-se, seja para inflar o ego –, ignora solenemente qualquer distinção entre o joio e o trigo. Os dois lados são, portanto, vítimas de um jargão que se repete quase de maneira autômata: o jargão da má academia. Cada um a seu modo, acadêmicos e contra acadêmicos remodelam tal jargão da crítica para que ele aponte para nada além do que, para ambos os lados, atende a seus interesses. E praticamente nenhum dos lados oferece um tratamento satisfatório de uma das principais questões de nosso tempo, a saber, o que fazer da autêntica vocação à vida intelectual em nosso mundo?

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