Tutaméia é o estranho nome do último livro de João Guimarães Rosa, publicado poucos meses antes da morte do autor, em 1967. O título reúne uma série de textos, os mais breves que Guimarães Rosa escreveu, e seu significado é explicado pelo próprio autor, que, a certa altura da obra, traduz termos inabituais ali usados. Tutaméia é tuta-e-meia, quase-nada, nonada. Não por acaso a primeira das várias estórias fala sobre o nada, que segundo Rosa, em rompante filosófico, o define como uma faca desamolada e sem cabo: já não é nada, muito menos faca. É o que não é mais. Não é o que foi.
Por subtração, de fato, é que se conheceria o nada. Na ausência disso e daquilo, retirando essa e aquela parte de uma coisa, aos poucos se contempla a negação completa, o nada. É pela extração que o nada é, pois, na falta daquilo que era. Nada é a privação, inclusive de toda determinação presente. A rejeição total da existência. Em outras palavras, a privação do é refere-se à eliminação de todo ser. Nada significa, então, a negação de si mesmo. Nada não é nada. Nada é nada. Nada é um não é.
Mesmo facilitado pela matemática da dedução, é irritante o quão difícil é definir o nada. No nada nada há. Mas o nada não é nada? Não? Se o nada não for nada ele não é ele próprio? Ora, o nada precisa ser nada para manter sua identidade, a estabilidade terminológica esperada de qualquer palavra significativa. No entanto, é não sendo que o nada é. Por isso o nada é antes de mais nada uma armadilha lógica; como antítese ou oposto de tudo, o nada é a ideia que destrói qualquer outra, até ela mesma. O nada é contraditório, uma antinomia natural, e nisso nada há de lógico. É ilógico.
Atrever-se a sequer pensar o nada é como acender duas velas, uma pra deus e outra pro diabo—é inadequado, tem eficácia questionável, é um contrassenso arriscado. Não falta cuidado a Alberto Caeiro, quando diz que “há metafísica bastante em não pensar em nada”.
O ser do Nada não pode ser dito
O caráter autodestrutivo da ideia de nada se tornou célebre pelo trabalho de Henri Bergson, citado, aliás, no labiríntico início do Tutaméia. No quarto capítulo de A Evolução Criadora (1907), Bergson contesta a utilidade da ideia de nada, acusando-a de pseudoideia. Bergson alega sobretudo a impossibilidade de conhecer aquilo que se contradiz, um argumento antigo. Quase nestes mesmos termos, desde a aurora da filosofia, a ideia de nada—ou de não-ser, expressão habitual da tradição ontológica—é objeto de recorrentes refutações.
Parmênides de Eléia é quem delimita os dois caminhos que estruturam o fundamento ontológico da filosofia: a via da verdade, que é o caminho da unidade do ser e a via da mera opinião dos mortais, o caminho da multiplicidade do não-ser. Dessa doutrina sobre o ser—localizada sobretudo nos fragmentos iniciais do poema Da natureza, de Parmênides—deriva que o nada, isto é, o não-ser, é não apenas inacessível, como também incomensurável, logo, incognoscível. O motivo lógico central dessa conclusão é provado pela mesma objeção de Bergson ao nada: o não-ser, na medida em que pretende expressar a existência da inexistência, é uma ideia autodestrutiva, depõe contra si mesmo, é contraditório. Essa proibição do segundo caminho, de acordo com Bárbara Cassin, diz respeito a não existência do não-existir, bem como da impossibilidade de conhecê-lo e, naturalmente, dizer algo sobre ele. Sobre o não-ser, enfim, devemos nos calar. Uma proposição similar ao conhecido corolário do Tractatus de Ludwig Wittgenstein, o imperativo do silêncio diante de algum ponto cego da razão.
O caminho do ser, legitima-se logicamente porque é não-contraditório. Em oposição a essa via, assim, o não-ser não se legitima logicamente por ser contraditório. O não-ser de Parmênides seria uma figura contraditória, o que conduz a impossibilidade lógica que implica em uma impossibilidade ontológica; ou seja, o ser é na medida que não contradiz, enquanto o não-ser não é porque contradiz. A possibilidade de dizer (o que não contradiz) é própria ao ser, ao passo que a impossibilidade de dizer (o que contradiz) é imprópria ao ser, caracteriza o não-ser. O pequeno poema de Parmênides, portanto, constatou Martin Heidegger, concentra a razão de toda ontologia se estruturar pela coincidência—presumível como autoevidente—entre ser, verdade e presença. Em detrimento ao aspecto positivo, cognoscível da existência, encontram-se determinados pelo não-ser toda negatividade própria ao que é contraditório, consequentemente, indizível: o reino do nada. Tal qual afirma Ernst Jünger em Sobre a Linha (1950), acerca do nada não há imagem visível nem conceito possível.
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O ser do Nada pode ser dito
Se Parmênides inicia a pergunta ontológica sobre os princípios da existência, Lucrécio, em Sobre a Natureza das Cosias, é responsável pela fórmula da impossibilidade da negação da existência: ex nihilo nihil fit, nada surge do nada. Para tudo, haveria uma causa física ou uma razão metafísica.
A despeito da natureza causal da existência, a universalidade de seus efeitos é assegurada por um movimento imparável que a tudo impõe o desgaste do tempo. Os físicos o chamam de entropia, o fenômeno da passagem, que produz a corrupção da matéria. A entropia nadifica, advertindo que aquela subtração definidora do nada não é apenas uma operação intelectual intencional, mas é parte concreta da realidade. O nada, o fim, a morte é o destino da matéria humana e não-humana. Nisso, Rosa concorda com Heidegger, que, dentre os vários feitos, coloca-nos diante do nada. Mesmo convicto de que o filósofo alemão havia escutado “o galo cantar só pela metade”, em uma rara carta ao amigo Vicente Ferreira da Silva, de 21 de maio de 1958, Guimarães Rosa esclarece: “o sein zum Tod, o Homem que é para a Morte, eu aceito sinceramente”. Tudo que existe tenderia à subtração, ao nada. Uma lição antiga, elaborada de modo próprio pelo pensamento asiático. O reconhecimento da transitividade dos estados gerias da realidade, annica, em páli, ou anytia, em sânscrito, a ausência de constância é considerada uma das marcas da existência, segundo o Caminho do Dharmma—princípio igualmente encontrado em variadas doutrinas do budismo japonês e chinês, nomeados muj? e wuchang, respectivamente. No Bhagavad-g?t?, a transitoriedade é a destruidora ou nadificadora. A estética japonesa chamou essa consciência da presença irreparável do nada de mono no aware, “uma interjeição que advém da profunda melancolia que sentimos diante da natureza passageira das coisas do mundo”, de acordo como Diogo C. Porto da Silva, que esmiúça a questão em Mono no Aware e sua relevância filosófica. Ao encontro dessa constatação melancólica, Guimarães Rosa, na referida carta, traduz essa filosofia numa sentença, pois “que a vida neste planeta é caos, queda, desordem essencial, irremediável aqui. Tudo fora de foco”.
Embora a lógica insista na esterilidade de se falar sobre o nada, já que o nada é a ausência também de si mesmo, nada haveria de negar que há um conteúdo profundamente concreto do nada, a morte. Em sentido reverso à operação de subtração que calcula o conceito de nada, há também o nada como a expressão da soma, da notória ampliação de tudo, até o ponto de não poder existir mais. O nada é o abismo inevitável que põe fim a toda matéria—o que se manifesta não apenas no âmbito existencial humano, mas do ângulo ontológico, enquanto fato igualmente antropológico e cosmológico: a nadificação da qual falou Álvaro de Campos, no seu mais célebre poema, “Tabacaria”:
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Não sou nada,
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Com a morte a pôr umidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.
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O não-ser do Nada
Entre os primeiros filósofos da antiguidade, Górgias de Leontinos em seu Do não-ser ou da natureza, texto que sobreviveu em duas versões, uma por meio de Sexto Empírico, outra anônima, exibe as incalculáveis dificuldades em lidar com a meontologia—o conhecimento do não-ser, da não existência, do nada. O pequeno tratado de Górgias, na verdade, parece invalidar qualquer tentativa de provar alguma ontologia, seja ela positiva ou negativa. De maneira absolutamente cética, Górgias nega a existência do não-ser, concordando com o mencionado argumento de Parmênides, mas, contra os eleatas, nega também a existência de qualquer ser, à medida que não se pode delimitar nenhum critério de verdade consistente para a descrição do ser, tal como em relação ao não-ser. Maria Cecília de Miranda Nogueira Coelho, em Retórica, filosofia e lógica: verdade como construção discursiva em Górgias, artigo de 2010, sublinha a analogia final do argumento do pequeno tratado, segundo a qual não se pode ver o audível, nem ouvir o visível, do mesmo modo não se pode descrever aquilo que não é palavra, representação, mas ser, dado que os seres não são palavras. Haveria um hiato intransponível entre as naturezas do ser e suas formas, o qual se manifestaria na intraduzibilidade da existência concreta em concepções abstratas, em formas, em palavras. Não haveria equivalência possível entre forma e objeto, assumidas as diferentes condições de cada existência. Por conseguinte, se em última instância a palavra deseja refletir algo real, muito antes da chamada virada linguística, o ceticismo epistemológico de Górgias recomenda cautela, posto que toda linguagem estaria fadada ao fracasso.
Aristóteles, fundador da ciência sistemática do “ser enquanto ser”, tão somente desconsidera os argumentos de Górgias. Para o estagirita, assim como para parte considerável da tradição filosófica, o tratado Do não-ser, nas palavras de Maria Cecília Coelho, seria uma mera “paródia de problemas ontológicos”; um aglomerado de frívolos jogos linguísticos, feito de um mero sofista ou retórico. Em contrapartida, há quem reavalie o legado de Górgias como a premissa radical daquilo que viria a ser a filosofia. É o caso de Agostinho da Silva, uma vez que que sem a insegurança exposta pela lógica de Górgias, sem a apresentação da incoerência ontológica essencial da epistemologia, não haveria um Sócrates. Da demonstração dos paradoxos inerentes ao ato de pensar a existência e a não-existência, pois é contraditório cogitar que o ser e o nada podem coexistir; das evidências da incongruência entre os seres e suas representações; Górgias, em suma, refuta qualquer identidade para o não-ser. O nada só pode ser por uma razão ilógica, não sendo. O nada não é nada.
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Nada é Nada
É conhecida a fórmula bíblica que descreve a criação do universo a partir do nada—sem forma e vazio, caos. De maneiras diferentes se traduziu essa passagem do segundo verso do primeiro livro bíblico, ainda que, para explicar o mistério teológico da cosmogonia, todas as traduções ressaltem o caráter incomensurável e incognoscível da ideia de nada. Diversos registros, dos campos da teologia à lógica, mostram que a incomensurabilidade do nada é consistente. Nada não é nada, logo, é nada. Quer dizer, o nada é, ao mesmo tempo, ele mesmo e sua própria negação, é falso ou incoerente do ponto de vista formal. Não parece, com efeito, linguisticamente possível organizar uma identidade para o nada sem que uma de suas premissas se torne um absurdo.
Justamente da perspectiva lógica, contudo, não se pode trivializar a classe de um conceito. É preciso delimitar o que Rudolf Carnap chamou de framework do objeto, o domínio preciso daquilo a que se refere. A avaliação do nada instrui que a ordem do não-ser não se submete ao mecanismo lógico, o seu domínio é a ontologia. Mais do que uma classe da lógica, o nada é um princípio teorizado pelo ponto de vista metafísico sobre a existência. Por ser um teorema de uma das características ostensivas da existência, a transitoriedade dos estados gerais da matéria, a nadificação, o processo ou advento do fim, compõe o domínio ontológico da realidade. Por essa razão, o tratamento adequado do nada como ideia ontológica é executado pela teoria, método particular para se dizer sobre aquilo que escapa à régua da empiria. A teoria objetiva tornar visível ou cognoscível o pensamento por meio de abstrações. Nestes termos, a dedução ou indução teórica alcança o nada não como intensidade de algo—em detrimento de uma quantidade, isto é, muito ou pouco—ou como indeterminação pronominal, sinônimo de algo vago ou impreciso. Nada é uma propriedade final do ser, na medida que tudo é sendo, nadificando-se. Importa não ser (1999), conforme o título dado ao ensaio dedicado à (im)passividade do “deixar-se” na teologia de Mestre Eckhart, do Frei Hermógenes Harada—texto publicado por ocasião de uma homenagem ao professor Emmanuel Carneiro Leão. Há virtudes no nada. Não ser, diz o frei, nada mais é que se deixar ser.
Deste ponto de vista, no décimo quinto capítulo dos Versos Fundamentais do Caminho do Meio, N?g?rjuna realiza um exercício semelhante ao de Parmênides e Górgias. Ele examina o ser e o não-ser como princípios antípodas inconciliáveis, mas que, isoladamente observados, possuem suficiência lógica. Em vista disso, diferentemente da escolha pelo cainho do ser de Parmênides e do ceticismo de Górgias, para N?g?rjuna, o sábio não adere nem as doutrinas da existência nem as doutrinas da não-existência, muito menos nega a realidade de ambas doutrinas, mas apura com atenção o ser e o não-ser, sem o prejuízo lógico da inconsistência. Admite-se aquilo que pode ser observado como causa, ou causa aquilo que pode ser observado como outro aspecto de um mesmo—o tornar-se ou a aniquilação da permanência é o efeito da contraditória existência do não-ser. Além do mais, da afirmação verdadeira não decorre que seu oposto seja necessariamente falso. O nada não é o falso oposto de tudo, mas um princípio.
A conciliação ontológica de N?g?rjuna, outrossim, porta uma lição ética: o ceticismo dogmático conduz à ingenuidade, o que de nenhuma maneira revela a prudência almejada. Ao contrário, frente ao categórico silêncio exigido pela carência de razão do nada, então, a hesitação lógica é penalizada pela simplicidade teórica da real contradição da existência, a qual requer somente um sincero interesse para contemplá-la.
No domínio ontológico, e a um passo atrás do distinto axioma aristotélico da não-contradição, mesmo que logicamente contraditório, ser e não-ser convivem. Ser e não-ser, aspectos opostos da existência, de posições divergentes e a um mesmo tempo, configuram o processo em que as duas forças existenciais da matéria, a criatividade e a aniquilação, por serem contrárias, compensam uma à outra. Com efeito, a soma ou mera disposição aritmética das características positivas e negativas da existência tendem a zero. O não ou o nada matemático, o zero, é um valor de equilíbrio que, embora vazio, significa o intervalo que formaliza toda possibilidade—o zero é a única representação linguística plausível para algum início. Equilibram-se nele, ser e não-ser. Disso resultam a imagem estática que torna visível a realidade; a paradoxal imagem móvel da eternidade platônica; a ordem finita do que é infinito; o tempo como princípio que faz nascer e dissolver a existência, conforme Anaximandro.
Toda imagem imediata da existência seria a aparente ausência dessas contradições; com o que concorda Tutaméia, já que “a coisa que a gente vê é errada”.
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