por Luiz Bueno
O filósofo alemão Franz Rosenzweig (1886-1929) é considerado por alguns especialistas como um dos mais importantes pensadores judeus do século XX. Apesar de sua morte prematura e de sua obra ter sido obscurecida com a ascensão do nazismo na Alemanha, seu pensamento influenciou importantes filósofos como Martin Buber, Walter Benjamin, Emmanuel Levinas, para citar apenas alguns. A redescoberta de sua obra ocorreu fora da Alemanha devido especialmente ao trabalho de divulgação realizado nos EUA por seu aluno, amigo e biógrafo, Nahum N. Glatzer, a partir da publicação, em 1953, do livro Franz Rosenzweig – His Life and Thought. Depois disso, também na França, Alemanha, Espanha, Israel e outros países, sua obra passou a ser largamente estudada.
Uma primeira fase de desenvolvimento de seu pensamento culmina com a sua tese de doutorado (Hegel e o Estado), finalizada em 1913 e publicada em 1918. Mas, a obra que o consagrou como grande filósofo foi A Estrela da Redenção, de 1920, fruto da fase madura de seu pensamento. Em 1913, o autor reverte sua decisão de se submeter ao processo de assimilação cultural e resolve permanecer judeu. A partir de então, ele passa a incorporar categorias da tradição filosófica judaica ao seu pensamento. Esses novos elementos garantirão o grau de profundidade e originalidade que o tornaram o pensador consagrado que conhecemos.
A originalidade de A Estrela da Redenção e de seu “novo pensamento” está em seu afastamento do hegelianismo. O filósofo incorpora categorias originárias da reflexão tradicional judaica e, munindo-se delas, encara os desafios do seu tempo com recursos que, de outra forma, não lhe estariam disponíveis. Esta característica dupla de seu pensamento, de ser filosófico e de ser judaico, capacita-o a dialogar com a religião e com o mundo secular. O seu “novo pensamento”, como ele o denomina, exige um filósofo que é ao mesmo tempo um teólogo e vice-versa.
Por que esse duplo aspecto de seu pensamento? Por um lado, pensara Rosenzweig, a filosofia já não podia mais ser produzida sem considerar Nietzsche, o que significaria haver tantas perspectivas filosóficas quanto havia filósofos, que a filosofia se identificaria com o próprio filósofo. Sendo assim, o risco era de que esta sucumbisse ao subjetivismo. Não sendo mais possível sustentar o racionalismo nem o idealismo, somente restara o perspectivismo e seu subjetivismo, cuja consequência seria a deslegitimação da filosofia como conhecimento rigoroso. Por outro lado, a teologia, que tanto tentara se desvencilhar da revelação e do milagre para ser reconhecida como disciplina racional, teria sucumbido a um objetivismo que a transformara em uma disciplina pseudocientífica, que nada mais falava à experiência humana, perdendo o âmbito da interioridade que fazia da religião uma dimensão tanto divina como humana; sua pretensa objetividade a livrara da experiência subjetiva mas a relegara à condição de produção intelectual secundária.
O novo pensamento de Rosenzweig enxergara na subjetividade descoberta pela filosofia o caminho de resgate da teologia, para que esta voltasse a ser uma forma de conhecimento que abrangesse a experiência subjetiva e singular dos seres humanos. Ao mesmo tempo, a objetividade da teologia recolocaria a filosofia em seu lugar, de disciplina do pensamento capaz de enxergar o mundo e compreendê-lo com algum grau de objetividade e rigor, sem recair nas armadilhas do racionalismo e do idealismo.
Para tanto, a filosofia, que assistira a derrocada do projeto idealista mediante a perspectiva da existência singular, deveria alcançar a plena consciência de que o não-saber — e não o todo, a totalidade do mundo — seria seu ponto de partida. No início da primeira parte de A Estrela da Redenção, Rosenzweig desenvolve uma meditação sobre a morte, na qual ele evidencia como o indivíduo singular (aquele singular trazido à tona por Nietzsche), ao pensar sobre sua morte, descobre que esta é única e não pode ser dissolvida ou subsumida em qualquer forma de totalidade do pensamento, como aquela que o idealismo alemão postulava. Se uma morte individual não pode ser reduzida a, ou dissolvida em, uma morte “em geral”, se cada morte é uma morte singular, se minha morte é apenas minha e de mais ninguém, como poderia permanecer a ideia de uma totalidade, incapaz de abarcar esta morte? Não há totalidade substancial, metafísica, há apenas o mundo e nele os singulares existentes. Os singulares se ordenam mediante suas relações recíprocas, não por força de alguma determinação de sua “essência”. Conhecer o real é reconhecer estas relações. Toda descrição metafísica de uma totalidade essencial seria apenas uma forma de fuga da terrível e inescapável consciência da singularidade da morte.
Sendo incapaz de descrever qualquer tipo de essência, o pensamento deve começar pelo reconhecimento de que o fundo da realidade é desconhecido, mistério inalcançável pela razão, que apenas pode falar dos existentes que diante de si aparecem.
O começo do conhecimento é, portanto, o não-conhecimento. O começo do saber sobre o real não é o “todo” do qual tudo pode ser deduzido e no qual tudo deve ser subsumido. O conhecimento do real inicia-se pelo reconhecimento não de um todo, mas dos “algos” que aí estão.
Ora, este tipo de investigação racional é perfeitamente reconhecível na perspectiva de um filósofo. Mas, como reconhecer esta linha de pensamento em um teólogo, um sujeito que legitima seu pensamento a partir da sua tradição judaica? Mas, é exatamente a tradição judaica que permitirá a Rosenzweig enxergar essa limitação estrutural da razão humana. A tradição judaica reconhece a incapacidade da razão de dar conta daquilo que ultrapassa a imediatidade da dimensão mundana de nossa existência. Não nos é possível dar razões últimas porque elas nos escapam. Não é possível afirmar fins últimos porque a razão humana por si própria não sabe se há algum destino final. Razões últimas, fins últimos, somente podem ser ditos e justificados por aquele que seria a própria fonte da razão e dos fins: o Criador. O homem, ao se saber mortal, ao se saber singular, ao se saber incapaz de dar razões últimas, descobre a sua condição mesma: a de criatura. E da mesma forma descobre que o mundo é da mesma natureza: criatura. O ato de colocar o homem e o mundo na existência somente pode ser concebido na categoria do milagre, isto é, de algo que somente está aí por um ato de criação. Mundo e homem não têm autonomia ontológica alguma. O racional não é o real. O real não é idêntico ao racional. O real existe por força de um ato. O fundo do real é o nada assim como o fundo do conhecimento é o mistério. E do nada o mundo é retirado por um ato, na força do instante.
Sendo assim, este homem se descobre mergulhado em um mundo do qual não pode dar conta. A história não é mais considerada esfera autônoma, mas apenas como o âmbito em que os homens cometem seus erros, seus pecados. O que se dará no futuro é algo que ultrapassa o alcance da razão. Aliás, o futuro não é do âmbito do conhecimento, mas, apenas da ordem da esperança. Esperança porque o homem somente pode falar de futuro pois sua realidade se apoia em uma “promessa”: a “redenção”. Progresso? Movimentos históricos necessários? Não. Apenas contingência, temporalidade e esperança.
Note-se que, mediante o estado de fragmentação que acometera a filosofia, dada a implosão do idealismo, Rosenzweig enxerga na tradição filosófica judaica um patrimônio consolidado de reflexão, uma fonte estável de categorias de pensamento necessárias para um pensar construído sobre alicerces sólidos e caracteristicamente não-metafísicos.
Estar diante do nada não é motivo de desespero para a razão de um homem que se reconhece como criatura. Ter esperança, da mesma forma, não é postura ilegítima para o homem que reconhece na sua tradição a origem da promessa da redenção. Estar diante da contingência é fator de sanidade para a razão que deve lidar cotidianamente com um real que lhe escapa. A contingência e a temporalidade previnem a razão de adoecer do mal do essencialismo, da metafísica. O reconhecimento do valor da existência do homem diante de si mesmo bem como diante do outro — que Rosenzweig chama de “o próximo”–, deriva daquela descoberta de si como singularidade, que se deu ao ser despertado do solipsismo pelo chamado do Tu divino, que o comanda a verter-se para fora de si mesmo na experiência do seu amor. Somente o amor do Tu divino desperta o homem para sua singularidade e para a descoberta do outro, que também é um tu. Esta é a “revelação”, que não é apenas o fato histórico que cria o povo judeu; ela é a experiência sempre renovada do homem que se descobre um singular e criatura. E a relação fraterna com o próximo, que estabelece a comunidade, é o caminho que constrói a antecipação deste futuro prometido na forma da redenção.
Franz Rosenzweig oferece um pensamento que lida com a singularidade, com a contingência, com a temporalidade, proporcionando uma perspectiva para a experiência da existência humana, em sua condição precária, que alicerça a capacidade de enfrentar os desafios existenciais em que estamos mergulhados, particularmente em nosso tempo, tão conturbado e tão angustiante para a maioria das pessoas.
A obra de Franz Rosenzweig, apesar de sua complexidade e sua dificuldade inerentes, é uma fonte de reflexões muito fértil, capaz de oferecer perspectivas de grande proveito para nós do século XXI.