por Gabriel Ferreira
Um espectro ronda as Humanidades – o espectro da sua inadequação. Em um mundo de iPhones, sondas intergalácticas e de ressonância magnética, parece não haver espaço para uma abordagem, seja da experiência humana no mundo, seja daquilo a que, grosso modo, nos acostumamos a chamar de realidade, que não seja gestada e desenvolvida no seio daquelas áreas abarcadas pela sigla STEM, em inglês (Ciências, Tecnologia, Engenharias e Matemáticas).
Se é assim para o senso comum, nas universidades pelo mundo a situação não é muito melhor. Em setembro do ano passado, Hakubun Shimomura, ministro da educação japonês, enviou um memorando às universidades do país solicitando que convertessem seus departamentos de humanidades – que incluem cursos como filosofia, sociologia, antropologia, mas, por lá, também direito – em organismos que “sirvam melhor às necessidades da nação”. E os exemplos se multiplicam nos EUA e na Europa. Algumas universidades, como a de Pittsburgh, suspenderam a admissão de novos estudantes para cursos de Letras e Ciências da Religião. A de Middlesex, em Londres, fechou o seu curso de Filosofia. Por aqui, a recente discussão acerca das mudanças no ensino médio – já tratada por Andrea Faggion neste mesmo Estado da Arte – também deu ao tema cores mais vivas para nós, brasileiros. O fato é que, embora pulsante e atual e com desdobramentos visíveis, a discussão não apenas vai além da reforma de currículos ou do fechamento de departamentos universitários, como remonta a um quadro que não é particularmente novo.
Para entender o que se passa com mais propriedade, pode ser útil ver o processo que se iniciou já no século XIX e que pode ser muito bem caracterizado pela expressão, utilizada por historiadores da filosofia como Léo Freuler e Frederick Beiser, “crise de identidade da filosofia”. Com pequenas exceções, ao menos de Aristóteles (séc. IV a. C.) a Hegel (falecido em 1831), a filosofia não apenas era vista como o centro gravitacional daquilo que viríamos a chamar de Ciências Humanas ou Humanidades, mas era tida como fundamento praticamente inamovível e condição de possibilidade para todas as ciências. A partir de meados do século XIX, isso alterou-se radicalmente. Com o desenvolvimento crescente dos diversos ramos das ciências naturais, bem como da psicologia, fisiologia e mesmo da história, o papel da filosofia como mãe e guardiã das ciências específicas simplesmente ficou desacreditado. Em 1870, o filósofo Jürgen Bona Meyer resumiu bem a situação: “As filhas agora demandam independência de sua mãe comum, e elas não mais sofrem caladas quando são supervisionadas ou corrigidas; preferem que sua velha e morosa mãe deixe-se repousar em seu túmulo”. Não apenas a filosofia e seus métodos mostravam-se insuficientes para a gloriosa tarefa de fundar e assegurar a certeza das ciências, como emerge, de uma vez por todas, a questão fundamental: frente a todo o desenvolvimento e independência das ciências específicas, há ainda lugar para a filosofia na explicação do mundo e da experiência humana do mundo? Que o escopo de tal pergunta inconveniente se espalhe para as demais áreas das famigeradas Humanidades é, com perdão do trocadilho, mais do que natural.
O que apontei até aqui, ainda que de maneira esquemática, é uma introdução suficiente para nos trazer àquilo que é o ponto nevrálgico deste e do meu próximo texto no Estado da Arte e, por que não, de todos os meus textos possíveis por aqui. Se é duvidoso que haja, portanto, espaço para alguma contribuição da filosofia para como vemos o mundo, há espaço, igualmente, para a filosofia no debate público? Dito de outro modo, se não há lugar para uma explicação, descrição ou compreensão filosófica daquilo que chamamos mundo, qual lugar haveria para a filosofia, agora não apenas nas universidades e nas escolas, mas nos jornais, blogs, portais e redes sociais? É essa questão que está por trás de um recente artigo de Patrick Baert, chefe do departamento de Ciências Sociais de Cambridge, que escreveu um capítulo especificamente sobre a participação dos filósofos, em um livro sobre a presença dos assim chamados intelectuais na esfera pública (Public Intellectuals in the Global Arena: Professors or Pundits?, University of Notre Dame Press) que está prestes a sair.
Embora de caráter evidentemente sociológico, o artigo de Baert fornece algumas boas pistas. Segundo Baert, o século XX conheceu três espécies de participação de filósofos na esfera pública, a saber, o autoritativo, o especialista e o dialógico. O autoritativo garantia sua penetração no debate devido ao reconhecimento geral de sua autoridade intelectual e moral que se impunha como justificativa da relevância de sua participação. Os exemplos paradigmáticos desse tipo são, justamente, dois dos mais influentes filósofos do século passado, a saber, o francês Jean-Paul Sartre e o britânico Bertrand Russell; se tal influência foi ou não benéfica é outra história. Thomas Sowell, em seu excelente Intelectuais e sociedade, fornece um bom arrazoado sobre os dois. O fato é que, cada um a seu modo e com seu escopo de ação, ambos foram exemplos de um tipo de filosofia pública que, como o próprio Baert reconhece, embora tenha sido muito influente, simplesmente não tem mais espaço. Pelas razões apontadas acima, o filósofo não goza mais da credibilidade e do prestígio que lhe podiam ser atribuídos por olhar o mundo e a sociedade “de cima”. Assim, o artigo apresenta então o segundo tipo, o especialista, que deriva sua credibilidade na arena pública precisamente por ser reconhecidamente um especialista em sua área. Foucault, em suas manifestações a favor de reformas do sistema penitenciário a partir de suas reflexões consignadas em Vigiar e punir, é um dos principais exemplos arrolados por Baert. No entanto, pelas mesmas razões que enfraqueceram a postura autoritativa, o especialista filósofo é um especialista suspeito; é um especialista de armchair. Por fim, do crepúsculo dessas duas figuras, surge o tipo dialógico. Ao contrário dos dois anteriores, o tipo dialógico não se apresenta a partir de uma posição superior em relação ao seu público, mas coloca-se em pé de igualdade discutindo e debatendo as questões simplesmente como um interlocutor a mais. Para Baert, as incursões públicas do filósofo americano Richard Rorty seriam exemplos dessa postura.
Com poucas adições, o quadro que emerge do capítulo de Patrick Baert sobre o papel do filósofo na esfera pública parece apontar então para que sua participação, para além de sua mais evidente contribuição nas aulas e universidades, dá-se por excelência naquilo que podemos chamar de tomada de posição. Em geral, ao escrever ou falar, o filósofo deve, sobretudo, posicionar-se sobre um problema, tema ou questão e argumentar, defender ou criticar este ou aquele lado. De fato, nomes atuais como Alan Badiou ou Slavoj Žižek são bons exemplos de dialogadores-posicionadores.
Todo esse quadro final mostra contudo outro aspecto extremamente importante. Atualmente, o campo que por excelência se abre a esse tipo de participação baseado primordialmente na tomada de posição é o da política. Como se pode facilmente ver, no entanto, o filósofo perde então seu espaço próprio ou, ainda, em nada se difere do cientista político ou social e, portanto, nada teria de particularmente novo a acrescentar ao debate público, sendo apenas mais um interlocutor a manifestar sua tomada de posição. Seria esse, por fim, o lugar – que é, praticamente, um não-lugar – destinado àquele acostumado a pensar grandes questões sub specie æterni? Ou ainda, haverá ainda alguma função e utilidade pública para alguém treinado ou versado em fazer filosofia? Continuaremos a explorar esse problema no próximo artigo.