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O que resta da Metafísica após a crítica aos universais
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Em 20 e 27 de janeiro de 1957, dois pequenos ensaios assinados por Alberto Guerreiro Ramos, publicados no Jornal do Brasil, Considerações sobre o Ser Nacional e Considerações sobre o Ser Histórico, já afirmavam o que Roberto Schwarz, anos depois, popularizaria entre os intelectuais brasileiros: somos feitos de um punhado de ideias fora do lugar. Alimentamo-nos do conhecimento estrangeiro, particularmente europeu, vendido como conteúdo universal. Grosso modo, o que tal ideia põe em questão é a imprecisa correspondência entre a Europa e o universo como traço distintivo e amplamente reconhecido do processo moderno de colonização. Por isso, sugere Guerreiro Ramos, é nossa tarefa precisar a verdade ou a falsidade daquilo que se supôs e ainda se supõe universal — discriminar os significados de todo conceito para o nosso contexto. A crítica, isto é, a avaliação dos limites do domínio das ideias europeias, tornou-se, então, o procedimento exemplar de qualquer reflexão, espécie de modelo de inteligência.
É consequência disso que a associação de algo à universalidade seja objeto de desconfiança; sobretudo porque a mencionada paridade entre a cultura europeia e o universo estimulou uma longa história de dominação do mundo não-europeu, processo ainda em curso. Há, pois, um compreensível mal-estar quando se fala em temas universais. No debate especializado das ciências humanas, há até mesmo certo consenso sobre a artificialidade de qualquer universal — do historicismo moderno à antropologia filosófica, de Jacques Derrida a Naoki Sakai, não faltam bons argumentos para negar a unidade da realidade não apenas ética, mas também factualmente. Dessa perspectiva, a desconstrução do universo europeu, no qual já nascemos imersos, seria o método para o procedimento crítico. Diante disso, para que a humanidade faça justiça ao seu caráter múltiplo, para que as diferentes naturezas não sejam mais autoexcludentes, aquilo que estabeleceu os princípios do pensamento europeu ou ocidental, a Metafísica, precisou ser contestada.
O que poderia restar da Metafísica, por conseguinte, não é facilmente identificável. Essa dificuldade se origina, principalmente, da polissemia original do termo Metafísica, que pode se referir à lógica, à ontologia, à antropologia, à teologia, e até mesmo a sistemas políticos. Não é um equívoco raro, nesse sentido, a equivalência entre a investigação metafísica e a teologia cristã — ficando esquecidas as metafísicas judaica, islâmica, chinesa, hindu, etc. Além do mais, entre distintas metafísicas, pouco pode haver em comum. É o caso, por exemplo, do que se vê num pensador cristão copta como Zera Yacob e um assírio, como Rabba B?bay. Contudo, indiferentemente ao padrão metafísico em foco, não há como negar a necessidade de reexaminar os parâmetros daquilo que chamamos real sem alimentar o humanismo etnocêntrico que guiou a Metafísica, particularmente no Ocidente — embora também não faltem exemplos de mau uso de juízos metafísicos no âmbito do que se convencionou chamar de Oriente.
Do ponto de vista da filosofia moderna, a conhecida crítica de Immanuel Kant à Metafísica, ao vinculá-la a uma investigação a priori impossível sobre dados suprassensíveis, logo, inacessíveis à razão, restringe sua referência a ontologia — uma tendência que continua atual, portanto, no conflito entre as respostas físicas e metafísicas a perguntas de ordem existencial. Após a crítica kantiana, não obstante, sobrevive a lógica. Mesmo que a multiplicidade e a unidade da existência estejam em causa, não decorre da crítica aos universais nenhuma resolução da pergunta sobre a essência da realidade, como múltipla ou una: o nó metafísico básico. A afirmação e exploração da multiplicidade da realidade, programa teórico do procedimento crítico, ao contrário de resolver essa questão fundamental da Metafísica, adicionou mais variáveis quanto à natureza da existência. Em outras palavras, o caráter uno de muitos aspectos da realidade revelou-se múltiplo após questionados pelo método crítico; o que longe de determinar o fim da Metafísica, mantém a relevância progressiva da sua aporia e dilema principal. Considerar que a metafísica do gênero europeu é falsamente universal não implica, enfim, em desconsiderar que persistem questões metafísicas, uma vez que há características da existência que são abstratas e incertas, não possuem medida concreta ou sentido imediato, não são da alçada do método científico, e nem por isso deixam de motivar a realidade.
Logo na abertura de O problema da contingência, de 1935, Sh?z? Kuki declara que a Metafísica perdura como disciplina relevante, precisamente, porque não restringe o seu foco à unidade das coisas que existem; quer dizer, a Metafísica não se reduz ao estudo da unidade do ser, mas também procura entender o papel existencial do não-ser, das diferenças, da multiplicidade. A observação estritamente física da realidade logrou um alto grau de controle técnico sobre muitos fragmentos unitários do ser, mas não explicou a razão dos seus múltiplos, muito menos esclareceu o advento daquilo que produz a multiplicidade, a saber, a contingência — tarefa da Metafísica. Se a existência significasse tão somente a submissão a uma cadeia física causal e concreta, se não houvesse a incerteza e o abismo do nada, sempre à margem de tudo que há, não haveria angústia ou mistério que a mente humana não fosse capaz de explicar e dominar de pronto. Não haveria caos nem liberdade, axiomas ontológicos que, não por acaso, instituem a ideia metafísica da multiplicidade existencial.