por Tiago Pavinatto
“O estado é laico, mas esta ministra é terrivelmente cristã.”
(Damares Alves, Ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos)
“nós somos terrivelmente cristãos. E esse espírito deve estar presente em todos os Poderes. Por isso, meu compromisso. Poderei indicar dois ministros para o Supremo Tribunal Federal. Um deles será terrivelmente evangélico.”
(Jair Bolsonaro, Presidente da República)
Há quase uma década, uma das leituras mais descompromissadas que fiz foi a de um romance do inglês Philip Pullman, The good man Jesus and the scoundrel Crist, traduzido pela Companhia das Letras naquele mesmo ano de 2010 como O bom Jesus e o infame Cristo. A obra divide Jesus Cristo em dois, quer dizer, nos irmãos gêmeos Jesus, um homem com autoridade espiritual genuína, e Cristo, um ser frágil e de alma imaginativa, cujas dúbias intenções se revelam quando este tenta, sem sucesso, influenciar aquele, que parecia mais interessado na espiritualidade e na palavra do que em realizar milagres e exorcismos. Diz o infame Cristo ao bom Jesus:
“Mas deves levar em conta a influência que podes ter – influência sobre as pessoas comuns, simples, ignorantes. Elas podem ser conduzidas ao bem, mas precisam de sinais e assombros. Precisam de milagres. Belas palavras convencem a mente, mas milagres falam diretamente ao coração e à alma. Não desprezes o potencial que Deus nos deu por natureza. Se uma pessoa do povo visse pedras se transformando em pães, ou doentes sendo curados, isso lhe causaria tamanha impressão que seria capaz de mudar-lhe a vida. Acreditaria em qualquer coisa que tu dissesses dali em diante. Seguiria teus passos até o fim do mundo.” (Op. cit., p. 36)
Agindo como coach do irmão Jesus, o bom homem, que se preparava para debater com um legisla, Cristo, o infame, como um expert na erística de Schopenhauer, sugere a manipulação emocional do público como técnica de persuasão para vencer o debate mesmo deixando sem resposta a questão da doutrina.
Outro personagem intrigante integra a estória: um grego que vive a aparecer para Cristo sem nunca revelar a sua identidade. Uma de suas falas é reveladora de seu conluio com Cristo para escrever a história do Reino de Deus valendo-se do modelo Jesus:
“Aquilo que deveria ter sido tem mais serventia ao reino do que aquilo que foi. (…). Existe o tempo e existe o que está além do tempo. A história pertence ao tempo, mas a verdade fica além dele. Ao escrever sobre como as coisas deveriam ter sido, estás permitindo à verdade entrar na história.” (Op. cit., pp. 74-75)
Essa ficção (lida, refletida, assimilada, mas deixada de lado logo na sequência) voltou a povoar meu pensamento após todos esses longos anos. E voltou quando decidi me aventurar em alguma leitura de Platão, de seus textos mais fundamentais e chaves para o seu entendimento de bem, verdade e felicidade. Guiado pela bondade intelectual e paciência do Professor Doutor Eduardo Wolf, uma luz se acendeu após a leitura de Górgias, Protágoras e A República. Tal luz, na verdade uma suspeita, ganhou significativo relevo após a leitura complementar de A Sociedade Aberta e os Seus Inimigos – Primeiro Volume: O Sortilégio de Platão, de Karl Popper, bem como em decorrência da análise de trechos de Platão em As Leis e das razões pelas quais Sócrates, mestre e protagonista (representado ou não o personagem de acordo com o homem) dos diálogos de Platão, foi condenado à morte pela Democracia ateniense.
Sobre a filosofia de Platão, importa notar que ela se desenvolve para estabelecer um sentido único de bem, de verdade. Acrescente-se a isso a invenção de um verdadeiro axioma (sem nenhum argumento que o sustente, portanto) sobre esse bem estar intrinsecamente ligado à alma das pessoas, voltado para os arranjos e ordenamentos da alma, para a justiça e a temperança, e temos, inegavelmente, a receita para o estabelecimento de um monoteísmo.
Seria mera coincidência que o surgimento dos primeiros escritos judaicos (Torá) seja contemporâneo à Platão entre os séculos IV e V anteriores à era cristã? Caso não seja, poderia o monoteísmo ter bebido dessa fonte grega?
Para além da supremacia de um único bem, uma única verdade da mesma maneira que a supremacia universal de um único Deus, a filosofia platônica parece não inspirar somente o monoteísmo, já que ela lança um verdadeiro método de convencimento ou dominação que, se não foi utilizado pelo judaísmo, foi inteiramente assimilado pela Igreja – e a chave desta afirmação encontra-se em Sócrates.
Tomando a figura histórica de Sócrates através dos relatos de outros autores contemporâneos a ele e mesmo da personalidade que emerge do personagem Sócrates de uma primeira fase da obra platônica, muito anterior e diferente do personagem Sócrates que emerge em A República e n’As Leis, temos o retrato de um homem questionador e, à sua maneira peculiar, humilde, perdido em pensamentos, afundado em intermináveis questionamentos, dominado pela dúvida e que admite só saber que nada sabe.
O Sócrates histórico, ao mesmo tempo que em não se contenta com nenhuma resposta simples, condena a persuasão mediante mero discurso, carente de ciência, de razão, mas belo e convincente pela técnica da retórica, que infunde crença sem saber e nenhum conhecimento e é propícia a quem pretende cometer uma injustiça; ele prefere sofrer a cometer uma injustiça: ao afastar de si Cálicles, garante que, sempre e em qualquer hipótese, é mais vergonhoso cometer do que sofrer uma injustiça:
“eu afirmo, Cálicles, que o mais vergonhoso não é ter a têmpora rachada injustamente, ou ter a minha bolsa ou o meu corpo lacerados, mas é pior e mais vergonhoso rachar a minha têmpora e lacerar as minhas propriedades injustamente, ou roubar-me, escravizar-me, violar a minha casa” (PLATÃO. Górgias. São Paulo: Perspectiva, 2016, p.391).
Tanto prefere sofrer a injustiça que perde a própria vida para que sua palavra perdure.
Muito diferente é o Sócrates que emerge especialmente em A República e n’As Leis. Se, já em Górgias, Platão dá uma pista dos rumos que o personagem estava a tomar quando faz um elogio ao uso da persuasão e da força por um bom político para que sejam domados os apetites dos homens e estes se tornem melhores cidadãos, naquelas duas obras seminais já nos deparamos com um Sócrates autoritário, que alega ser, por ser filósofo, o único capaz de contemplar o verdadeiro bem, a verdade, e, portanto, também o único capaz de ministrar felicidade ao povo; povo que só será feliz quando internalizar a aceitação de sua realidade social de nascimento, conformando-se a ela de maneira absoluta de modo que não queira transpô-la.
Para esse Sócrates, dentro da sua descrita cidade ideal regida por uma constituição ideal, deve vigorar um autêntico e intransponível sistema de castas em um verdadeiro reinado autoritário cujo trono ele entrega pra si próprio, o Filósofo-Rei.
Num paralelo, seria coincidência pensar que a memória de um Jesus histórico, um “zelota revolucionário que atravessou a Galileia reunindo um exército de discípulos com o objetivo de estabelecer o Reino de Deus na terra, o pregador magnético que provocou a autoridade do sacerdócio do Templo em Jerusalém, o nacionalista judeu radical que desafiou a ocupação romana e perdeu” (ASLAN, Reza. Zelota: a vida e a época de Jesus de Nazaré. Rio de Janeiro: Zahar, 2013, p. 233) e foi crucificado por seus pares, foi suplantada pelo Cristo da criação de Paulo (que, seduzido Pedro, deu início à Igreja) da mesma maneira que a memória de um Sócrates histórico foi sucedida pelo Sócrates de Platão?
Parece que o conselho do misterioso grego de Philip Pullman, qual seja, o de que “(a)quilo que deveria ter sido tem mais serventia ao reino do que aquilo que foi”, tem lastro no fato de Paulo ter burilado Jesus da mesma maneira que Platão burilou Sócrates.
Em Platão, aquele que só sabe nada saber passa ao papel de detentor da verdade única e, de igual modo a partir de Paulo de Tarso, aconteceu com o Jesus tolerante dos relatos bíblicos ao ser substituído pelo terrível Cristo que não se incomodaria com o método da dominação pelo uso da força inquisidora… e ai de Jesus se ousasse contrariar as torturas e a fogueira, porque seria, no mínimo, preso como n’Os Irmãos Karamázov de Dostoiévski e duramente repreendido pelo Grande Inquisidor, que o lembraria de que
“ele não tem nem o direito de acrescentar nada ao que já dissera antes (…): ‘tu, dizem, transferiste tudo ao papa, portanto, tudo hoje é da alçada do papa, e quanto a ti, ao menos agora não me apareças absolutamente por aqui, quando mais não seja não me atrapalhes antes do tempo’.” (DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Os Irmãos Karamázov. 3. ed. São Paulo: Editora 34, 2012, 348)
O espírito inquisidor da Igreja de Cristo, ainda na esteira de Dostoiévski, tem a mesma natureza que a felicidade do Sócrates platônico: “O homem foi feito rebelde; por acaso os rebeldes podem ser felizes?” (Ibidem, p. 348), diz o Grande Inquisidor, que poderia muito bem ter se inspirado no Sócrates d’A República para quem o verdadeiro bem reside no conformismo, em não querer mudar as coisas, no extremo oposto da rebeldia.
Ao mesmo tempo que é custoso imaginar um condenado à morte como o Sócrates histórico, que a tudo questionava, condenando ateus à morte, como faz o Sócrates d’As Leis, é difícil imaginar a cândida figura do Cordeiro de Deus condenando à morte pelo fogo.
O terrível Cristo, que assentiu com a fogueira dos hereges e tem assentido toda sorte de discriminação e intolerância, especialmente contra minorias sexuais e religiões de outras matrizes, tem o estilo platônico e também traz um ideal no qual o bem, no fim das contas, é unicamente o bem de quem domina. Esse Cristo, paulatinamente abandonado pela Igreja, cujo número de fiéis decresce, tem sido, todavia, tardiamente adotado por denominações evangélicas, com destaque para as neopentecostais com número crescente de público, perpetuando-se, assim, a corruptela da sua terribilidade.