por Celina Alcântara Brod
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Obediência cadavérica. São estas as palavras que o próprio Adolf Eichmann, oficial nazista responsável pela deportação dos judeus para os campos de concentração, utilizou em seu julgamento para descrever sua conduta diante das ordens do Führer. Contudo, foi Hannah Arendt que as registrou. Os escritos de Arendt compõem uma profunda e minuciosa busca pela compreensão dos elementos envolvidos na efetuação da maldade deliberada e das crueldades cometidas, durante os movimentos totalitários do século XX, por indivíduos absortos em um uma visão antipolítica de mundo.
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Para a pensadora judia, a prática do mal se fez presente através da ausência do movimento incessante do pensar: uma atividade humana que abriga o “diálogo silencioso” que cada um mantêm em si e consigo mesmo. O pensar, que difere do conhecer, nos retira do mundo e “interrompe todo fazer, todas atividades comuns, sejam quais forem”; um deslocamento que não visa fins ou resultados, mas o próprio exame de nós mesmos e nossos atos no mundo. Um empreendimento humano que convoca todo homem a ser responsável pelos gestos e palavras que manifestam.
É neste mergulho reflexivo que Arendt chega ao conceito “banalidade do mal”, uma noção que contraria a ideia ingênua de que o mal é uma entidade exclusiva de corações pervertidos. Não é. O homem comum, sem qualquer desvio ou patologia aparente, pode ser conduzido a praticar o impensável ou aceitá-lo de bom grado. Um indivíduo que se abstém de realizar o diálogo interno, que silencia a testemunha de si mesmo, pode aceitar com facilidade valores e deveres externos e se quer sentir-se responsável por atos cruéis cometidos em conformidade com estes. Agir conforme o dever, para o não pensante, é agir conforme as ordens de uma lógica externa. No caso do totalitarismo, Arendt o considerou um fenômeno inédito, em que os conceitos políticos anteriores ou as formas de sociedade prévias não davam conta de explicar o terror que se justificava pela coerência das ideologias. Era preciso “pensar sem corrimão”.
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Embora Arendt tenha enriquecido nosso saber acerca do mal banal, o conhecimento sobre o engajamento extremo entre líderes e seguidores é repleto de becos e lacunas que permanecem vazias. Afinal, como acontece essa relação de escravidão internalizada, em que a autonomia do pensar fica subordinada e totalmente dependente de uma autoridade externa? Ainda que não haja um conjunto de respostas definitivas que explique essa morte da individuação, essa perda de si na obediência cega, tentar compreender essa estranheza pode, como sustenta Arendt, “nos conciliar com um mundo onde tais coisas são possíveis”. Um mundo onde algumas figuras conseguem atrair seguidores dispostos a adorá-las, escutá-las e executar suas ordens ou desejos mais excêntricos e violentos.
O que faz com que pessoas ordinárias vinculem-se a uma figura, e concedam a ela uma confiança, admiração e entrega inquestionável? Onde começa o perigo entre líderes e seguidores? E como sabemos se estamos diante de uma relação simbiótica de domínio e submissão? Para encarar estas dúvidas tão inquietantes é preciso, incialmente, aceitar que a fronteira que divide o médico do monstro é facilmente permeável. Isto significa que buscar compreender a passividade e o desejo de dominar os outros, é na verdade, dirigir o olhar sob nós mesmos. Pois se, de um lado, há uma figura central, cuja hostilidade é evidente e exerce domínio, manipulação e fascinação, do outro, há inúmeras pessoas receptivas a tal autoridade e prontas para segui-la.
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Gurus, mestres de centros holísticos, políticos carismáticos, líderes de corporações, pastores, professores ou qualquer indivíduo que faça declarações endeusantes de suas missões, conhecimentos ou poderes é elegível para exercer aquilo que o professor de psicologia Philip Zimbardo chamou de efeito Lúcifer. Um processo de transformação que é capaz de instigar o lado mais escuro da natureza humana, levando pessoas comuns a realizar atos nocivos contra os outros e as vezes contra si mesmas.
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Este processo conta com dinâmicas de desindividuação, estigmatização do outro, prazer do pertencimento e diversas sensações que vão aos poucos embotando sentimentos e raciocínios próprios. A obediência cadavérica é apenas um dos inúmeros efeitos que uma figura de autoridade, contando com outras forças sociais e psicológicas, pode desencadear nos indivíduos. A tese de Zimbardo é a de que o caráter humano pode ser altamente influenciado pela força das circunstâncias e dos sistemas em que estamos envolvidos. Seu famoso experimento social, a prisão de Stanford, haveria mostrado o quanto nossa conduta é maleável e muitas vezes sucumbi a conformidade e ao sadomasoquismo.
Já para o psicanalista alemão Erich Fromm, a vida moderna, ausente de solidez e símbolos estáveis de autoridade moral, embora tenha contribuído para o desenvolvimento da autonomia dos indivíduos, também contribui para o surgimento de uma personalidade que se sente solitária, aflita, insegura e impotente. Fromm buscava compreender a estrutura de caráter das pessoas que se sentiam atraídas pelo autoritarismo. Segundo suas análises, a submissão a uma figura de autoridade ou o desejo de tornar-se senhor absoluto de outro seria um mecanismo de fuga do isolamento, da sensação de impotência e insignificância que o indivíduo moderno experencia diante da liberdade.
Neste sentido, a ânsia do poder não se originaria da força, mas da fraqueza: “quando não há força autêntica se quer conquistar uma força simulada.”, defende Fromm. A figura autoritária precisa dominar os outros porque não consegue produzir ela mesma sua potencialidade. Seu sentimento de força está no fato de ele ter se tornado senhor absoluto de alguém, enquanto para o seguidor, vincular-se a uma força autoritária compensaria sua insegurança, isolamento e seu sentimento de impotência, o livrando do fardo de ser livre. Já um indivíduo criativo, cuja espontaneidade não tenha sido tolhida, ou seja, alguém apto a expressar sua singularidade e potencialidades intelectuais e emocionais não precisa dominar ninguém, nem se deixar ser dominado. Sua força, neste caso, é autêntica e espontânea.
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Para Fromm, é justamente a impotência que produz o impulso sádico da dominação e o impulso masoquista da submissão. O indivíduo abandona a tarefa de manter-se por si só para exercer poder sob o outro ou submeter-se a ele. O seguidor, neste caso, refugia-se em poderes alheios e faz apenas aquilo que é esperado dele, ou melhor, aquilo que o líder ou seu grupo espera dele. A partir de então, o pensamento autêntico e crítico é suprimido e a responsabilidade individual esvanece. “Desistir da espontaneidade e da individualidade produz uma mutilação da vida.”, afirma Fromm. Qualquer um de nós, estando imerso nessa espécie de relação, é capaz de racionalizar escolhas e atos destrutivos com justificativas mirabolantes. Conseguimos racionalizar mandamentos, atitudes e as falas sórdidas para proteger nosso líder, nosso grupo, na verdade, para proteger nossa identidade alienada.
É neste sentido que uma relação entre líderes e seguidores pode ser simbiótica e, por isso, destrutiva. Em uma relação saudável entre uma figura de autoridade e seu aprendiz não há exploração, mas aproximação. O amor funda-se na igualdade e na liberdade, não na subordinação e perda da integridade. Lideranças sadias libertam, não aprisionam.
Para conseguirmos ao menos identificar uma relação simbiótica é preciso saber que duas coisas importam: palavras e atitudes. Mas esta não é uma tarefa óbvia e fácil. Sabiamente, Platão afirmou que a linguagem era um pharmakon: pode ser remédio, mas também pode ser veneno. Insultos e elogios, verdades e mentiras, manipulação e inspiração são produzidas do mesmo material: palavras.
Estar atento à linguagem é observar se as palavras em uso fabricam e projetam uma imaginação hostil a partir da construção mental de um inimigo, se há discrepância e clara contradição no discurso, se há pensamentos mágicos e declarações autodivinizantes e, por último, se o líder declara estar em posse de poderes ou conhecimentos especiais. As palavras criam imagens, estigmatizam, constroem conspirações, arquitetam falsos dilemas e reforçam a fidelidade dos seguidores na figura do líder. Acredite, até mesmo um simples guru de meditação pode com meras palavras levar seguidores ao impensável.
No que se refere às atitudes, para Margaret Singer, psicóloga americana, reconhecida pelas suas pesquisas sobre influência indevida de cultos e grupos, os líderes abusivos que instigam relações persuasivas, tendem a concentrar todas as decisões na sua figura, mantendo o foco do amor e da obediência neles mesmos e colocam-se como instância última de justiça. Em resumo, os grupos manipulatórios irão invocar imagens e palavras claras de veneração, além de prometer que o líder é o único caminho viável para mudanças e transformações.
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As fontes psicológicas e sociais que explicam essa pulsão letal são extremante densas e complexas, por isso o que nos cabe é nos comprometermos com uma compreensão infindável. Como escreveu Arendt, “a compreensão começa com o nascimento e termina com a morte.” Resistir e então sabotar estes mecanismos de fuga, que mutilam as paixões calmas e a nossa empatia, é aceitar que o processo de observação de nós mesmos é incessante, insolúvel e solitário, porém é um ato de liberdade que garante nossa humanidade. Se nos faltam conceitos e categorias para compreender completamente esse fascínio pelo mal, podemos ao menos nos contentar com sinais de fumaça: comportamentos e palavras que caracterizam uma liderança inibidora, seja ela qual for.
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