por Gabriel Ferreira
Poucos textos ou aforismos de filósofos fizeram uma tão bem-sucedida carreira pública quanto o “Penso, logo existo” cartesiano ou o “uma andorinha só não faz verão” de Aristóteles (sim, é dele e está na Ética Nicomaqueia). Contudo, uma lista, ainda que pequena, de tais excertos não poderia deixar de conter a tese 11 de Marx contra Feuerbach: “os filósofos até agora têm apenas interpretado o mundo de maneiras diversas; a questão agora é transformá-lo”.
O opúsculo que contém o célebre aforismo, Teses contra Feuerbach, não publicado por Marx em vida, tinha como alvo o filósofo hegeliano epigonal Ludwig Feuerbach. Em uma obra de 1841, A essência do cristianismo, este fez uma das mais famosas críticas materialistas à religião – em especial, ao cristianismo – reduzindo-a a mera expectoração antropológica. Marx via no materialismo de então – ainda desconhecedor das obras seminais, surgidas apenas na década seguinte, de Büchner, Czolbe e Lange – o problema que denunciara já na primeira das teses, a saber, os materialistas tomavam como objeto (Gegenstand) a realidade efetiva (Wirklichkeit) e o homem apenas em suas formas (Form) ou imagens/ideias (Anschauung), ao invés de entendê-los como práxis. E Marx segue dizendo, ainda na tese 1, que apesar de em seu livro Feuerbach criticar a religião, ele ainda está preso a uma concepção idealista que vê na atitude teorética, contemplativa (theoretische Verhalten), e não na práxis, a genuína atividade humana; esta, a práxis, teria ficado confinada à simples forma de aparência (Erscheinungsform) externa. Compreende-se, então, o argumento de Marx desenvolvido da primeira à última das teses – a 11ª –, que recusa tal concepção e afirma a veracidade da tese precisamente oposta, a saber, a “natureza humana” descrita por Feuerbach é ela mesma um epifenômeno daquilo que lhe é mais fundamental: a ação humana enraizada em seus contextos históricos. Portanto, o diagnóstico só pode ser aquele que encerra o opúsculo, a famigerada tese 11.
Pode-se atestar o sucesso histórico da tese 11 ao ver como ela está presente até onde, precisamente, jamais pensaríamos encontrá-la. Ela está tanto no mausoléu de Marx quanto nas bocas e nos corações dos revolucionários; no entanto, curiosamente ela não estaria mal acomodada ao ser encontrada na cabeça de liberais (no nosso sentido, não no americano) ou na de alguns críticos daquilo que chamei, em meu último artigo para este Estado da Arte, de vocação intelectual. Naquela ocasião, terminei o texto afirmando que a questão “o que fazer da autêntica vocação à vida intelectual em nosso mundo?” era uma das mais importantes impostas a nosso tempo. Ora, tal pergunta, se genuinamente feita, encontra resistências de diversos tipos vindas de diferentes abordagens e pontos de vista. Para um liberal de nossos dias, que já deixou Locke no século XVII e volta suas preocupações exclusivamente para a dinâmica do mercado e seu papel (fundamental) na hierarquia da realidade, a afirmação de uma “vocação intelectual” mostra-se bizarra e abstrusa em seu primeiro termo; o que poderia significar “vocação” em um mundo compreensível e corretamente secularizado? Como se justificaria a importação, tão fora de lugar, de uma palavra profundamente impregnada de significado religioso? Mesmo em um sentido moderno laicizado, como no clássico texto da preleção de 1917 de Max Weber, A ciência como vocação, em que o verdadeiro espírito científico deve estar “pura e simplesmente a serviço da causa” apaixonada do saber cujo valor está em si próprio, tal vocação causa espanto. Para este liberal, quem diz reconhecer a si mesmo como chamado dessa maneira, ou está em busca de financiamento fácil para suas ideias mirabolantes ou é um corrompedor daquela hierarquia, afinal, “estar a serviço da causa” parece coisa de gente que defende economias planificadas.
Contudo, no outro lado do espectro a situação não seria melhor. A tese 11, mencionada acima, traz em si mesma um paradoxo difícil de ser ignorado por quem aceita tanto a antropologia quanto a filosofia da história de Marx: haveria lugar aí para uma filosofia, em sentido clássico, interpretativa do mundo, ou deveria, sob o peso da vocação revolucionária da invocação à transformação do mundo, transformar-se toda ela em outra coisa? Assim, embora talvez mais abertos à ideia de vocação, por ver que ela pode fazer sentido no interior de um framework determinado – o revolucionário –, um seguidor da conclusão expressa na tese 11 encontraria talvez maiores dificuldades no segundo termo da expressão “vocação intelectual”, em especial pelo perigo sempre presente de que um intelectual – esse tipo altamente suspeito – se mostre um contra-articulador reacionário. Sinais disso foram tanto a dificuldade inicial em encaixar o trabalhador intelectual no esquema dos sindicatos soviéticos quanto o controle ideológico frequente pelo qual passavam os cientistas e pensadores da URSS, embora tenham inegavelmente sido de extrema valia para o regime.
Todo o excurso que fiz até agora tem como objetivo desfraldar o pano de fundo sobre o qual voltamos, uma vez mais, a ver a necessidade de refletirmos sobre a tensão entre uma legítima vocação intelectual e como vivenciá-la. Isso se vê melhor sobre aquele pano de fundo porque parece que o núcleo da tese 11 moldou até o cerne o modo como tal relação – a ocorrer no ponto de tangência entre vocação intelectual e o mundo de hoje – deve se dar, a saber, no domínio quase que exclusivo do pensamento político e, de preferência, na esfera pública. E é interessante que eu esteja escrevendo essas linhas em meio a mais um escândalo político atravessado pelo Brasil – o das delações e gravações do executivo da JBS – porque a tensão se mostra com cores ainda mais fortes.
Isso porque, segundo frequentemente se pode notar, o intelectual no Brasil se vê moralmente obrigado a agir, a mudar o país e, quiçá, o mundo. E a assinar manifestos. E tentar prever o futuro da esquerda, da direita e do centrão, não sem antes fornecer, assim, de lambuja, quase como um brinde ou uma pérola aos porcos, a melhor estratégia para cada um deles. Quando se trata de filósofos ou professores de filosofia então (ah, essa distinção mais gritada do que refletida!), é praticamente um consenso, uma lei não escrita, que não se deve falar, de modo algum, em moral. Ora, mas por que não? Por que não se deve, por exemplo, dizer que não parece defensável, nem sob o paradigma de uma ética das virtudes, mas também nem sob o deontológico ou o consequencialista, que o presidente da república ouça um sujeito dizer que pratica – ou intenciona praticar – crimes (e tenha poderes para tanto) e simplesmente o ignore sob a égide de “falastrão”? Ou ainda, de maneira totalmente oposta, que poderia sim ser defensável! Pecado de igual tamanho parece ser o de fazer o esforço da análise, com aquela hegeliana “paciência do conceito”, deixando de lado tanto a pressa do jornalista quanto o comprometimento do ideólogo e fazer o que já chamei, aqui mesmo neste Estado da Arte, de terapia do debate; o que não significa, necessariamente, não chegar a conclusão alguma ou permanecer na relva perfumada da “neutralidade”. O intelectual não quer, portanto, refletir; quer agir, modificar, transformar. E “ter razão”. E nesse afã, não faz nem o que, em tese, diz sentir-se intimamente chamado a fazer.
Agora, caríssimo leitor, façamos um experimento mental (os filósofos atualmente adoram experimentos mentais): imagine que o nosso intelectual, filósofo ou professor de filosofia (tanto faz) fizesse algo diferente; na verdade, bastante diferente. Imagine que ele viesse a público dizer algo mais ou menos no seguinte sentido: ainda que minhas convicções políticas pessoais sejam tais e tais e que o quadro político atual me desagrade profundamente, é de extrema importância olharmos para outros problemas mais fundamentais e, mesmo no que diz respeito às questões políticas, fazê-lo de maneira diferente. Não é que devamos ir às ruas, prever os novos movimentos políticos, analisar os cenários “a”, “b” e “c” e os desdobramentos “x”, “y” e “z”. O caos exterior deveria ser a ocasião para repensarmos sobre a eventual desordem interior em cada um de nós. E um tipo de filosofia, bastante antiga, pode ser de extrema valia agora, no contexto atual.
Se o leitor conseguiu conter a própria decepção durante as linhas desse experimento, pode raciocinar comigo como tal filósofo seria visto – se não por você mesmo – pelos pares. A acusação mais leve, mas também a mais imediata, é a de alienação. Vou deixar de lado o parentesco entre esse substantivo e o autor das Teses e ficar apenas em quão óbvio pareceria ser que alguém que se dedicasse a escrever tais coisas estaria sendo alienado, displicente ou leviano. Pois bem, o experimento mental acima não é tão hipotético assim. Em artigo recente à revista Philosopher’s Magazine, Massimo Pigliucci, professor de filosofia da City College of New York, sugeriu, desde o título, “A stoic take on the US Presidential Elections” (Um olhar estoico sobre as eleições presidenciais dos EUA). Se de início Pigliucci apresenta-se como um “progressive liberal” e chega mesmo a dizer que Bernie Sanders é um moderado, o artigo segue derivando ideias e ações (estritamente individuais, não palavras de ordem) a partir dos princípios do estoicismo, escola filosófica que teve início no século IV a. C. e estendeu-se rendendo frutos no Império Romano, contando em suas fileiras Cícero, Sêneca e o próprio imperador Marco Aurélio, autor dos fabulosos Solilóquios.
De fato, Pigliucci foi ainda mais longe: acaba de lançar um livro, How to be a stoic (Basic Books, 2017), no qual explora a atualidade do estoicismo. Pigliucci, que já esteve no Brasil, dedica-se primordialmente a temas de filosofia da ciência e, a princípio, poderia parecer longe de ser um propagador de filósofos aparentemente antiquados. No entanto, e é aí que gostaria de chegar, Pigliucci exemplifica uma atitude bastante diferentes daquela dos nossos intelectuais que têm a tese 11 como motto. Independentemente do chamado a ser especificamente estoico, é notável que, frente a um quadro político externo que ele considera nefasto, a alternativa proposta filosoficamente é olhar para problemas como o sentido da vida, sobre como eu lido com minhas emoções, com meus amigos, como eu me preparo para as adversidades e, acima de tudo, como vejo a minha própria morte.
Passando os olhos por nossas redes sociais e colunas de análise nos jornais, tal postura parece ainda mais anacrônica, mais estrangeira. Não é o que esperamos, afinal, de um filósofo. Que alguém, nesse momento de tamanha turbulência, citasse Epicteto, um dos maiores filósofos estoicos que diz “Eu tenho de morrer. Se é agora, bem, morro agora; se depois, então agora irei almoçar, uma vez que a hora de almoçar chegou e terei de me ocupar em morrer mais tarde”, isso pareceria inadmissível, quase uma afronta. Contudo, para citar agora o que ouvi dia desses de um dos nossos conterrâneos, um filósofo a quem considero um grande amigo, talvez tenhamos de fazer com a tese 11 o que Marx quis fazer com a filosofia de Hegel: virá-la do avesso (umstülpen) e dizer “Os filósofos até agora têm apenas mudado o mundo de maneiras diversas; a questão agora é interpretá-lo”.