O Estado da Arte publica a terceira e última parte do dossiê especial “Por que a beleza importa?”, inspirado no livro e no documentário do filósofo inglês Roger Scruton.
O Bom, o Verdadeiro e o Belo: por que os transcendentais ainda importam
por Gabriel Ferreira
Dentre os problemas e tópicos aos quais os filósofos se dedicaram ao longo da história, questões relativas ao que chamamos de Estética certamente estão entre aquelas que mais enchem bibliotecas. Isso porque, junto com as questões éticas, há um traço especialmente intrigante na experiência de proferir um juízo estético. Diferentemente do que acontece quando expomos um juízo fático trivial sobre o mundo, tal como “Há um caderno preto sobre a mesa em frente a mim”, afirmações sobre a beleza – ou a fealdade – de algo – como “Esta caneta tinteiro é bonita” – carregam ao menos duas notas incomodamente discordantes entre si. Por um lado, não se pode negar que tal juízo repousa sobre uma impressão (melhor seria dizer um ato mental) pessoal, particularmente dada a mim naquele momento, que se apresenta no interior daquilo que chamamos de “subjetividade” e, por outro, que ninguém jamais expressa um juízo estético sem certa pretensão, ainda que inconsciente, de que ele seja igualmente reconhecido por todos os demais, de maneira intersubjetiva. Dito de outro modo, julgamentos estéticos são simultaneamente descritivos e (pretendem ser) normativos. É por isso que, de certa forma, sentimo-nos obrigados a fornecer razões que sustentem tais juízos se somos interpelados sobre eles. Não por acaso, portanto, problemas relativos ao juízo de gosto, suas características, seus componentes, os critérios e, principalmente, sua fundamentação, e mesmo se os artistas devem ou não levar tais juízos em conta, passaram a ocupar o centro da discussão estética nos últimos três séculos para uma quantidade não desprezível de filósofos.
Contudo, se nomes como Baumgarten, Hutcheson, Hume, Burke, Kant e Shaftesbury, entre outros, inauguraram uma nova forma, tomar a natureza da beleza como problema a ser pensado obviamente remonta, em nossa tradição, fundamentalmente a Platão e Aristóteles, para não falarmos das reflexões seminais de alguns dos pré-socráticos; de fato, grande parte das querelas posteriores e conexões interessantes sobre o tema já pode ser vista em germe no famoso fragmento de Heráclito de Éfeso: “Para o deus, todas as coisas são belas, boas e justas, mas os homens tomam umas por justas e outras por injustas”. Também na Idade Média a inclinação ao tratamento de tais questões não apenas não esmoreceu como, partindo de determinado impulso inaugurado pelo mundo grego, mais particularmente pela filosofia aristotélica, expandiu-se num sentido que eu gostaria de colocar aqui em relevo. Isso porque mesmo antes daquele ponto de viragem para o juízo de gosto apontado acima, há um tipo de reflexão e compreensão sobre a natureza e o lugar do belo na ordem do mundo e na experiência humana que aponta precisamente para um dos aspectos principais da reflexão de Scruton sobre a estética, tanto em seu documentário Why Beauty Matters? (2009) como em seu já incontornável livro Beleza (É Realizações, 2013), a saber, a compreensão da Beleza como um dos transcendentais.
A doutrina medieval dos transcendentais é intimamente conectada ao problema da determinação do objeto da metafísica, cuja origem remonta mesmo à Metafísica de Aristóteles. Para além da reconstrução detalhada do problema, o que nos interessa é que, se como Aristóteles já apontara, é possível predicar os entes de conceitos cada vez mais abrangentes, irrompe a pergunta sobre a existência de um predicado mais geral ou que exprima um “gênero supremo” do qual todos os entes possam ser predicados. Com a refutação da possibilidade de que “ser” seja tal gênero supremo, uma vez que as distinções no interior do gênero devem ser feitas a partir de diferenças que estejam fora do mesmo gênero e, fora do ser não há nenhum predicado possível, Aristóteles apresenta então uma lista de dez gêneros supremos, as dez categorias. As categorias são, portanto, as divisões mais gerais de todas as coisas que são. Mas mesmo o Estagirita já notara que, se por um lado há predicados mais gerais nos quais podemos dividir as coisas que são (“animais”, “brancos”, “que estão aqui e agora sobre esta mesa” etc.), por outro, há noções que igualmente aplicam-se a tudo o que há sem que com isso nós dividamos o ser, mas, ao contrário, mantenhamos a mesma amplitude – logicamente falando, sejam co-extensionais – do ser tomado em si mesmo. Veja-se o exemplo do próprio Aristóteles sobre a unidade: “ser” e “uno” têm a mesma extensão – tudo o que há é um consigo mesmo e, enquanto tal, indivisível. Assim, Aristóteles nota que, embora “ser” e “uno” tenham sentidos distintos, possuem a mesma natureza. Cabe então perguntar: será que há outras noções que também são co-extensivas com “ser” e que, por isso, transcendem as divisões das categorias? O tratado Summa de Bono, de Filipe, o Chanceler (século XIII), é considerado o primeiro livro no qual uma doutrina dos transcendentais foi sistematicamente formulada. No entanto, o problema das noções mais comuns a todos os entes conheceu diversas formulações e respostas no medievo e a lista dos transcendentais ganhou diversos acréscimos: tudo o que é, é um algo, uma coisa, é verdadeiro – ou subjectum de juízos verdadeiros – e, em si mesmo, bom na medida em que realiza sua natureza, sua finalidade, e, por isso, é analogicamente desejável. E é aqui que cumpre voltarmo-nos ao que diz Santo Tomás de Aquino.
Em uma das mais clássicas passagens da Suma teológica, Tomás aponta as três condições da beleza: em primeiro lugar, integridade ou perfeição, querendo com isso indicar que quanto mais um ente expressa a completude e a integridade de sua natureza, quanto menos lhe faltar para que seja plenamente aquilo que é e, portanto, seja mais perfeito, mais belo será tal ente. A segunda das condições é o que Tomás chama de proporção ou harmonia, ou seja, que haja uma harmonia entre suas diversas partes bem ordenadas para o fim que lhe seja próprio. Por último, Tomás acrescenta um traço particularmente interessante porque não explorado: o terceiro atributo necessário à beleza de um ente é o brilho, a claridade ou o esplendor. O que é belo exibe uma espécie de halo que coroa seu grau de perfeição e está de acordo com ele.
Assim, o tratamento da beleza em conexão com os chamados transcendentais traz ao menos dois aspectos fundamentais que estão no centro daquilo que Scruton quer expressar. Em primeiro lugar, a Beleza é algo que pertence ao real, aos entes e, como tal, não depende propriamente do juízo de gosto para ser, mas, tão somente, para ser reconhecida. Isso não equivale a dizer que todos os objetos ou obras de arte agradem igualmente ao olhar ou ao ouvido, mas que uma vez que exibam em determinado grau aquelas três condições, elas são belas na mesma proporção em que se aproximam da perfeição harmônica de sua natureza própria. Desse modo, e aqui vemos o segundo ponto, a beleza é aquilo no que os sentidos e o intelecto encontram satisfação e nossos apetites são aplacados. A experiência da beleza conjura a unidade dos nossos desejos – do intelecto e da vontade – e as satisfaz, uma vez que o bom e o belo são o mesmo.
Portanto, se há propriedades que todos os entes possuem em graus variáveis – os transcendentais -, e se beleza está entre elas, isso significa que o núcleo da arte e da experiência estética não é, necessariamente, a criação, a ação e o julgamento ativo, mas sim uma atitude que, sem ser de modo algum pejorativa, pode ser dita passiva, ou seja, de acolhimento de uma faceta do mundo, dos outros seres humanos, dos objetos e da natureza que está de fato aí, em sua facticidade, à espera de reconhecimento. Não é à toa, portanto, que São Tomás jamais abre mão do atributo da claritas nas diversas vezes em que reflete sobre a beleza. Ela é a manifestação radiante do bem que, por sua vez, o retroilumina e que torna possível tanto vê-lo quanto ver ao seu redor. Que esse seja um modo particularmente distinto de relacionar-se com o mundo fica evidente. E é igualmente visível que esquecer de tal modalidade equivale, em grande parte, a deixar de lado uma das partes distintivas da experiência humana no mundo.
Visto sob esse prisma, mesmo a dimensão da criação artística ganha outros contornos. Uma vez que ela deve partir da compreensão e da busca daquela unidade e daquele fim desejável, talvez seja mais apropriado dizer com o filósofo alemão Schelling, que mesmo a natureza torna-se existente enquanto tal e consciente de si através de nós. Somos nós as entidades – também em parte naturais – através das quais a experiência da realidade cotidiana se torna “Natureza”, mas também se torna “Mundo” e “Cultura”. É por nós que rochas, pigmentos, sons e silêncios se tornam propriamente “harmoniosos”, “agradáveis”, “ordenados”. Note-se uma vez mais que nada mais longe do que afirmar com isso um subjetivismo; ao contrário, o que acontece é a experiência do reconhecimento, e não a afirmação arbitrária, de propriedades. No entanto, como elas se manifestariam como portadoras de tais atributos – e não apenas como aquelas rochas, pigmentos, linhas, curvas, proporções, sons e silêncios – a não ser por nós? É no jogo dos apetites, das sensações e dos juízos que a realidade se volta e se encontra a si mesma como “criação” e, enfim, como “bela”. É aqui que entende-se uma das mais agudas expressões de Aristóteles: “a alma é, em certo sentido, todas as coisas” (De Anima)
Perguntar-se, então, como Scruton, “por que a beleza importa?” é articular uma questão particularmente interessante. O filósofo britânico não propõe a questão filosófica por excelência sobre o que é a beleza. Tampouco sobre sua utilidade ou seu papel político ou social. Isso porque Scruton parece querer apontar não apenas para uma discussão ou definição, mas para uma classe de experiência fundamental, a saber, aquela na qual podemos apreender o real em seu ser, sua verdade, sua bondade e, portanto, em sua beleza.