Por uma política da racionalidade

por Desidério Murcho

O conceito de prova esconde surpresas importantes. No seu sentido mais abrangente, uma prova é seja o que for que conta a favor de uma conclusão. Tanto há provas mais robustas, como as matemáticas, lógicas e científicas, como as menos robustas, como o testemunho ou a simples percepção visual ou auditiva. Curiosamente, na língua inglesa não parece haver um só termo suficientemente amplo como em português; o inglês evidence, por vezes traduzido sem pensar por “evidências” (o que é dissonante em português, porque grande parte das evidências não são evidentes, como as provas arqueológicas), refere-se quase sempre a provas empíricas, mas não às lógicas e matemáticas (proofs). O termo mais abrangente em inglês acaba por ser o equivalente do nosso “justificação”, e é este conceito, no seu sentido probatório, que tenho aqui em mente.

Eis três aspectos iniciais importantes das provas.

Em primeiro lugar, as provas são sempre plurais. Não há uma prova apenas, simples e directa, de que os dinossauros se extinguiram há 65 milhões de anos; trata-se antes de um grupo vasto de provas, umas mais fortes e outras menos, mas que em conjunto apontam decisivamente nessa direcção e são mais fortes que as contraprovas.

Em segundo lugar, as provas não são em geral factivas (à excepção — só aparentemente — das provas matemáticas e lógicas). O que isto quer dizer é que as melhores provas a favor da extinção dos dinossauros há 65 milhões de anos são compatíveis com a existência deles há 50 milhões de anos. Novas provas vindas a lume mostram muitas vezes que era falso o que antes se considerava, com base em boas provas, que era verdadeiro.

Em terceiro lugar, as provas não são monotónicas. O contraste é aqui uma vez mais — e uma vez mais só aparentemente — com a dedução. Em muitos casos, a dedução é superficialmente monotónica porque nenhumas premissas que se acrescentem cancelam a validade de uma dedução inicialmente válida; mas isso é exactamente o que acontece no caso das outras provas. Dado um certo conjunto de premissas que apoiam indutivamente uma conclusão, novas informações vindas a lume cancelam por vezes esse apoio. O dado que vou lançar tem seis lados e isso apoia a conclusão de que cada lado tem 1/6 de probabilidades de sair; mas quando descubro que o dado está viciado, a premissa original, juntamente com esta nova informação, deixa de apoiar aquela conclusão.

É devido a estes três aspectos que as provas são dinâmicas e não estáticas, e é também por isso que dependem crucialmente das crenças de fundo. São dinâmicas porque provar seja o que for não é uma questão de encontrar um argumento ou outro a seu favor, e acabou-se a conversa. As provas não são assim. Dadas as melhores provas a favor de algo, talvez isso seja verdadeiro — mas talvez afinal não o seja. A crença de que é verdadeiro só é epistemicamente responsável quando se apoia na procura contínua de provas relevantes que a falsifiquem. Isto é contra-intuitivo, pois os seres humanos tendem a dar atenção apenas ao que confirma as suas crenças prévias, e ignoram o que as refuta. Ser epistemicamente responsável obriga a sair dos impulsos epistémicos simplórios.

As provas dependem crucialmente das crenças de fundo porque estas últimas desempenham um papel insusceptível de ser eliminado ou sequer minimizado. As provas não são avaliadas no vazio, mas antes contra o pano de fundo de crenças prévias. A mesmíssima prova que conta a favor de algo dado um certo pano de fundo de crenças prévias, não conta a seu favor dadas outras crenças de fundo. A mesmíssima afirmação homeopática é levada a sério ou não dependendo do conhecimento operativo que uma pessoa tem das provas médicas. Uma pessoa que não tem esse conhecimento aceita essa afirmação; outra que o tem, rejeita-a.

Em conjunto, estes cinco aspectos elementares do conceito abrangente de prova tornam evidente a importância dos processos de controlo e correcção de erros. Sem estes, continuamente aplicados e reaplicados, não há responsabilidade epistémica. Não se pense, contudo, que há processos infalíveis de controlo e correcção de erros; se houvesse, os seres humanos seriam infalíveis caso os seguissem. Qualquer processo de controlo e correcção de erros está por sua vez sujeito ao erro, e exige por isso novos processos de controlo e correcção de erros. Eis a fragilidade epistémica humana, ou um dos seus aspectos mais preocupantes.

Superficialmente, parece haver uma área que escapa às hesitações e riscos que resultam da nossa fragilidade epistémica: o glorioso domínio da dedução. Porém, isto é uma ilusão. No caso do raciocínio indutivo é muito óbvio que as crenças de fundo desempenham um papel capital porque nem superficialmente é monotónico; a surpresa é que o raciocínio dedutivo só superficialmente o é. Considere-se qualquer raciocínio da forma A ou B, não-A; logo, B. Na lógica clássica, que é muito conservadora face ao que nos parece intuitivamente que as coisas são, considera-se válido qualquer raciocínio daquela forma lógica. A razão é simples: em qualquer condição de verdade em que as premissas sejam ambas verdadeiras, também a conclusão o é. Imagine-se, por exemplo, que a conclusão B é falsa; nesse caso, as premissas não são ambas verdadeiras. Isto porque caso a premissa não-A seja verdadeira, a premissa A ou B será falsa porque será então a disjunção de duas frases falsas. Consequentemente, o simples exame das condições de verdade parece indicar, só por si, que qualquer raciocínio desta forma lógica será válido, facto que parece inteiramente imune a novas informações que venham a lume.

Contudo, isto é uma ilusão. Numa lógica em que se considere que há três valores de verdade e não apenas dois, fica em aberto decidir se o caso em que a conclusão é falsa e as premissas têm ambas esse novo e exótico valor de verdade invalida ou não o raciocínio original. É certo que continua a não haver qualquer condição de verdade em que a conclusão é falsa apesar de as premissas serem verdadeiras, mas é esta mesma maneira de entender a validade que fica sob suspeita. E se acaso se tiver uma razão para bloquear a validade dos raciocínios daquela forma lógica, ganha-se uma razão para insistir que a validade exige não apenas a inexistência de condições de verdade em que as premissas são todas verdadeiras e a conclusão falsa, mas também a inexistência de condições de verdade em que a conclusão é falsa, apesar de todas as premissas terem esse novo valor de verdade exótico.

Este caso mostra que considerações de fundo, que não dizem respeito à verdade das premissas do raciocínio original, põem em questão a sua validade. É por isso que só superficialmente a dedução parece escapar às dificuldades que as provas em geral enfrentam. Quando se põe em causa pressupostos que muitas vezes nem eram explícitos, compreende-se que o que parecia obviamente válido talvez não o seja, e o próprio conceito banal de validade revela subtilezas inesperadas.

Estes são aspectos mais teóricos e gerais da fragilidade epistémica humana, e não dizem respeito especificamente aos seres humanos; é de crer que qualquer agente epistémico — se excluirmos fantasias sobrenaturais — terá a mesmíssima fragilidade. Aparentemente, qualquer agente epistémico terá a mesmíssima fragilidade ao enfrentar o difícil trabalho de tentar compreender bem a realidade. Contudo, dois outros aspectos da fragilidade epistémica são específicos da biologia e das sociedades humanas.

Estudos recentes de psicologia cognitiva, popularizados sobretudo por Daniel Kahneman no livro Thinking, Fast and Slow (2011), traduzido com títulos diferentes em Portugal e no Brasil, parecem mostrar que os seres humanos têm como que uma alma dividida: dois sistemas cognitivos que não trabalham propriamente em harmonia, em parte porque um deles é chamado a fazer o que não é tarefa sua, evolutivamente falando. Os nomes nada sugestivos que é costume dar a esses dois sistemas cognitivos é apenas Sistema 1 e Sistema 2, sendo o primeiro responsável por computações incrivelmente complexas, mas realizadas sem consciência nem controlo da nossa parte; quanto ao segundo, é o que permite fazer matemática e ciência, mas também conversar, e é objecto de controlo voluntário do agente. Reconhecer um rosto humano, ou a emoção expressa num rosto, ou saber caminhar e subir escadas, exige uma capacidade monstruosa de computação; contudo, fazemo-lo sem qualquer esforço precisamente porque o fazemos com um sistema cognitivo que evoluiu para fazer precisamente isso. O preço a pagar é que o fazemos sem saber como, pelo que programar máquinas para fazer o mesmo é extremamente difícil e só muito recentemente se está a conseguir algum sucesso nessa área. 

Em contraste, quando nos dispomos a usar o Sistema 2 para fazer uma coisa tão simples como uma multiplicação de 398 por 223, temos uma extrema dificuldade; só conseguimos fazê-lo voluntariamente, precisamos de ajuda extra-somática — papel e lápis — e temos de conseguir concentrar-nos (não conseguimos fazê-lo no meio de um palavrório sem fim) e de fazer um esforço consciente. O mesmíssimo Sistema 2 é usado sem esforço para fazer as computações muitíssimo mais complexas que são exigidas para compreender o discurso humano — porque é de supor que foi precisamente para isso que esse sistema cognitivo evoluiu. Porque usar o Sistema 2 para fazer outras coisas que não conversa fiada exige um esforço consciente, os seres humanos tendem a não o activar quando o Sistema 1 parece dar respostas apropriadas, ou quando assinala que não vale a pena o esforço porque não há respostas apropriadas. Várias experiências científicas, narradas por Kahneman e outros autores, mostram a estupidez humana radical: problemas elementares de estatística ou de lógica ou seja do que for são armadilhas constantes em que quase toda a gente cai desde que sejam formuladas na linguagem do dia-a-dia. Um dos casos mais gritantes narrados por Kahneman diz respeito ao conhecido teste da Linda, que exige a aplicação dos conhecimentos mais elementares do cálculo de probabilidades; estudantes de doutoramento precisamente na área de teoria da decisão erram sistematicamente no teste. É de prever que num contexto de exames escolares, eles não errariam — porque activariam o Sistema 2, que exige esforço e controlo. Mas se a pessoa está descontraidamente a fazer um teste para um psicólogo, usa precisamente os recursos epistémicos da vida quotidiana — e cai que nem um pato.

A primeira lição importante aqui é que a fragilidade epistémica humana tem aspectos que dizem respeito especificamente à nossa arquitectura cognitiva; não se trata apenas de limites epistémicos gerais, que é de prever que sejam comuns a qualquer agente epistémico, por mais desenvolvido que seja. A desgraçada arquitectura cognitiva humana faz-nos evitar o esforço intelectual e adorar as conversas frívolas, e faz-nos imaginar que temos intuições certeiras que nos poupam o trabalho de estudar cuidadosamente a realidade. Quando se vê a maneira como as decisões políticas são tomadas, com base exclusivamente numa tagarelice frívola que consiste em ver quem marca mais pontos e mais ganha vantagens, compreende-se que a suposta dificuldade da pós-verdade é algo muitíssimo mais profundo e antigo do que os superficiais meios de comunicação — que são parte do problema, pois cultivam precisamente a falta de cuidado epistémico — querem fazer crer. 

A segunda lição é que tanto os aspectos gerais como os específicos da nossa fragilidade epistémica apontam para o que certeiramente o filósofo Joseph Heath afirma que mais falta nos faz, no seu livro Enlightenment 2.0 (2014): uma “política da racionalidade”. Já seria suficientemente mau não ter uma política da racionalidade, mas as coisas são ainda piores do que ele pensa: temo-la, num certo sentido, mas de pernas para o ar. Uma política adequada da racionalidade baseia-se na admissão da nossa fragilidade epistémica, e na importância de cultivar um ambiente epistémico que promova o exercício cuidadoso da racionalidade. Da mesma maneira que não se consegue multiplicar 9355 por 2976 sem papel e lápis, nem se toda a gente à nossa volta estiver a berrar palpites sobre qual é o resultado, também não se consegue pensar cuidadosamente sobre a moralidade da eutanásia quando as pessoas vão para a rua gritar palavras de ordem ou quando se alimenta debates televisivos com quem nunca estudou o tema, mas tem opiniões cavalares muito firmes, exclusivamente baseadas no preconceito — ou, pior, naquela malícia ideológica que faz tanta gente defender ou atacar uma ideia não devido à ideia em si mas devido à vitória que pretende obter para a sua tribo ideológica. Uma política da racionalidade adequada tem por finalidade instituir as regras e instituições que promovam um ambiente epistémico que permita o uso cuidadoso da racionalidade humana; o que temos é o oposto disso: quase todos os agentes e instituições actuais usam todos os truques que conseguem imaginar para explorar as fraquezas cognitivas humanas. Não se trata de não ter uma política da racionalidade, mas de ter uma terrível: a lei da selva. Publicidade enganosa, notícias enganadoras, palavreado sem fim baseado em nenhum estudo — tudo conta e tudo é usado para explorar as fraquezas cognitivas humanas, fazendo os seres humanos tomar decisões e ter opiniões que os prejudicam gravemente e tornam muitíssimo mais difícil o seu próprio florescimento. Que empresas privadas deitem mão de todos os truques é chocante, mas que os estados, governos e instituições públicas façam sistematicamente o mesmo está para lá de chocante; é um crime contra a humanidade.

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