por Desidério Murcho
Muitos viajantes se cruzaram certamente com ele, sem fazer ideia da importância que viria a ter na filosofia europeia. Nascido em 1033, abandonou a casa do pai, com quem nunca se deu bem, depois da morte da mãe. E foi assim que em 1056, com apenas vinte e três anos, Anselmo — mais tarde Bispo da Cantuária, canonizado em 1163 — se entregou a uma viagem de mais de setecentos quilómetros, de Aosta, na sua Itália natal, em direcção à actual França. O seu objectivo era algo indefinido, o que não é invulgar quando se tem a sua idade: oscilava entre a atracção que sentia pela vida monástica e por uma carreira intelectual. Mas as duas opções não eram incompatíveis: no seu tempo, uma parte importante da vida intelectual ocorria sob a protecção dos muros dos mosteiros, com as suas ricas bibliotecas. E era no mosteiro beneditino de Bec, na Normandia, que estava o italiano Lanfranc (1005–1089), famoso pela sua sapiência e ensino, de quem Anselmo pretendia receber instrução. Pôs, por isso, pés a caminho em direcção a Bec e a Lanfranc.
O mundo em que Anselmo vivia era tumultuoso. Sob a aparente complacência dos ritmos feudais escondia-se um conturbado reajuste político entre reis, imperadores e poderes eclesiásticos. Dois anos antes de Anselmo pôr pés a caminho, o papa católico Leão IX e o patriarca de Constantinopla, Miguel Cerulário, tinham-se excomungado entre si, marcando assim o grande cisma cristão, que dura até hoje, entre a igreja católica e a ortodoxa. Além disso, há muito que tinham desaparecido os centros de investigação da Antiguidade grega e romana. As escolas de filosofia gregas tinham sido extintas há cerca de quinhentos anos; a Biblioteca de Alexandria, que era igualmente um centro de estudos, e não apenas um repositório de livros, fora destruída há trezentos anos. Das cinzas da civilização clássica europeia, começavam a despontar os grandes centros medievais de estudo. A primeira universidade propriamente dita, com diferentes áreas de estudo, foi fundada na Itália, em Bolonha, em 1088, quando Anselmo tinha cinquenta e cinco anos. Seguiu-se-lhe a Universidade de Paris, fundada em 1150, e a Universidade de Oxford, pouco depois.
Porque se aceita acriticamente a rejeição da cultura medieval promovida pelos modernos, a investigação filosófica e científica ocorrida desde o tempo de Anselmo até ao despontar do mundo moderno, por volta do século XVII, é muitas vezes negligenciada. Em 1328, por exemplo, o Doctor Profundus, Thomas Bradwardine (1290–1349), apresentou o primeiro tratamento matemático do movimento, no Tratado das Proporções ou sobre as Proporções das Velocidades no Movimento; e João Buridano (1300–1358) desenvolveu a teoria do ímpeto, crucial para o desenvolvimento da física. O primeiro modelo heliocêntrico do universo, por outro lado, não é um produto da cultura moderna: foi proposto por Nicolau Oresme (1320–1382). E as cartas de navegação, que teriam sido muitíssimo úteis aos gregos e romanos da Antiguidade, surgiram igualmente em plena Idade Média, em 1270.
Anselmo teve um papel crucial no desenvolvimento da filosofia medieval, sendo considerado o primeiro escolástico — termo que ainda hoje, nas zonas mais débeis da cultura, é entendido pejorativamente, por influência dos modernos. Insistindo na importância da expressão clara e do rigor, Anselmo afastou-se definitivamente do misticismo neoplatónico, na altura dominante, com origem em Plotino (205–270). Chegado a Bec, em 1059, Anselmo fez os seus votos monásticos e foi como monge que escreveu as obras que viriam a torná-lo muitíssimo influente durante séculos: Monologion (monólogo) e Proslogion (termo inventado por Anselmo, que afirma significar “discurso apresentado a outrem”). O estilo das duas obras é bastante diferente, apesar de em ambos os casos se tratar de descobrir as razões a favor da crença em Deus. Porém, enquanto a primeira é uma argumentação directa, sem adornos, a segunda é como que uma oração, uma súplica a Deus para que este permita ao crente compreender a sua fé. Os títulos alternativos das duas obras são reveladores: à primeira deu Anselmo o título “Cânone para meditar sobre as razões da fé”; e à segunda “A fé em busca da compreensão”, uma expressão que colheu de Agostinho.
Os medievais conheciam o argumento a favor da existência de Deus que Anselmo apresentou na segunda das obras mencionadas simplesmente como argumentum Anselmi: o argumento de Anselmo. Mas Kant chamou-lhe argumento ontológico, designação que se tornou comum. Esta designação, ainda hoje usada, pretende assinalar que se trata de um argumento que parte de uma reflexão sobre a natureza última desse ser hipotético a que chama “Deus”, e conclui, nessa base apenas, e sem apelar a quaisquer outros factos sobre a realidade, que esse ser existe.
Anselmo procura mostrar que o insensato bíblico, que diz no seu coração que Deus não existe (Salmos 14 e 53), se contradiz. A natureza de Deus é tal que a hipótese da sua inexistência é contraditória. E que natureza é essa? Deus, considera Anselmo, é um ser de tal modo grandioso que não se consegue conceber outro que seja ainda mais grandioso. Anselmo formula esta ideia usando uma expressão que ficou famosa: Deus é o ser maior do que o qual nada pode ser pensado. Contudo, Anselmo não tem em mente a grandeza física, mas antes a grandiosidade, excelência ou esplendor. A ideia é que Deus é o mais excelente dos seres, ou o mais grandioso; tão grandioso, que a hipótese da sua inexistência implica uma contradição:
Assim, mesmo o insensato tem de admitir que algo maior do que o qual nada pode ser pensado existe pelo menos no seu entendimento, dado que ele o entende quando o ouve, e o que é entendido existe no entendimento. E certamente que aquilo maior do que o qual nada pode ser pensado não pode existir apenas no entendimento. Pois se existisse apenas no entendimento, poder-se-ia pensar que existia na realidade também, o que seria ainda maior. Logo, se aquilo maior do que o qual nada pode ser pensado existe apenas no entendimento, então a própria coisa maior do que a qual nada pode ser pensado é maior do que a qual algo pode ser pensado. Mas isto é claramente impossível. Logo, não há dúvida de que aquilo maior do que o qual nada pode ser pensado tanto existe no entendimento como na realidade. (Proslogion, Cap. 2, p. 82)
O texto de Anselmo é maravilhosamente claro, preciso e directo, mas sofisticado. Acompanhemos o seu pensamento, passo a passo, com a mesma solicitude com que Anselmo percorreu mais de setecentos quilómetros em busca da compreensão.
O insensato admite que as pessoas pensam em Deus, ainda que este não exista realmente. Isto significa que Deus existe no pensamento ou entendimento, ainda que não exista na realidade. O mesmo se pode dizer de qualquer ficção: é algo que existe no pensamento ou entendimento do seu criador — um romancista, por exemplo — mas não existe na realidade. E é isto que o insensato pensa que é Deus: uma mera ficção. Contudo, Deus é por definição aquele ser, seja ele qual for, exista ou não, que é tão grandioso que é impossível conceber outro que seja ainda mais grandioso. E o insensato aceita também esta ideia — apenas continua a insistir que esse ser é uma fantasia, não existindo na realidade. Ora, é aqui que Anselmo desfere o seu golpe mortal. Se Deus existisse apenas no entendimento, poderia haver outro ser, exactamente como ele, mas que existisse também na realidade. Este ser seria certamente mais grandioso do que Deus, pois teria existência real, o que é certamente uma excelência. Vendo bem, chegou-se a uma contradição. Isto porque se admitiu que Deus é por definição o ser mais grandioso do que o qual nenhum pode ser pensado, e depois pensou-se num ser mais grandioso do que Deus. Para negar esta contradição, rejeita-se a hipótese de partida: a ideia do insensato de que Deus, o ser mais grandioso do que o qual nada pode ser pensado, não existe. Logo, Deus existe.
O pensamento de Anselmo é maravilhoso e estimulante; ao longo dos séculos, tem exercido um fascínio merecido, e em parte porque levanta uma perplexidade central. Por um lado, não se vê exactamente o que está errado; por outro, é muito difícil aceitar que se consegue provar adequadamente a existência de Deus partindo apenas do próprio conceito de Deus. Gaunilo, um monge beneditino da Abadia de Marmoutier que teria ficado esquecido nas brumas da história não fosse a generosidade de Anselmo, escreveu a primeira resposta óbvia: “Liber pro insipiente”, Em Defesa do Insensato. Anselmo manifestou o desejo de ver sempre a objecção de Gaunilo publicada juntamente com o seu texto original, e é isso que ainda hoje se faz. Este desconhecido monge não só escreve com elegância e inteligência, como a sua objecção é perfeitamente adequada, mostrando que pela mesma linha de raciocínio se prova que existe a Ilha Perfeita — a ilha mais maravilhosa do que a qual nenhuma outra pode ser pensada. E conclui com muito humor:
Se alguém quiser persuadir-me de que esta ilha existe realmente para lá de qualquer dúvida, irei pensar que está brincando ou terei dificuldade em decidir qual de nós é mais insensato — eu, se concordasse com ele, ou ele, se pensar que demonstrou a existência desta ilha com alguma certeza, a não ser que me tivesse convencido primeiro de que a sua própria excelência existe no meu espírito precisamente como uma coisa que existe verdadeira e indubitavelmente e não apenas como uma coisa irreal ou duvidosamente real.
Esta objecção está, no fundamental, correcta. A diferença é que hoje temos instrumentos muitíssimo mais precisos para mostrar exactamente onde está o erro do raciocínio original de Anselmo; e este trabalho é muitíssimo importante porque o erro não é raro e reaparece em vários contextos.
Apesar dos avanços modernos da lógica, não há qualquer leitura literal do pensamento de Anselmo que seja susceptível de exame porque não se consegue ver a estrutura lógica da impossibilidade por ele invocada e que que, supostamente, é uma simples contradição. Uma das frases centrais que Anselmo tem em mente é a seguinte: é possível que exista uma entidade mais grandiosa que qualquer outra. Ele parece pensar que esta frase produz uma contradição caso se combine com a afirmação de que não existe essa entidade: não existe uma entidade mais grandiosa que qualquer outra. Porém, não há aqui qualquer contradição, o que se prova fazendo uma árvore lógica com as duas formas lógicas. O pensamento de Anselmo depende crucialmente do conceito de grandiosidade ou excelência, de modo que não se trata de um mero predicado comum, que se capte bem com os recursos da lógica.
Uma maneira de tentar fazer justiça a algo na direcção do que Anselmo parecia pensar, mas afastando-se da letra do seu pensamento, é a seguinte: parece razoável aceitar que Deus, caso exista, é um existente necessário. Um existente necessário é algo que existe e não poderia não ter existido. Isto contrasta com os existentes contingentes, como os seres humanos ou os rios, caso possam não ter existido. Isto capta parcialmente a ideia de que Deus é o mais excelso dos seres quanto à existência: excepto ele (e talvez entidades platónicas como os números, se existirem), tudo o mais existe contingentemente. Ora, parece razoável que o ateu aceite a mera hipótese da existência de tal entidade; acontece apenas, pensa o ateu, que ela afinal não existe. Assim, o ateu parece aceitar que Deus poderia existir necessariamente, mas acrescenta que não existe. E é aqui que Anselmo parece ter razão: estas duas afirmações parecem contraditórias. Em algumas condições de verdade, como talvez Anselmo tenha entrevisto, as frases “Deus é possivelmente um existente necessário” e “Deus não existe” são realmente contraditórias.
Contudo, a possibilidade aqui em questão é meramente conceptual, pois o ateu admite apenas que é conceptualmente possível, e não realmente possível, que Deus exista necessariamente. Por isso, o raciocínio é falacioso: o operador meramente conceptual de possibilidade não permite inferir seja o que for de substancial, como se prova facilmente com os recursos modernos da lógica. Afinal, apesar de Immanuel ser Kant, é conceptualmente possível que não o seja; mas a lógica moderna prova que isso não é realmente possível. A mera possibilidade conceptual seja do que for não implica que isso é realmente possível. Noutra interpretação do pensamento de Anselmo, a falácia aqui presente torna-se talvez mais evidente:
É possível que Deus exista.
Ou Deus existe necessariamente, ou Deus não existe necessariamente.
Logo, Deus existe.
Esta forma de raciocínio, caso fosse válida, permitiria também provar que qualquer conjectura matemática ainda por provar (como a conjectura de Goldbach) é verdadeira, partindo da sua possibilidade conceptual e da ideia razoável de que a conjectura ou é necessariamente verdadeira ou necessariamente falsa. O diagnóstico é o mesmo: da mera possibilidade conceptual de uma frase qualquer ser verdadeira nada se conclui validamente de substancial, mesmo que essa frase seja necessária. Claro que da possibilidade genuína de uma frase ser verdadeira, juntamente com a premissa “Ou essa frase é necessariamente verdadeira, ou necessariamente falsa”, conclui-se validamente (por silogismo disjuntivo) que é verdadeira. A questão é que não se sabe se Deus é genuinamente possível, pois isso não se infere da sua possibilidade meramente conceptual, tal como não se sabe se é realmente possível que a conjectura de Goldbach seja verdadeira, ainda que seja possível no sentido terrivelmente fraco de não se saber por meios puramente conceptuais que é falsa — e é só isso que a expressão “possibilidade conceptual” quer dizer. É conceptualmente possível tudo o que não se sabe por meios puramente linguísticos ou conceptuais que é falso, mas desta ausência de conhecimento nada se infere de substancial. “Conceptualmente possível” não significa que se tem conhecimento de uma espécie especial de possibilidade, mas antes que não se tem uma maneira especial, meramente linguística ou conceptual, de saber.
A moral da história é que quando se afirma a possibilidade de algo é preciso ver se acaso se quer dizer apenas que é conceptualmente possível; nesse caso, trata-se mais de um beco sem saída inferencial do que de um bilhete gratuito em direcção à conclusão desejada. A mera possibilidade conceptual é apenas o que não se sabe conceptualmente, e do que não se sabe há que fazer silêncio porque disso exclusivamente nada de substancial se infere validamente.
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