por José Reinaldo de Lima Lopes
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Há cem anos nascia John Rawls e há cinquenta era publicado o seu Uma teoria da justiça. Os rumos da conversa, diz Thomas Nagel,[1] nunca mais foram os mesmos depois desse livro. Seus críticos nunca desprezaram a importância da obra,[2] e seus admiradores nunca deixaram de reconhecer que merecia ser expandida ou mesmo retificada em alguns pontos, quando não em suas perspectivas mais gerais.[3] A importância de sua teoria é evidente para todos os que se dedicaram à filosofia política e do direito na segunda metade do século XX, mas também para ele mesmo. Embora não tenha sido homem de um livro só, pois as respostas às críticas e à recepção da obra mereceram outros livros e algumas adaptações, como no caso de O Liberalismo político, a verdade é que ele pode ter sido homem de um tema só. Charles Taylor usou a respeito de seu próprio trabalho a saborosa expressão “obra de um monomaníaco”.[4] Rawls foi também uma espécie de monomaníaco. E isso vale como um reconhecimento positivo. Havia para ele um problema a ser enfrentado, um grande problema, o problema mais relevante, em torno do qual tudo o mais, na filosofia e na ciência política deveria girar: a justiça. E basta.
Com isto em mente, escreveu um clássico. Entre as muitas definições de livro clássico, Ítalo Calvino fornece-nos duas que caem como uma luva para a obra de Rawls: “um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer” e “um clássico é uma obra que provoca incessantemente uma nuvem de discursos críticos sobre si, mas continuamente a repele para longe.”[5] É o que acontece com Uma Teoria da Justiça, referida simplesmente como TJ nos meios familiarizados com o assunto. Sempre tem algo a dizer e sempre provoca críticas.
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A publicação de TJ foi precedida de duas décadas de estudos e preparação e de um contínuo e combinado interesse pela ideia de justiça, pela teoria moral, pela teoria da decisão e das instituições, inclusive pela teoria do direito. Desde os anos 1950 Rawls publicava artigos sobre suas pesquisas parciais sobre o tema, anunciando os temas que viriam a ser consolidados em sua obra magna, como “Outline of a decision procedure in ethics” (1951), “Two concepts of rules” (1955), “Justice as fairness” (1957 e 1958), “The sense of justice” (1963), “Constitutional liberty and the concept of justice” (1963) e “Distributive justice” (1968). Depois de publicada sua Teoria, em 1971, houve-se com as críticas, muitas das quais permitiram que refinasse e esclarecesse alguns pontos, e de certo modo seu Liberalismo político (1993) consolida suas respostas.
O que faz Uma teoria da justiça tão importante? Além de sua pretensão de oferecer uma síntese inovadora, bem destacada por Thomas Pogge,[6] duas dimensões de seu contexto. A primeira refere-se ao ambiente intelectual no qual desponta, a segunda ao ambiente institucional propriamente dito.
Quanto ao ambiente intelectual, trata-se da predominância ainda naquela época de certo positivismo na ciência política, segundo o qual o objeto de seu estudo deveria concentrar-se nos procedimentos e resultados mais ou menos eficientes de algum arranjo político. Essa eficiência seria medida à moda utilitarista, ou seja, tomando como bem algo externo e exterior (algo positivo) que se pudesse controlar, contar, avaliar com alguma régua. Essa é a razão pela qual Rawls toma o utilitarismo como seu adversário explícito e direto. Ao mesmo tempo, seu engajamento com a filosofia moral confrontava a perspectiva filosófica do positivismo lógico. A razão não poderia limitar-se às proposições “com valor de verdade”. Esse ponto de vista antipositivista abrir-lhe-á o diálogo com as correntes de filosofia debruçadas justamente sobre a razão prática.
É assim, por seu afastamento das discussões positivistas e, logo, por sua abertura à discussão propriamente moral substantiva que alguns de seus opositores, nomeadamente os comunitaristas, poderão dirigir-lhe críticas — e dialogar — a respeito dos limites de sua teoria. De fato, sua concepção de justiça carrega um forte acento procedimental e individualista: a justiça natural é em primeiro lugar formal, o tratamento igual de casos iguais e o tratamento universalmente igual dos seres humanos. Mas o fundamento não é formal, senão substantivo: os seres humanos merecem uns dos outros o tratamento igual nas suas necessidades básicas: naturais (acesso aos bens que lhes garantam a vida orgânica) e sociais (acesso aos bens que lhes garantam respeito, autoestima, poder de decidir).
A segunda dimensão — a institucional —, intimamente ligada à primeira, diz respeito aos fundamentos e justificativas do então nascente Estado de bem-estar. Trata-se mesmo do ambiente social e de confronto político das décadas pós-1945 que exigia mudanças de regime constitucional para a sobrevivência do liberalismo. Neste caso, Rawls propõe-se a defender que esse Estado não é apenas um arranjo, um modus vivendi, que se explica e justifica apenas pela conjuntura da derrota da extrema direita na Segunda Guerra Mundial. Esse Estado tem uma razão de ser moral e suas instituições deveriam ser concebidas em função desse ideal. O Estado de bem-estar é uma criação ética, justifica-se por ser uma forma de levar em conta os princípios da justiça: promove a liberdade dos cidadãos — e nisso promove e protege as diferenças — e visa distribuir de maneira igualitária (justa) os bens sociais primários. Essa forma de Estado, democrática, constitucional e intencionalmente compensadora de desigualdades, precisa de uma justificativa racional, pode ser submetida a uma crítica moral.
É por isso que sua obra é uma fértil junção de filosofia moral e ciência política, e na época forneceu uma síntese desafiadora. Essa a razão pela qual foi discutida, desafiada e incorporada tanto por filósofos morais quanto por cientistas políticos e economistas. Se de um lado valeu-se expressamente de recursos conceituais desenvolvidos na teoria econômica de seu tempo — particularmente dos estudos de racionalidade estratégica e de teoria da escolha racional —, de outro fez uso de instrumentos especificamente tirados da filosofia moral propriamente dita e, segundo sua concepção, de instrumentos diretamente tributários da matriz kantiana e contratualista: universalismo, contratualismo, imparcialidade.
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A teoria da escolha racional por ele utilizada necessitava, contudo, certa adaptação, uma vez que no contexto social transformar-se-ia facilmente em racionalização e manipulação da vida humana. Seu uso da racionalidade instrumental, aliás, esteve na base de diversas análises de sua obra, como aquela efetuada por Höffe ou mesmo Arrow.[7] Essa adaptação ele a fez propondo uma distinção entre o racional e o razoável: o primeiro refere-se ao cálculo, o segundo ao acordo/diálogo entre seres humanos. O uso dessa terminologia fornece uma resposta a alguns críticos e permite que se recupere a distinção ainda mais básica entre a razão produtiva da técnica e a razão prática da moral. A vida humana em sociedade exige uma junção dessas duas formas de racionalidade, pois cooperamos com outros seres humanos tanto para produzir nossa vida material (e institucional), quanto nos relacionamos com nossos semelhantes para nos tornarmos sujeitos propriamente ditos, capazes de linguagem e autonomia, isto é, capazes de conduzirmos e partilharmos vidas significativas.
Rawls desejava, porém, que seu conceito de justiça fosse distinto de outras perspectivas morais, que não se baseasse naquilo que ele chamou de concepções densas de bem (thick conceptions of the good), e que não implicasse discussões últimas a respeito dos fundamentos da moral, que ele chamou de concepções metafísicas. Daí sua insistência em que sua teoria era política e não metafísica, e que tomava como ponto de partida o certo/direito (right) e não o bem/bom (good). Uma teoria da justiça que explicite, explique e justifique uma forma de vida social deveria ser capaz de convencer, de ser inteligível e aceitável, tanto para céticos quanto para crentes. Isso, segundo ele, permitiria compreender o valor mais importante da tradição liberal: sua capacidade de permitir a existência de um plano de vida civil entre os seres humanos, moral e justificável mesmo que individualmente pudesse haver entre os membros da sociedade desacordo concernente ao fundamento último das formas de vida humana.
Para explicar esse ponto de vista, ele se vale da expressão “justiça como imparcialidade”, justice as fairness. Embora tenha se tornado comum no Brasil traduzir os termos de Rawls com “justiça como equidade”,[8] convém-nos usar mesmo imparcialidade. Em primeiro lugar porque seria a melhor tradução da palavra dicionarizada em inglês.[9] O dicionário de língua inglesa[10] dá alguns significados relevantes para o tema e entre eles dois em particular referem-se às relações sociais ou interindividuais: “(4) aberto, franco, honesto, logo igual; justo; equânime; imparcial; despido de preconceitos; como em uma oferta ‘fair’;” e “(8) de acordo com as regras, como em uma derrota ‘fair’.” Quando Rawls insiste em que sua teoria da justiça trata-a como fairness, creio que está pensando nesses significados. A justiça é a honestidade, a franqueza, a equanimidade, a imparcialidade, a ausência do pré-julgamento (preconceito), o seguimento das regras. Regras que, por seu turno, garantem a existência de relações e instituições respeitadoras da honestidade, da franqueza, da imparcialidade. Ora, todos esses termos explicam muito mais o que Rawls queria dizer porque de certo modo ele os utiliza ao longo de sua obra. Essa imparcialidade revelar-se-ia naquela forma tradicional e clássica: a imparcialidade dos juízes. A justiça formal, isto é, a justiça do juiz imparcial é pura e simplesmente a regularidade das decisões, o afastamento do capricho, da perseguição, do arbítrio. Por si mesma, lembra Rawls, ele já exclui formas importantes de injustiça. Ela é, para as instituições jurídicas (legais e judiciais), simplesmente “um aspecto do governo das leis” (rule of law) ou do estado de direito. “Uma espécie de injustiça é a incapacidade de os juízes e outras autoridades se conformarem às regras adequadas e a sua interpretação ao decidirem processos.”[11]
Ele insistiu sempre que não se tratava de simplesmente aceitar esses desacordos como algo mau, como uma deficiência, como um defeito da vida social e individual, mas como um componente inafastável da vida humana, que sempre é social. Em outras palavras, ele se filiava aqui a uma longa tradição de pensamento a respeito da tolerância: esta não deve ser imaginada como algo que se aceita como segunda escolha, como alternativa “menos pior” (second best), mas como parte positiva e valiosa da experiência humana. A pluralidade não é o que se aceita em troca da impossibilidade de criar uma vida social homogênea.
Todas essas formas de liberdade e autonomia, que têm prioridade em sua teoria, não se estendem, porém, às liberdades do capital.[12] De fato, para Rawls os bens primários, que para nós juristas podem ser o objeto de proteção dos direitos fundamentais, nunca pertencem a instituições (como o Estado ou as corporações capitalistas). Bens primários pertencem a seres humanos de carne e osso, aquilo que na tradição jurídica ocidental sempre se reconheceu como “homem nascido de mulher”[13] com forma humana e capacidade de viver e respirar por si.[14] Eles são “coisas que se presume que todo ser humano (man) racional deseje” e os que a sociedade pode distribuir são “direitos e liberdades, poderes e oportunidades, renda e riqueza”, além de “autoestima” ou “autorrespeito”.[15]
Aqui a teoria moral de Rawls põe um claro limite à pretensão do capital de ser tratado como sujeito de direitos morais fundamentais. Se houver razões para a defesa do capital, elas serão de conveniência, não morais nem fundamentais. Terão, portanto, caráter estratégico, não valor de princípio. Essa, aliás, é uma das razões que permitem a um jurista entender por que os direitos fundamentais individuais estão previstos na Constituição brasileira no artigo 5o, enquanto os direitos do capital estão previstos no art. 170. O primeiro diz respeito aos direitos fundamentais propriamente ditos, que se referem aos bens primários, enquanto o segundo diz respeito a direitos de ordem estratégica, não moral. Assim, uma é propriedade que garante às pessoas os bens necessários a seu uso e consumo pessoal, outra é a propriedade dos bens de produção. Ambas têm justificativas de ordens distintas.
Ao lado dos bens primários sociais, existem bens primários naturais: saúde, vigor, inteligência e imaginação, diz Rawls.[16] Por isso, porque são igualmente necessários para qualquer ser humano, bens primários devem ser universalmente acessíveis e igualmente distribuídos. Ninguém merece mais nem menos dos bens naturais, que em vários momentos são apenas fruto da “loteria da vida”, da sorte. Uma sociedade justa compensa essa loteria. Essa é uma ideia fundamental e central em Rawls: uma razão de ser dos arranjos políticos é compensar os membros da comunidade política (a república, diz-se tradicionalmente na filosofia política) pelas diferenças da loteria da vida. Uma organização política não é ela mesma um arranjo casual da vida, ela não faz parte da natureza orgânica que “distribui” aleatoriamente saúde, beleza, vigor, capacidades intelectuais… Bem ao contrário, as instituições suprem e diminuem essas diferenças. Por isso, diz Rawls, as diferenças só podem ser aceitas — na distribuição dos bens sociais — se houver para elas uma justificativa que deve sempre visar ao melhoramento dos que estão pior situados na vida social — tanto aos que forem menos agraciados por bens naturais (vigor, por exemplo) quanto por bens sociais (oportunidades, por exemplo).
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Por que dizer que sua teoria é política e não metafísica? Por que dizer que dispensa uma concepção densa de bem? Aqui valem alguns esclarecimentos que talvez ajudem a esclarecer esses dois pontos. Sua teoria é política, e não metafísica, porque diz respeito àquilo que a tradição pré-moderna chamava de justiça geral ou justiça legal: uma virtude — ou seja, uma capacidade desenvolvida e adquirida — de criar, promover e zelar pelo bem da república, não dos cidadãos em particular. Creio que vale a pena, para melhor compreender Rawls, voltar a esses conceitos tradicionais, exemplarmente elucidados por Aristóteles e Tomás de Aquino.[17] Por isso, sua teoria é política: pela natureza do bem a que se refere, o bem público, comum ou, como ele disse, “a estrutura básica da sociedade”. Exatamente por isso ele acredita que esse bem, o bem comum da república, requer uma concepção “delgada” de bem. Creio que não se deve confundir o “delgado” (thin) de Rawls com o superficial (shallow). Esse bem é delgado não porque não seja firme, profundo ou sólido, mas porque está concentrado apenas em um aspecto do bem necessário à vida das pessoas. As pessoas individualmente podem ter concepções densas de bem, mas nas suas vidas particulares. E a densidade desse bem em suas vidas só pode ultrapassar as fronteiras da vida privada e dos grupos de interesse se conseguir justificar-se como algo que possa ser universalizado. E daí a importância de todos os mecanismos de razão que se devem usar na crítica da moral tradicional — mecanismos de razão, aliás, que permitem a pessoas autônomas estabelecerem bases aceitáveis para a vida comum.
Passado meio século, TJ continua a impressionar no ambiente contemporâneo porque sua proposta essencial é anticonformista. A obra não pretende justificar um arranjo social em nome de sua eficiência econômica. Muito discurso contemporâneo, inclusive ou talvez principalmente no campo jurídico, tende a substituir a racionalidade jurídica, cujo objeto é o justo e o legal, pela racionalidade econômica, cujo objeto é o eficiente,[18] o que, implica depois a perda de capacidade crítica das instituições tais como se encontram. De fato, Rawls aceita de bom grado dialogar com a racionalidade econômica ou estratégica ao afirmar que “a teoria da justiça é uma parte, talvez a parte mais significativa, da teoria da escolha racional”[19] e sua visão contratualista, diz ele, “é parte da teoria da escolha racional”.[20] Mas, no fundo, seu projeto é de outra natureza. Nas palavras iniciais do livro ela se exprime de forma lapidar: “A justiça é a primeira virtude das instituições sociais, como a verdade o é para os sistemas de pensamento. Uma teoria, não importa quão elegante e econômica, deve ser rejeitada ou revista e não for verdadeira; da mesma forma, as leis e as instituições, não importa quão eficientes e ordenadas, devem ser reformadas ou abolidas se são injustas.”[21]
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O que significa isso? Que seu projeto — teórico e de vida — afasta-se completamente tanto de uma providência divina quanto dessa outra providência, o mercado. A respeito de seu abandono da religião na qual havia sido educado, Rawls afirma: “Para que se interprete a história como uma expressão da vontade de deus, a vontade de deus deve conformar-se com as ideias mais elementares de justiça como nós as conhecemos. Pois, que outra coisa pode ser a justiça mais elementar?”[22] Para crermos em deus, é preciso que ele seja justo.[23] A situação de pobreza e humilhação completamente imerecidas de muitos seres humano, por sua etnia, cor, classe social e sexo, não lhe parecia obra divina, mas humana. E o conformismo religioso incomodava-o pessoalmente. O problema do mal, todos sabem, é o mais difícil de se enfrentar quando se postula a existência de um deus à maneira cristã, como o revelam magnificamente a obra de Agostinho de Hipona e o Livro de Jó, pungente interpelação a deus da parte de um inocente.[24]
Para Rawls, o problema não era o do mal em geral, mas o mal da injustiça em particular, defeito e vício da vida social. Isso se colocava para ele como convicção racional e existencial. Não poderia, pois, curvar-se diante das injustiças constituídas e mantidas na sociedade por deliberações jurídicas. Como poderia sacrificar a justiça à eficiência? Ou à manutenção da ordem? Ler essa controvérsia sob esse prisma engrandece ainda mais sua obra, especialmente aos olhos de um jurista, quando a tecnocracia jurídica resiste até hoje em nossas escolas de direito, e professores continuam a afirmar que as leis não precisam ser compreendidas na chave da justiça, ignoram ligeira e superficialmente os elementos mais básicos do tema justiça, ou de bom grado põem-se a servir à economia e ao mercado, como se fossem forças providenciais. Aproximarmo-nos da obra de Rawls nessa altura pode ainda ser uma sacudidela nessas ideias. Nela se encontra a longa e detalhada elaboração do caráter racional das instituições sociais (e seu arcabouço legal, portanto), diferente, entretanto, de uma justificação em nome da eficiência.
Se é certo, porém, que ele justifica e fundamenta o Estado de bem-estar como solução democrática, liberal e igualitarista, é também certo que sua obra não confronta, a não ser tardiamente, outras questões surgidas nas décadas seguintes. Uma delas é a questão global do clima, do meio-ambiente, da preocupação com as gerações futuras. Outra refere-se aos problemas da discriminação que foram aos poucos ganhando os contornos de “política da identidade”. Não que Rawls não estivesse atento à injustiça da discriminação. Discriminações sexuais e raciais, diz ele expressamente, “pressupõem que alguns detêm uma posição vantajosa no sistema social que estão dispostos a explorar para seu próprio benefício. Do ponto de vista de pessoas em situações semelhantes numa posição inicial os princípios de doutrinas racistas não são apenas injustos. São irracionais. Por tal razão poderíamos dizer que eles não são absolutamente concepções morais, mas simples meios de supressão. Eles não têm lugar numa lista razoável de concepções tradicionais de justiça.”[25] Seria preciso dizer mais? E, contudo, os movimentos antidiscriminação na segunda metade do século XX e nas primeiras décadas do século XXI mostraram que a discriminação de subordinação e de humilhação não cessa com a remoção das leis segregacionistas, como havia exemplarmente nos Estados Unidos e na África do Sul. Essas segregações sociais sobrevivem como resquícios de longa duração nas interações sociais desafiando a justiça.
Alterações no modelo de produção também afetaram a distribuição de riqueza e oportunidades, com as quais sonhava Rawls, sugerindo que existe agora a necessidade de, mantidos os princípios morais, redesenhar muitas instituições mais do que talvez coubessem nas constituições dos Estados liberais e democráticos dos finais do século XX.
Rawls não foi apenas grande filósofo, mas também grande professor. A lista de quem estudou com ele, freqüentou seus seminários, ou foi de algum modo treinado por ele inclui alguns dos mais importantes pensadores do mundo de língua inglesa da segunda metade do século XX: Thomas Nagel, Onora O’Neill, Christine Korsgaard e Tim Scanlon, para ficar em poucos exemplos.[26]
O acordo geral sobre a importância da obra de Rawls diz respeito, afinal de contas, ao fato de ter devolvido à teoria moral a preeminência que lhe havia sido retirada por décadas, para não dizer séculos, de positivismo. Ele o fez articulando aquilo que muitos consideravam — e alguns consideram até hoje — objetos distintos e inconciliáveis: teoria moral, teoria das instituições, teoria da decisão, fundamentos jurídicos e constitucionais de estados modernos, teoria do direito, reflexão sobre a natureza do bem e dos bens, filosofia moral enfim.
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Notas:
[1] Thomas Nagel, Equality and partiality (New York/Oxford: Oxford University Press, 1991).
[2] Como atesta a resenha feita por Kenneth Arrow, “Some ordinalist-utilitarian notes on Rawls’s Theory of Justice,” The Journal of Philosophy 70, n. 9 (May 1973): 245-263.
[3] Como faz Matha Nussbaum, Frontiers of justice: disability, nationality, species membership (Cambridge, MA: Harvard , 2006).
[4] “Despite the appearance of variety in the papers published in this collection, they are the work of a monomaniac; or perhaps better, what Isaiah Berlin has called a hedgehog. If not a single idea, then at least a single rather tightly related agenda underlies all of them.” Charles Taylor, Human agency and language, Vol. 1 (Cambridge: Cambridge, 1985). p. 1.
[5] Italo Calvino, Por que ler os clássicos, trad. Nilson Mouin (São Paulo, SP: Companhia de Bolso , 2011).
[6] V. Thomas Pogge, John Rawls: his life and theory of justice, trans. M. Kosch (Oxford: Oxford University Press, 2007), passim.
[7] Otfried Höffe, “Las figuras conceptuales de la teoria de la decisión y la fundamentación del derecho,” em Estudios sobre teoría del derecho y la justicia, trad. Jorge Seña (Mexico, DF: Fontamara, 1997). Para Arrow, ver nota 2 supra.
[8] A equidade, na filosofia moral clássica, particularmente em Aristóteles, é a virtude que permite a especificação das leis gerais aos casos particulares. Ela é tratada em pelo menos dois pontos relevantes do corpus aristotélico: a Ética Nicomaqueia (V, 1137a, 14 31)e a Retórica(I, 13, 1374a 25) . Em ambas a equidade refere-se à compreensão do particular do caso no dispositivo geral da lei. Mais tarde, no direito canônico em particular, veio a ser tratada como a mitigação do rigor da lei cf. Lawrence Joseph Riley, The history, nature and use of epikeia in moral theology, reprint (slp: Saint Pius X Press, 2012). O primeiro sentido praticamente desapareceu na linguagem corrente entre os juristas.
[9] Por isso Brian Barry vai dizer que a melhor defesa de uma teoria da justiça igualitária e liberal seria a de John Rawls, e vai chamá-la de imparcialidade. Cf. Brian Barry, Justice as impartiality (Oxford, UK: Oxford University Press, 1995), p. 8-9.
[10] Jean McKeshnie, Webster’s New Twentieth Century Dictionary of the English Language (unabridged), 2nd ed. (Collins World, 1978).
[11] John Rawls, A theory of justice (Oxford: Oxford University Press, 1992), p. 59. Princípio elementar do estado de direito, ideia intuitiva para quem quer que disponha de uma concepção mínima de justiça, sua fragilidade no Brasil está por trás de uma fragilidade mais geral de nossa democracia.
[12] No Brasil quem melhor explorou essa distinção entre a defesa dos direitos individuais e os direitos econômicos do capital talvez tenha sido Álvaro de Vita, A Justiça igualitária e seus críticos (São Paulo, SP: Unesp, 2000).
[13] Em latim homo refere-se ao indivíduo da espécie humana qualquer que seja seu sexo ou gênero e pode ser tanto vir (varão, o mas da espécie) quanto mulier (mulher, a femina da espécie). Essa tripartição (homo, vir, mulier) perdeu-se na maioria dos usos coloquiais das línguas neolatinas ou românicas, nas quais homo em geral confundiu-se com o macho da espécie (homem/mulher, homme/femme, uomo/donna…).
[14] José Carlos Moreira Alves, Direito Romano, 9a. ed., Vol. 1 (Rio de janeiro, RJ: Forense, 1995), p. 91-96.
[15] John Rawls, A theory of justice (Oxford: Oxford University Press, 1992), p. 62.
[16] Id. ib.
[17] Desenvolvo mais detidamente essa ideia em José Reinaldo de Lima Lopes, Curso de filosofia do direito: o direito como prática (São Paulo: Atlas, 2020), p. 304-314.
[18] Sobre a relação entre direito e economia v. José Reinaldo de Lima Lopes, “Raciocínio jurídico e economia”, Revista de Direito Público da Economia 8 (out-dez 2004): 137-170, e id. “Direito e economia: os caminhos do debate”, Vol. 1, em Direito e economia: 30 anos de Brasil, ed. M. L. P. Lima, 231-260 (São Paulo, SP: SaraivaJur, 2012)
[19] John Rawls, A theory of justice (Oford: Oxford University Press, 1992), p. 16.
[20] John Rawls, A theory of justice (Oford: Oxford University Press, 1992), p. 47.
[21] John Rawls, A theory of justice (Oford: Oxford University Press, 1992), p. 3. A crítica de G. Cohen à obra de Rawls apontava, contudo, para o problema de seu princípio de diferença introduzir justamente uma justificativa eficientista que permitisse uma justificativa não moral para quem quisesse impor à sociedade certas vantagens. Esse perigo permitiria que os “better off”, os mais bem aquinhoados, “chantageassem” a sociedade se pudessem se retirar dela.
[22] Apud Thomas Pogge, John Rawls: his life and theory of justice, trans. M. Kosch (Oxford: Oxford University Press, 2007), p. 14.
[23] Na tradição cristã oriental invoca-se Deus como “bom e amigo dos homens (filanqropoV)”, e a amizade, sabemos, é ao lado da justiça a mais social das virtudes.
[24] O livro é uma longa queixa, mas também um longa defesa de Jó contra a injustiça, contra o mal de que sofre um inocente, um contraditório entre o ser humano e Deus. “Por que os ímpios continuam a viver, e ao seu envelhecer se tornam ainda mais ricos?” (Jó 21, 7). Seus amigos, que saem em defesa de deus, são afinal derrotados em seus argumentos tanto por Jó, que os acusa de não saberem o que é o sofrimento — todos continuam bem de vida —, quanto pelo próprio deus, que demonstra afinal que a penúria de Jó não se devia a seu comportamento.
[25] John Rawls, A theory of justice (Oford: Oxford University Press, 1992), p. 149.
[26] V. Thomas Pogge, John Rawls: his life and theory of justice, trans. M. Kosch (Oxford: Oxford University Press, 2007), p. 24.
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