A revolução rawlsiana

As revolucionárias implicações da teoria de justiça de Rawls, por Lucas Petroni.

por Lucas Petroni

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Há exatamente cinquenta anos atrás, a editora universitária de Harvard publicava pela primeira vez um volumoso tratado de filosofia política dedicado aos fundamentos morais da justiça distributiva. O autor do tratado era, então, um desconhecido professor de filosofia da universidade chamado John (“Jack”) Bordley Rawls. Surpreendendo até as expectativas mais otimistas da editora, o “monstro verde”, como Uma Teoria da Justiça ficou conhecida devido a cor da primeira edição somada as suas desafiadoras seiscentas páginas de densa argumentação, acabaria por se tornar um imenso sucesso editorial tornando-se algumas décadas mais tarde leitura obrigatória em qualquer curso de filosofia política ao redor do globo[1]. Nesses cinquenta anos que nos separam da primeira edição de Uma Teoria da Justiça (ou simplesmente TJ, como a obra é conhecida por seus leitores e leitoras mais assíduos), o livro foi responsável não apenas por revolucionar o modo como o tema da justiça social tem sido tratado, mas também, em certo sentido, o modo como a própria filosofia política passou a ser praticada a partir da segunda metade do século XX. Não é exagero afirmar que, hoje, TJ ocupa uma posição de prestígio no universo filosófico anglo-saxão equiparável apenas ao Leviatã de Thomas Hobbes (1652), obra-prima da filosofia moderna considerada por muitos e muitas (inclusive pelo próprio Rawls) como a obra de filosofia política mais importante jamais escrita em língua inglesa. Se, de um ponto de vista historiográfico, é difícil separarmos a filosofia política hobbesiana dos problemas acarretados pelo nascimento do Estado moderno, a filosofia rawlsiana tornou-se, por sua vez, indissociável dos problemas normativos, e do próprio destino político, das democracias contemporâneas.

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Capa da primeira edição americana de A Theory of Justice, 1971

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Fruto de quase duas décadas de trabalho, a última em meio aos literalmente explosivos anos 60[2], TJ procura responder a uma pergunta aparentemente simples: qual concepção de justiça social seria a mais adequada para uma sociedade democrática? O objetivo central da obra é responder a essa pergunta oferecendo critérios normativos para regular as bases institucionais de sociedades moralmente diversas, economicamente afluentes e politicamente autogovernadas. No sentido técnico do termo tal como empregado em TJ, uma concepção de justiça (qualquer que seja ela) deve ser entendida como um conjunto coerente de critérios publicamente partilháveis com base nos quais os membros de uma sociedade (cidadãos e cidadãs no caso de uma democracia) podem adjudicar suas reivindicações conflitantes acerca da distribuição apropriada dos benefícios e encargos produzidos pela cooperação social. Uma concepção de justiça nos diria, por exemplo, quais valores fundamentais deveriam ser expressos pelas instituições sociais, nos ajudaria a avaliar a legitimidade da distribuição de oportunidades sociais e renda entre diferentes grupos sociais, ou ainda nos ofereceria parâmetros para o uso legítimo da coerção estatal em sociedades pluralistas.

Contudo, como qualquer pessoa que tenha se dedicado a refletir sobre problemas como esses rapidamente perceberá, a tarefa de encontrar princípios de justiça generalizáveis exige que enfrentemos um problema anterior e indissociável ao primeiro: antes de decidir qual concepção de justiça é a mais apropriada para uma sociedade é preciso decidir, em primeiro lugar, como devemos refletir coletivamente sobre problemas de justiça. Rawls argumenta em TJ que a maneira mais promissora de alcançar a ambos os objetivos — (i) qual concepção de justiça é a mais adequada e (ii) como podemos decidir racionalmente sobre problemas de justiça — é reformulando-os com base em uma teoria contratualista da justiça social, denominada por Rawls de “justiça como equidade”. Como Rawls enuncia logo na abertura de TJ, um dos objetivos principais do livro é o de “apresentar uma concepção de justiça que generalize e eleve a um nível mais alto de abstração” a teoria do contrato social, tal como essa tradição foi formulada “por Locke, Rousseau e Kant” (p. 13)[3]. Seguindo a tradição contratualista, Rawls argumenta que podemos encontrar uma concepção de justiça ao mesmo tempo moralmente adequada e institucionalmente estável para uma sociedade democrática com base em uma construção normativa idealizada na qual agentes racionais escolheriam autonomamente os princípios fundamentais da sociedade na qual deverão conduzir suas vidas. Caso os cidadãs e cidadãos aceitem os resultados gerados por essa construção, então eles serão capazes não apenas de compreender o que a justiça exige de cada pessoa em uma democracia, mas também terão boas razões para aceitar como legítimos os ônus impostos pela cooperação — isto é, caso a cooperação social atenda aos critérios de justiça.  Acima de tudo, princípios de justiça podem ser utilizá-los nos esforços práticos da luta pela transformação da sociedade rumo a formas de vida social mais justas e democráticas.

Concordemos ou não com a ideia central da teoria da justiça rawlsiana, é inegável que TJ foi responsável por revolucionar a natureza e as consequências de argumentos normativos sobre a justiça, uma revolução que não se limitou apenas à filosofia, mas reverberou por entre todas as áreas para as quais conflitos distributivos são elementos constitutivos, tais como a ciência política, a economia, e o direito. Caso queiramos compreender a importância de Rawls para o século XXI, precisamos reconhecer a existência não apenas de uma, mas sim de várias contribuições revolucionárias diferentes presentes na obra rawlsiana. Como vimos, uma parte do teor revolucionário da obra rawlsiana já foi devidamente incorporada ao modo como a justiça é pensada nas democracias contemporâneas. Já outros aspectos revolucionários da justiça rawlsiana ainda estão por serem realizados.

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I

De acordo com a tese contratualista defendida por TJ, uma sociedade justa é uma sociedade na qual as principais instituições sociais são reguladas por princípios de justiça escolhidos autonomamente entre iguais (aqueles e aquelas que viverão sob tais arranjos) em uma “situação original de igualdade” (p. 14). Essa situação, denominada simplesmente de Posição Original, é construída com base no ferramental técnico da escolha social e funciona como um expediente argumentativo a avaliação pública de princípios de justiça. O raciocino moral mais elementar da TJ pode ser apresentado como uma pergunta: quais princípios de justiça social escolheríamos — você e eu — caso tivéssemos que escolhê-los levando em conta apenas a nossa igual autoridade moral de fazer reivindicações, nossa liberdade para levar à cabo nossos projetos de vida particulares, e as circunstâncias usuais da cooperação social? Isto é, caso tivéssemos que tratar uns aos outros, e umas às outras, como co-legisladores de uma vida social em comum. De acordo com a lógica contratualista, critérios de justiça são o resultado do quer que pudéssemos acordar nessa situação original. Logo, a justiça seria o resultado da equidade procedimental entre pessoas iguais em reivindicação moral.

É importante notar que para Rawls, mas não necessariamente para o contratualismo clássico, o expediente contratualista possui uma natureza estritamente hipotética e contrafactual. O tipo de deliberação acerca dos princípios de justiça não deve ser compreendido nem como a realização de um evento histórico específico, nem tampouco ele se restringe à forma de um regime político. Ao contrário, a situação inicial de escolha deve ser entendida como um dispositivo de representação passível de ser acessado pelos membros de uma sociedade — cidadãs e cidadãos “de carne e osso” — quando quer que as partes precisem deliberar publicamente acerca da estrutura básica de sua sociedade, isto é o conjunto de instituições formais e normas socialmente partilhadas que constituem os arranjos sociais fundamentais da vida em sociedade. A perspectiva contratualista é particularmente necessária, de acordo com Rawls, tendo em vista duas características permanentes das sociedades modernas: o pluralismo de valores e doutrinas morais, e a escassez moderada de recursos.

Contudo, antes de continuarmos a explorar o conteúdo do contratualismo rawlsiano, talvez seja útil compreendermos melhor o contexto filosófico na qual TJ foi gestada e, em particular, entender em oposição ao que a justiça como equidade se apresenta como uma alternativa. O caráter “contratual” da teoria rawlsiana deve ser entendido, sobretudo, como uma forma de construtivismo moral, um tipo específico de teoria moral para a qual a correção de uma ação ou uma instituição depende, em última medida, daquilo que as pessoas podem justificar racionalmente umas para as outras em circunstâncias de igualdade. O construtivismo moral concebe a justiça social, ou mesmo a moralidade das nossas ações[4], como um processo de responsabilização interpessoal, na qual uma comunidade de iguais deve justificar suas ações e escolhas umas para as outras com base em princípios gerais as quais nenhuma dessas pessoas poderia recusar. Uma consequência importante de TJ foi, justamente, a de possibilitar a expansão de novos métodos e preocupações da filosofia moral, sobretudo ao revalorizar a prioridade da razão prática na solução de problemas normativos. A possibilidade de pensar o contratualismo como um modo de reflexão teoricamente autônomo, isto é, enquanto um tipo de teoria moral independente e irredutível às famílias éticas tradicionais (i.e. a deontologia, o consequencialismo e a ética de virtudes) tem sido levada adiante, por exemplo, no contratualismo moral de Thomas Scanlon, no constitutivismo de Christine Korsgaard, e na moralidade de segunda pessoa de Stephen Darwall. Todas elas, teorias devedoras do caminho originalmente trilhado por Rawls em TJ[5].

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T.M. Scanlon

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A filosofia analítica dedicou pouco atenção a problemas morais substantivos ao longo da primeira metade do século XX. A própria análise de proposições normativas foi sistematicamente preterida por pesquisas epistemológica ou simplesmente descartada como “sem sentido” do ponto de vista semântico. Os poucos trabalhos sobre filosofia moral restringiam-se à análise lógico-linguística de conceitos morais, que eram avaliados em sua dimensão estritamente formal. O positivo lógico então vigente era fundado em um critério de significação proposicional para o qual uma sentença só é dotada de significado caso seja ou logicamente necessária ou empiricamente testável o que, por sua vez, favorecia uma atitude cética sobre a possibilidade de tratar problemas normativos de um ponto de vista objetivo. Uma das principais razões para essa conclusão é que proposições normativas não podem ser empiricamente verificadas, uma vez que a direção de ajuste entre proposições normativas e o mundo é simetricamente oposta à direção das proposições empíricas[6]. Enquanto descrições e explicações verdadeiras buscam ajustar o modo como pensamos com base em estados de coisas no mundo (como “o mundo é”), prescrições normativas, por definição, buscam alterar estados de coisas no mundo, por meio de nossas ações, atitudes, ou instituições, com base naquilo que acreditamos que seja moralmente correto ou eticamente adequado (como “o mundo deve ser”).

Não devemos nos surpreender, portanto, que uma das alternativas rivais à concepção de justiça proposta em TJ defenda justamente a impossibilidade de critérios objetivos de justiça social — uma posição cética sobre a justiça social que, ainda hoje, continua extremamente influente em departamentos de ciência política e economia. Tal como o ceticismo de tipo epistêmico, o ceticismo normativo é vasto e admite muitas variantes e gradações. Uma possibilidade particularmente radical é o genérico sobre juízos de valores, uma tese típica, mas não exclusiva, do neoliberalismo moral, tal como defendido por autores como James Buchanan e David Gauthier. Valores morais e preferências gastronômicas partilham da mesma importância normativa[7]. Versões filosoficamente mais sofisticadas e mais plausíveis de ceticismo tendem a recusar não tanto a existência de valores objetivos per se, mas sim a possibilidade de encontrarmos uma concepção de justiça generalizável em contextos sociais marcados pelo pluralismo de valores morais. Exemplos dessa forma de ceticismo sobre a justiça podem ser encontrados, por exemplo, no conflito trágico de valores de Isaiah Berlin, ou mesmo no politeísmo de valores de Max Weber, duas maneiras de compreender o pluralismo moral das sociedades contemporâneas que, de algum, estão representadas na TJ entre as concepções de justiça “intuicionistas”, i.e. concepções que rejeitam a possibilidade de critérios racionais para a ponderação objetiva entre valores sociais conflitantes. O mundo da justiça seria limitado por trade-offs insuperáveis entre valores rivais, tais como liberdade individual vs. segurança, crescimento econômico vs. equidade, religião vs. secularismo, etc. O melhor que poderíamos esperar de uma teoria da justiça seria alguma forma de organização institucional desse conflito de reinvindicações, seja através do mercado, do direito procedimental, ou da competição eleitoral. O ponto crucial dessa forma de compreender a justiça é a redução do problema da justiça — diretamente (neoliberais) ou indiretamente (pluralistas) — a um problema contingente de barganha social, um tipo de equilíbrio prudencial que pode eventualmente ser mais ou menos racional, mas que certamente refletirá a assimetria de poder, e outros recursos sociais, controlados entre as partes envolvidas.

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Sir Isaiah Berlin

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Uma segunda concepção de justiça relevante para entendermos o contexto de publicação de TJ é o utilitarismo filosófico. Para as teorias utilitaristas, em quaisquer de suas muitas formas, a única consideração normativa realmente importante são as consequências beneficias de uma determinada ação ou regra social avaliadas com base na maximização do bem-estar, ou das preferências, das pessoas envolvidas. O imperativo de promoção do bem-estar individual (no utilitarismo clássico) ou a satisfação de preferências (no utilitarismo contemporâneo), seria o único critério normativo válido capaz de atender a dupla exigência colocada pela justiça distributiva: por um lado, atender ao pluralismo de interesses e as múltiplas formas de bem-estar socialmente existentes, por outro, fornecer um critério determinado para solucionar reivindicações conflitantes sobre o uso de recursos sociais. Arranjos institucionais justos seriam aqueles cujas consequências distributivas maximizam o bem-estar do maior número de indivíduos concernentes. Tal como argumentado por Rawls, o objetivo de TJ é apresentar uma concepção alternativa de justiça que seja tão coerente e sistemática quanto o utilitarismo filosófico. Uma teoria da justiça que consiga demonstrar os limites e, talvez, suplantar o princípio de utilidade como o critério default de justiça social nas democracias liberais.

O construtivismo moral de TJ rejeitará tanto o ceticismo sobre questões de justiça como o princípio de utilidade, em nome de um procedimento reflexivo no qual os princípios sobre o justo e o injusto devem ser entendidos como o resultado obtido por uma deliberação entre agentes dotados de certas capacidades morais fundamentais, como a de desenvolver de um senso de justiça e a de conceber e revisar concepções de bem viver. O objetivo próprio da teoria moral seria a busca por um equilíbrio de juízos ponderados sobre um mundo (moral) em comum, e não uma derivação de tipo epistêmica sobre a existência ou o fundamento último de juízos morais. O método mais adequado para a teorização normativa é a busca por razões boas e suficientes sobre como devemos agir, e não razões para acreditarmos em (supostos) “fatos morais” exteriores à racionalidade prática humana. Para o construtivismo moral rawlsiano, a única objetividade que precisamos para refletir sobre problemas de justiça é fruto de um espaço de razões cuja geografia depende apenas, de um lado, das exigências internas à racionalidade prática humana e, de outro, de agentes livres, iguais e motivados a justificar suas ações uns para os outros. Notemos que esse modo de conceber a teoria moral não nos impede de maneira alguma de chegarmos a resultados céticos, ou até mesmo a endosar critérios distributivos de tipo consequencialista. Essas (e outras tantas) são possibilidades permanentes na posição de construção inicial: princípios normativos são os resultados obtidos em um contexto de deliberação moral na qual qualquer agente racional poderá formular, apresentar e justificar razões práticas, isto é, razões sobre como devemos agir. O ponto é não nos deixar esquecer que a autoridade moral última na escolha e implementação de uma concepção de justiça será o espaço de razões construídos entre agentes morais livres e iguais.

A metodologia rawlsiana representa, nesse sentido, uma síntese intelectual única constituída, de um lado, pelo contratualismo democrático de Rousseau e pela teoria moral kantiana, mas, por outro, pelo compromisso anti-positivista de seus colegas pragmatistas de Harvard (W. V. O. Quine, Nelson Goodman e Burton Dreben), pelo anti-fundacionismo de inspiração wittgenstiania do pós-Segunda Guerra (Norman Malcom e Max Black) e, finalmente, pela renovação metodológica das ciências sociais advinda do emprego de métodos formais na teoria da decisão e na economia do bem-estar, renovação essa incorporadas por Rawls através de uma parceria intelectual duradoura com alguns dos economistas-filósofos mais importantes do século passado, como Kenneth Arrow e Amartya Sen. A recepção crítica do contratualismo rawlsiano foi uma das grandes responsáveis (mas não a única) pela revalorização de problemas morais substantivos e pelo retorno de teorias fundadas na primazia da razão prática na filosofia contemporânea, rompendo de modo decisivo com as limitações do formalismo linguístico e do fundacionismo empiricista até então inquestionáveis na filosofia analítica do século XX.

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II

Em que medida o contratualismo nos ajuda a conceber e justificar princípios de justiça para uma sociedade democrática? Como vimos, a situação original rawlsiana é constituída como uma forma de decidir, de maneira publica e determinada, de que modo as instituições sociais deveriam distribuir recursos sociais fundamentais, isto é, bens primários produzidos pela vida em sociedade, tais como direitos e liberdades, oportunidades sociais, renda e riqueza e “as bases sociais do autorrespeito” — esse último entendido por Rawls como “o mais importante” dos bens primários  (p. 440) — que qualquer pessoa, em qualquer situação social, e que venha a expressar qualquer plano de vida, teria um interesse objetivo em controlá-los em sua vida pessoal, e de de participação na decisão sobre sua distribuição. A posição original representa um ponto de vista artificialmente construído no qual agentes racionais, motivados em obter o maior controle possível sobre esses bens primários, precisam escolher quais princípios deveriam governar sua distribuição em uma sociedade justa.

A característica analítica mais importante dessa posição é a abstração de contingências sociais e individuais as quais poderiam distorcer a correção normativa dos nossos juízos sobre a distribuição justa de benefícios sociais. O modo pelo qual Rawls garante essa abstração é erigindo uma série de restrições informacionais no contexto de escolha dos princípios de justiça, o célebre “véu de ignorância” rawlsiano. Se por um lado a motivação das partes é estritamente racional (mas não necessariamente egoísta), procurando maximizar a quantidade e o grau de acesso aos bens primários, por outro, elas não possuirão informação sobre uma série de parâmetros cruciais sobre suas vidas. Um sistema tributário justo, por exemplo, seria aquele escolhido em um contexto no qual não sabemos qual posição na estratificação social ocuparíamos. Ou ainda, a organização justa do poder estatal frente às crenças e doutrinas morais existentes seria aquela escolhida em um contexto no qual não sabemos qual dessas crenças adotaríamos para nossas vidas. Generalizando, Rawls acredita que a melhor maneira de decidir quais princípios distributivos deveriam organizar a estrutura básica da sociedade é reformulando sua escolha contrafactualmente em um status quo especialmente constituído pela equidade estrita entre todas as partes concernidas. O objetivo de uma posição original equitativamente construída é o de evitar os particularismos arbitrários da força, da fraude e do privilégio na justificação de arranjos distributivos. Como formulado por Rawls, a cada um de acordo com sua capacidade de ameaça nunca será um princípio de justiça (p. 134).

Contudo, só poderemos construir analiticamente essa posição caso contemos com algum critério sobre o que é (e o que não é) moralmente arbitrário do ponto de vista da distribuição dos bens constitutivos da cooperação social. Dito de outra maneira, sabemos que a posição original é uma situação idealizada, igualitária e inclusiva (na medida em que nela todas as pessoas devem ser representadas), mas não sabemos como devemos traduzir essas exigências em um contexto de escolha analiticamente determinado: quais contingências precisam ser abstraídas do ponto de vista da equidade entre as partes para que o resultado da escolha possa ser considerado justo? O que todas as restrições informacionais possuem em comum é o fato de serem produzidas por circunstâncias individuais, sociais, e naturais moralmente arbitrárias do ponto de vista da justiça e que, portanto, representam circunstâncias que não contam, por si só, como razões para a escolha de princípios distributivos. Uma pessoa privilegiada pela herança de uma família rica, por exemplo, cujos pais possuem acesso privilegiado ao sistema educacional socialmente disponível, sabe que um sistema de remuneração extremamente desigual de rendimentos do trabalho, no qual salários não são taxados pelo Estado, aumentariam consideravelmente os recursos sociais sobre aos quais teriam controle. (O mesmo poderia ser dito sobre a decisão entre um sistema econômico de tipo capitalista e socialista: qual sistema a classe de proprietários escolheria do ponto de vista de seus interesses?) Contudo, argumenta Rawls, o simples fato de nascermos em uma determinada classe social não caracteriza uma ação voluntária por parte de agentes morais e, portanto, não deveria ser preponderante na determinação de um sistema de expectativas sociais justo. Em suma, o argumento da arbitrariedade moral é o fundamento normativo para a determinação das restrições epistêmicas adequadas em uma situação de escolha[8].

Em linhas gerais, e seguindo a célebre distinção humeana sobre as condições de possibilidade da justiça (“circunstâncias da justiça”), Rawls constrói seu modelo de escolha social levando em consideração duas condições epistêmicas elementares as quais podemos denominar respectivamente de condição de diversidade, ou “circunstâncias subjetivas da justiça”, e condição de equidade, ou “circunstâncias objetivas da justiça”. Em primeiro lugar, a posição original precisa garantir não apenas que todas as pessoas sejam incluídas na deliberação — i.e., que o interesse de todas as pessoas importa igualmente —, mas também que cada pessoa seja representada em sua diversidade constitutiva enquanto um agente moral dotado de autonomia. As partes são dotadas da capacidade de conceber e revisar as condições pessoais de seu bem viver e, portanto, encontram-se racionalmente motivadas na posição original para garantir as condições sociais adequadas para a realização de seus planos de vida. As partes sabem que possuem uma interpretação própria sobre como gostariam de conduzir suas vidas, sabem que o sentido e o sucesso de seus planos pessoais dependem de recursos oriundos da cooperação social, e que diferentes pessoas e grupos na sociedade possuem concepções diferentes das suas, mas elas não possuem nenhuma informação sobre quais dessas concepções elas próprias aderirão uma vez suprimidas os limites informacionais da escolha. Como veremos adiante, Rawls argumentará que a condição de diversidade justificará uma distribuição prioritária e estritamente igual do conjunto de liberdades pessoais socialmente disponíveis. Qualquer concepção de justiça que não reconheça a importância dessa condição, como os juízos agregativos do utilitarismo, não é “capaz de levar a sério a distinção entre as pessoas” (p. 27).

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Hume por Allan Ramsay, 1766

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Em segundo lugar, a restrição de informação é estendida dos interesses éticos aos interesses materiais das partes, restringindo seu conhecimento sobre a estrutura de posições de poder, riqueza e estima social as quais estruturarão suas expectativas pessoais e suas relações entre as pessoas. Uma das contribuições mais importantes de TJ para a justiça social advém da constatação de que uma distribuição justa de recursos sociais precisa ser imparcial em relação a três — e não apenas dois — fatores moralmente arbitrários em nossas vidas. A primeira e mais evidente fonte de arbitrariedade são as características adscritícias que constituem nossa individualidade em um contexto social determinado. Diferenças raciais, de gênero, e de orientação sexual, não deveriam ser estruturalmente relevantes para a distribuição de vantagens sociais tanto quanto as diferenças de concepções de bem que desenvolvemos em nossas vidas. Sociedades nas quais certos cargos públicos ou posições sociais são bloqueadas para algum grupo social específico ou mesmo quando formalmente abertas a todas as pessoas e trajetórias de vida, mas sistematicamente enviesadas contra certos marcadores sociais da diferença, ilustram um caso paradigmático de injustiça na teoria rawlsiana. A segunda fonte de arbitrariedade exigida pela condição de equidade diz respeito à posição social nas quais nascemos e nas quais somos socializados. Isto é, a escolha de princípios distributivos deve ser realizada sem o conhecimento de quais grupos e famílias pertenceremos ao nascer e em quais contextos socioeconômicos e culturais seremos criados e socializados. Para ficarmos com uma ilustração trivial, e por isso mesmo chocante, do tipo de arbitrariedade que Rawls tem em mente aqui, basta constatarmos que, na cidade de São Paulo, a desigualdade de expectativa de vida média entre bairros ricos e pobres pode chegar a mais de 20 anos de diferença. Ou seja, que o simples local de nascimento de uma pessoa pode custar duas décadas de vida de uma pessoa.

Até aqui dois tipos de sociedades foram excluídos na posição original: sociedades formalmente racistas, sexistas, ou fundadas no princípio de castas, de um lado, e sociedades formalmente iguais, mas indiferentes aos efeitos da divisão de classes na distribuição de vantagens sociais. É nesse ponto que Rawls adiciona uma terceira fonte de injustiça material: a distribuição natural de talentos e habilidades pessoais as quais adquirimos e desenvolvemos ao longo de nossa vida. A exclusão de habilidades e talentos naturais pelo véu de ignorância é representa uma interpretação extremamente radical da igualdade social mesmo do ponto de vista da tradição política igualitária. É verdade que nossos talentos e disposições naturais são o resultado direito do ambiente social nos quais fomos socializados e do cuidado dispendido por outras pessoas em nossa criação. Contudo, o valor auferido pelo uso social dessas aptidões é comumente reconhecido como um recurso pessoal de que os possui. Rawls rompe com uma interpretação absolutista da propriedade de disposições naturais e argumenta que, se não somos moralmente responsáveis nem pela família (nem pelo tipo socialmente reconhecido de família) na qual nascemos, nem pelos contextos nos quais fomos socializados do ponto de vista da justiça distributiva, então nossos juízos ponderados sobre a injustiça nos levariam a excluir igualmente da posição original os efeitos advindos da loteria natural de talentos e aptidões. Ou melhor, uma distribuição justa de recursos sociais deve ser indiferente à valorização ou penalização social de disposições pessoais naturais. Uma aptidão natural para atividades intelectuais (se tal coisa existe) em uma sociedade que valorize a especialização do trabalho, ou uma constituição física frágil, ou marcada por uma doença congênita, em uma sociedade que valorize a força (ou mesmo uma concepção corporal determinada de beleza), resultará em oportunidades e formas de prestígio sociais que precisam ser reguladas pela justiça social. Uma das consequências igualitárias radicais da justiça rawlsiana é o fato de que, do ponto de vista do arranjo institucional, nossos talentos e habilidades individuais devem ser compreendidas como uma forma de recurso social comum.

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III

Chegamos, finalmente, aos resultados do expediente contratualista rawlsiano: qual concepção de justiça determinada seria escolhida pelas partes na posição original? A derivação de princípios de justiça articulada por Rawls em TJ foi sem dúvida um dos aspectos que mais discordância gerou entre a primeira geração de leitores e leitoras da obra. Não é exagero afirmar que algumas áreas inteiras de pesquisa em filosofia política tenham sido gestadas com base no espólio crítico dessa discussão, como a aplicação da teoria da decisão à problemas normativos, ou a análise de métricas distributivas na avaliação de políticas públicas.

De modo geral, as partes na posição original escolheriam dois princípios de justiça específicos ordenados entre si de modo hierárquico. A formulação precisa dos dois princípios de justiça apresentará variações importantes ao longo da obra de Rawls, especialmente no que se refere ao conteúdo e à correta interpretação do primeiro princípio de justiça. Porém, sem grandes injustiças à lendária precisão rawlsiana, podemos reapresentar os dois princípios do seguinte modo:

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(1) Cada pessoa possui uma reinvindicação inalienável e igual ao conjunto completo de liberdades básicas socialmente disponíveis, compatíveis com o pleno exercício dessas liberdades entre todos (Primeiro Princípio de Justiça).

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(2) Toda e qualquer desigualdade de bens primários restantes é justa se, e apenas se, satisfizer duas exigências distintas e hierárquicas: (i) que a desigualdade esteja atrelada a cargos e posições sociais abertas à qualquer pessoa, sob condições equitativas de oportunidade social (Igualdade Equitativa de Oportunidades), (ii) que a desigualdade trabalhe para o máximo benefício possível dos membros menos beneficiados pela cooperação social (Princípio de Diferença).

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O primeiro princípio de justiça, e a sua prioridade sobre o segundo, sustenta a existência de um conjunto de liberdades individuais — tais como a liberdade de expressão e associação, a proteção da integridade pessoal, os direitos e liberdades políticos, e o devido processo legal — as quais, sendo possuída por uma pessoa, devem ser possuídas por todas as demais. Além disso, o princípio assegura que o valor dessas liberdades é incondicional, ou seja, que mesmo o bem-estar coletivo, ou o poder de escolha dos próprios sujeitos dessas liberdades, não poderia anulá-las, nem as preterir estrategicamente em nome de outras finalidades sociais. Em um sentido importante, portanto, a justiça como equidade só aceitará conflitos morais “duros” (hard cases) intra um conjunto de liberdades equi-prioritárias (incluindo a efetividade dos direitos de participação democrática) presentes em um arranjo constitucional comum, mas nunca entre as liberdades individuais e diferentes princípios distributivos. Contudo, é importante notar que, se por um lado, o primeiro princípio de justiça reconhece a prioridade das liberdades básicas sobre outras demandas normativas importantes (prescritas, por exemplo, pelo segundo princípio), ele não prioriza um tipo de liberdade sobre as demais. Em oposição à tradição liberal de Benjamin Constant e Isaiah Berlin (o último tendo sido professor de Rawls em Oxford), liberdades individuais ditas negativas, como a liberdade de expressão e o devido processo legal, são equi-prioritárias em relação aos direitos políticos fundamentais e a um mínimo social incondicional (ditos positivos), inclusive no que concerne à efetividade social desses direitos. São as liberdades básicas em conjunto que constituem o objeto do primeiro princípio de justiça e o significado do valor da liberdade na filosofia rawlsiana.

A razão pela qual as partes na posição original escolheriam os dois princípios de justiça em oposição às demais alternativas disponíveis — como o princípio de maximização de utilidade — é articulada por Rawls com base em uma analogia com a regra maxi(mização)min(ímo) de decisão racional: diante de uma incerteza radical, agentes racionais devem identificar e comparar o pior resultado possível entre diferentes alternativas afim de selecionar o resultado com a melhor das piores consequências possíveis. Aplicada à seleção de princípios de justiça, esse raciocínio faz com que as partes foquem sua atenção na situação distributiva das piores posições produzidas por arranjos sociais alternativos. No caso do igual reconhecimento de liberdades básicas, a coerência do raciocínio chega a ser cristalina. Em qual mundo social eu escolheria viver caso não soubesse qual seria minha religião, posição política, ou identidade social, mas apenas que tais dimensões são cruciais para a minha felicidade, meu senso de autorrespeito e para a constituição da individualidade? A resposta maximin nos diz que devemos garantir o melhor resultado possível para a pior posição existente em relação ao exercício de liberdades individuais. Esses são mundos sociais nos quais nenhuma minoria moral teria seus direitos violados, ou nos quais seus valores e perspectivas de vida não são sistematicamente subordinadas aos interesses das posições sociais mais elevadas. Dito de outra forma: as partes da posição original escolheriam a igualdade estrita de liberdades como a única forma segura de garantir que os planos e expectativas de vida de cada pessoa não seja nem marginalizado, ou nem utilizados como material para a maximização de outras finalidades sociais.

Tomemos o caso das liberdades básicas constitutivas do regime da lei. De acordo com o primeiro princípio, nenhum resultado político “ótimo” (caso tal coisa possa ser auferida), poderia justificar a instrumentalização de instituições legais, como por exemplo a criminalização de candidaturas políticas ou o emprego de formas “exemplares” de punição, em nome da estabilidade social ou como forma de frear futuras violações da lei. Isso se mantém mesmo que pudéssemos demonstrar, ex hypothesi, que tais medidas beneficiariam a grande maioria da população. Igualmente, as partes não podem aceitar uma sociedade na qual integridade pessoal de minorias seja ameaça pelo poder do estado (ou da polícia), ou ainda que a probabilidade de alguém de ser encarcerado varie em função da raça ou gênero de um cidadão ou cidadã. A proteção contra a instrumentalização social da individualidade representa uma razão decisiva contra a escolha do utilitarismo enquanto princípio ordenador das instituições sociais.

Um raciocínio cauteloso análogo explica também a escolha do segundo princípio de justiça. Vimos acima que o expediente da posição original é construído com base em uma série de restrições epistêmicas impostas à escolha dos agentes racionais. Contudo, as partes sabem que precisam escolher princípios distributivos para uma sociedade moderna e afluente, reconhecendo fatos econômicos e sociológicos gerais sobre o funcionamento de sociedades como as nossas. Como no caso do reconhecimento igualitário das liberdades básicas o ponto de referência ou benchmark da decisão também será uma distribuição estritamente igualitária dos demais bens primários: oportunidades sociais, de renda e riqueza, e as bases sociais do autorrespeito. Afinal, qual outro padrão moral de escolha que não uma distribuição estritamente igual poderia seria escolhido entre agentes racionais iguais sob as mesmas restrições informacionais?

O argumento rawlsiano parte da premissa (partilhada entre os agentes racionais da posição original) de que o funcionamento institucional empírico das sociedades contemporâneas é compatível com modos assimétricos de divisão que, sob certas condições especiais, poderiam beneficiar todas as pessoas — o que, do ponto de vista da posição original, significa beneficiar em primeiro lugar as piores posições sociais em termos distributivos. Mesmo as pessoas mais mal situadas em uma distribuição desigual de renda, poder, ou estima, podem estar em uma situação distributiva melhor do que estariam caso vivessem sob igualdade estrita. Essa possibilidade dependerá tanto da natureza do bem primário em questão como do poder de veto das posições menos beneficiadas no momento da escolha. É verdade que nossa vida em sociedade pode estar fadada à produção de desigualdades. Mas, de acordo com a justiça rawlsiana, não estamos fadados a viver em uma sociedade desigual, isto é, injustificada do ponto de vista das piores posições sociais. Tomemos como exemplo a seleção e preenchimento de cargos de poder. Por um lado, a mera existência de uma autoridade política e de estruturas centralizadas de governança tenderão sempre a instituir uma distribuição desigual de prerrogativas e de responsabilidades em relação ao poder. Por outro, a existência do estado, e de seu aparato burocrático e legal, pode beneficiar potencialmente todas as pessoas que vivem sob esses arranjos, e não apenas aqueles e aquelas que se beneficiarão diretamente desse sistema de prerrogativas.

O modo usual como o liberalismo clássico lidou com distribuição de vantagens sociais é por meio de critérios formais de não-discriminação, o preceito de que todas as posições sociais devem permanecer abertas apenas aos talentos e às ambições dos indivíduos. Rawls dará um passo (ou um salto?) além da tradição liberal, ao argumentar que a mera igualdade formal de oportunidades sociais não é condição suficiente para a justificação de uma distribuição desigual dessas vantagens. Para que hierarquias de poder e de posição social possam ser justas, elas precisarão demostrar não apenas que são formalmente abertas a todas as pessoas, mas que, além disso, elas são reproduzidas sob condições de preenchimento “equitativas”, ou seja, que quaisquer duas pessoas igualmente motivadas e capacitadas de modo semelhante teriam chances mais ou menos iguais de preenchê-las. Isso significa, dentre outras tantas coisas, que as instituições básicas da sociedade precisarão trabalhar permanentemente para a identificação e erradicação de privilégios advindos da família, classe ou grupo social nos quais somos socializados.

A segunda cláusula do segundo princípio — o célebre “princípio de diferença” rawlsiano — aplicará a mesma lógica de justificação de desigualdades a um tipo de bem primário extremamente importante nas sociedades contemporâneas e bem mais difícil de ser assimetricamente justificado do que a existência do Estado ou padrões diferenciais de estima social: o controle de recursos econômicos. A lógica geral na escolha do segundo princípio é a de que desigualdades econômicas só são justas caso trabalhem para o máximo benefício das pessoas mais mal situadas na estratificação econômica. De que modo Rawls poderia justificar um desvio (uma “diferença”) análogo em relação à igualdade estrita de renda e riqueza? Novamente, Rawls tem em mente um pressuposto sociológico e uma tese normativa acerca da distribuição de renda e riqueza. Sociedades afluentes precisam organizar a produção da riqueza social com base em expedientes institucionais determinados que, de um jeito ou de outro, terão impacto na diferença entre os recursos econômicos controlados pelas pessoas. O grau de investimento em um determinado momento do tempo, por exemplo, implicará alguma forma de desigualdade intergeracional (o mesmo poderia ser dito hoje sobre decisões de longo prazo sobre a propriedade e uso de recursos naturais). Além disso, tanto a qualidade do trabalho (divisão social do trabalho) bem como sua quantidade (incentivos) disponíveis em uma sociedade terá um impacto importante sobre o montante total da riqueza social disponível. (Importante notar que o primeiro princípio excluiu peremptoriamente a possibilidade de organizarmos a produção social com base na coerção e que as posições sociais precisam ser voluntariamente preenchidas).

A única maneira de justificar desigualdades econômicas como essas seria demonstrando que também funcionariam para o benefício de todas as pessoas. Mas como poderíamos garantir isso? Uma possibilidade tentadora para agentes racionais seria a escolha de um critério de maximização das utilidades restringido pelo funcionamento de um esquema de liberdades fundamentais. Deixando de lado no momento se versões indiretas de utilitarismo são, de fato, conceitualmente estáveis, essa alternativa à justiça como equidade nos diria que deveríamos optar por arranjos distributivos produtor da mais alta satisfação agregada de preferências, dividida pelo número de pessoas, e reconhecidas as liberdades básicas. Essa é, na verdade, uma interpretação natural da ideia de benefício comum: desigualdades aceitáveis do ponto de vista da justiça são aquelas que maximizam o cômputo total dos níveis de expectativa e felicidade sociais independentemente de como esses mesmos fatores seria distribuído entre as pessoas. Trata-se de um argumento plausível, e que conta com a adesão de críticos utilitaristas de Rawls, como a do economista John Harsanyi[9].

Ao longo de todo o livro, Rawls procura mostrar por que as partes deveriam rejeitar essa maneira utilitarista de interpretar o bem comum, escolhendo ao invés disso um princípio de justiça distributivo que, ao comparar arranjos econômicos diferentes, conferiria prioridade moral às expectativas das posições menos beneficiadas por cada um desses arranjos. Sociedades seriam mais ou menos justas, não de acordo com sua riqueza total, mas sim de acordo com o tratamento que cada uma delas desprenderia em relação às posições econômicas menos privilegiadas. Diferentemente das razões mobilizadas para a escolha do primeiro princípio de justiça, cujo objeto é a proteção de interesses objetivos e a solução a igualdade estrita, o princípio de diferença será escolhido com base em razões de reciprocidade social cujo objeto central é a psicologia moral de pessoas de carne e osso que terão que viver sob os arranjos escolhidos na posição original, sobretudo, as atitudes e formas de relação dominantes produzidas em uma sociedade ordenada pelos princípios de justiça escolhidos.

Podemos reconstruir o espírito geral do argumento com base na ideia de superioridade relativa da justiça como equidade ao lidar com os “ônus do compromisso” (strains of commitment) acarretados pela plena realização de uma concepção de justiça. Imaginemos que, motivado pela tentativa de maximizar a quantidade de bens primários, eu decida escolher o princípio utilitarista de agradação. Caso tenha sorte, e me descubra um feliz membro dos percentis superiores de distribuição de renda, poderei participar diretamente da maior riqueza agregada possível. Caso termine por ocupar as piores posições distributivas, então terei que me contentar com uma sociedade extremamente rica — digamos com um altíssimo PIB per capita —, mas ao mesmo tempo extremamente desigual — digamos com um também altíssimo índice Gini. No segundo caso, o do pior cenário possível do ponto distributivo, estarei disposto a cumprir os termos da cooperação social? O ponto do argumento sobre os ônus do compromisso é o de que a justificação pública de instituições pró-desigualdade (como é o caso do utilitarismo) implica não apenas que os menos favorecidos pelos princípios de justiça terão suas expectativas de vida sistematicamente preteridas, mas sobretudo que essa desigualdade será orgulhosamente afirmada pelas instituições sociais e publicamente reconhecida nas relações entre os membros da cidadania como um resultado justo. Essa será uma sociedade na qual as instituições econômicas instrumentalizam as expectativas e planos de vida dos menos afortunados em nome de um benefício “médio” que, na verdade, não passa de uma ficção aritmética do ponto de vida da estrutura de classes sociais.

Rawls se pergunta, então, qual seria a nossa reação ao levantarmos o véu de ignorância e descobrir que estaremos fadados a viver nossas agrilhoadas a arranjos sociais voltados para a promoção da felicidade das classes elevadas. De acordo com a psicologia moral minuciosamente discutida ao longo da TJ (uma dimensão da obra até hoje pouco explorada, mas a qual Rawls costumava creditar como sua parte preferida[10]), a produção desmedida de ônus distributivos tenderia a produzir sentimentos morais de tipo destrutivos para a reprodução de uma ordem social democrática. Não seria de se espantar, afirma Rawls, que, sob as condições psicológicas e sociológicas reais, venhamos a formar atitudes cínicas sobre a política democrática e a nutrir um ressentimento potencialmente violento em relação ao funcionamento normal das instituições sociais. Isso porque os cidadãos e cidadãs reais estariam fadados a viver em uma sociedade organizada para a maior riqueza social possível, mas na qual apenas algumas pessoas viveriam da riqueza socialmente produzida. Precisamos escolher uma concepção que de justiça que seja capaz de gerar, no longo prazo, as bases motivacionais necessárias para sua própria estabilidade. A tentativa de encontrar uma resposta satisfatória para a estabilidade — “pelas razões certas” — da justiça como equidade será a principal fonte de preocupações teóricas de Rawls pós-TJ. Seria a justiça como equidade capaz de oferecer uma concepção duradoura e não-opressiva de justiça social? Seja como for, Rawls nunca duvidou que, pelo menos do ponto de vista relativo, temos boas razões para concluir que a estabilidade de concepções utilitaristas seja inferior à estabilidade de concepções de justiça governada por critérios de públicos de reciprocidade (tal como o princípio de diferença).

O argumento de reciprocidade subjacente a escolha do segundo princípio nos ajuda também a compreender o significado do princípio de diferença na filosofia rawlsiana. De um ponto de vista teórico, o argumento faz da concepção de justiça rawlsiana uma teoria cujo fundamento normativo último encontre-se em um ideal de sociedade e de personalidade moral. Essa é uma consequência importante. Em primeiro lugar, ela afasta a filosofia de Rawls de teorias da justiça fundadas em uma interpretação filosófica de direitos naturais, ou de deveres morais absolutos, ou ainda de teorias fundamentadas em estados de coisas intrinsicamente valiosos (como a satisfação de preferências subjetivas)[11]. Em segundo lugar, isso significa que a teoria de Rawls é mais bem compreendida como uma forma social ou relacional de igualitarismo: um tipo de teoria para a qual o valor moral da igualdade é compreendido como responsável pelo governo de certas formas de relacionamento interpessoal, como o relacionamento recíproco entre pessoas livres e iguais, dotadas de um mesmo status moral e político. Já em relação ao significado moral do princípio de diferença, ele nos afirma que o ponto de vista da cidadania em uma democracia será sempre a perspectiva dos menos privilegiados pela cooperação social. Isso porque o poder de veto dessa perspectiva é o único capaz de justificar distribuições assimétricas de riqueza, estima e poder[12].

É em geral nessa altura da exposição da teoria rawlsiana que costumamos nos deparar com a pergunta sobre se ela é, ou não é, uma teoria liberal. Afinal, boa parte das razões mobilizadas em TJ parte de pressupostos liberais convencionais e é indubitável que Rawls considere o liberalismo como uma das tradições políticas e filosóficas constitutivas do projeto democrático contemporâneo. Porém, se é verdade que essa pergunta encontra solo fértil em colunas de jornal, mobilize influenciadores e influenciadoras online, ou que tenda a gerar discussões acaloradas em diretórios estudantis, de um ponto de vista estritamente filosófico a resposta para ela é bastante trivial: depende. Ela depende decisivamente do que entendemos por liberalismo, um conceito político que depende de uma definição objetiva caso tenha alguma pretensão analítica relevante. Se por liberalismo entendemos a tese de natureza política segundo a qual as sociedades modernas são constituídas por um pluralismo de valores profundo e permanente e que, portanto, certas reivindicações morais dos indivíduos possuem um valor fundamental, i.e., prioritário em relação a outras demandas sociais, e inalienável, i.e, próprio de um estatuto incondicional fundado na dignidade humana partilhada por todas as pessoas, então a única resposta possível para a pergunta se a teoria rawlsiana é liberal só pode ser um sonoro “sim”. Os dois princípios de justiça rejeitam duas formas diferentes de teorias anti-liberais: qualquer forma de coletivismo que não reconheça o valor fundamental das reivindicações dos indivíduos, e teorias patologicamente individualistas, como o chamado “libertarianismo”, para o direitos individuais são tidos como uma entidade pré-política misteriosa, e para as quais o consentimento individual teria o poder de alienar até mesmo direitos fundamentais — tese neo-feudalista que justificaria contratos “voluntários” de escravidão, próprios do pensamento libertariano.

Nesse sentido, a justiça como equidade é um tipo (igualitário) de liberalismo político, em tudo compatível com a acepção usual de liberal própria da cultura política dos EUA, um tipo de ideologia política bem diferente do que costumamos designar por “liberal” na cultura política da América Latina e da Europa, contextos nos quais o liberalismo é indissociável da defesa de títulos de propriedade e da expansão do livre-mercado (o que, em teoria política, é mais bem designado por liberalismo-conservador ou simplesmente conservative nos EUA). No contexto político deveras particular de TJ, a palavra liberalism, tal como reivindicada por Rawls, refere-se a uma tradição política na qual o Estado possui um papel distributivo inquestionável, direitos políticos e sociais são entendidos como conquistas históricas importantes, e para o qual a justiça social (e não a propriedade privada) é considerado um valor político universal.

Agora, se por liberalismo entendemos uma teoria social, ou uma doutrina econômica, fundada na prioridade normativa de títulos de propriedade privada, na ideia de que a expansão de instituições de mercado representa uma solução justa para problemas distributivos, e que seus efeitos disciplinadores são moralmente importantes para a manutenção da ordem social, que liberdades tidas como negativas possuem prioridade absoluta, ou ainda que — “simplesmente” — não existe tal coisa como princípios de reciprocidade social, então a resposta para a mesma pergunta é um igualmente sonoro “não”. Isso porque o contratualismo rawlsiano é tão devedor da tradição liberal clássica como das críticas socialistas (marxistas e não-marxistas) a esse mesmo liberalismo. Não apenas o capitalismo não é um valor para a TJ — obra na qual, diga-se de passagem, a palavra “capitalismo” não é empregada sequer uma única vez — como o núcleo normativo de TJ é formado por uma série de apropriações diretas da tradição socialista. Três apropriações merecem destaque: (i) a efetividade das liberdades políticas, (ii) a efetividade da igualdade de oportunidades, e (iii) a subordinação da propriedade privada à justiça social. Todas elas independentes (e normativamente prioritárias) em relação ao próprio princípio de diferença, tradicionalmente entendido como o elemento socialista mais contundente de TJ.

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Rawls

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Em primeiro lugar, Rawls confere prioridade às condições efetivas para o exercício das liberdades políticas (e não apenas ao seu reconhecimento formal). Essa prioridade é responsável por tornar sua teoria não apenas intrinsicamente democrática, como radicalmente contrárias às tendências politicamente elitistas e economicamente oligarquias típicas das democracias liberais contemporâneas. O primeiro princípio de justiça sustenta que as instituições políticas e econômicas precisam garantir que forças sociais igualmente motivadas, e que contribuam de modo igual para uma cultura política democrática, tenham chances similares de influenciarem tanto a agenda pública como os resultados políticos de uma democracia. Como o próprio Rawls reconheceu, esse é um ideal democrático extremamente exigente que, historicamente, nunca foi atendido nas democracias nem mesmo parcialmente. Sua implementação exigiria mudanças institucionais, distributivas e culturais radicais nas democracias liberais. Em segundo lugar, como vimos anteriormente, Rawls rejeita que critérios meramente formais de igualdade de oportunidade sejam suficientes do ponto de vista da justiça social. Uma sociedade que não ofereça as bases institucionais para igualdade de oportunidades efetivas entre as pessoas é uma sociedade injusta. Mesmo índices moderados de acumulação de riqueza e de sobreposição de privilégios educacionais e sanitários seriam inaceitáveis do ponto de vista da equidade social.

Finalmente — e de modo particularmente impactante para quem não consegue conceber a dissociação entre liberalismo político e liberalismo econômico — a justiça como equidade não reconhece o direito de propriedade sobre recursos naturais e sobre os (demais) meios de produção como uma liberdade básica fundamental. O direito de propriedade sobre os meios de produção não é protegido pelo primeiro princípio e, portanto, não possui prioridade normativa em relação às demais finalidades da vida social, sobretudo, às demandas igualitárias dos dois princípios de justiça como um todo. É verdade que as partes insistiriam na proteção da propriedade pessoal, uma característica coerente como as motivações anti-coletivistas da escolha original. Contudo, como quer que um direito à propriedade pessoal seja institucionalizado (uma tarefa desafiadora por si só), Rawls é explícito e coerente ao recusar a posse individual e absoluta de capital como uma exigência de justiça. Ao contrário: regimes de propriedade devem estar subordinados à justiça social, cabendo a uma coletividade democraticamente organizada decidir as bases institucionais mais adequadas para sua realização. Veremos adiante que essa é uma consequência radical amplamente ignorada pela primeira geração de leitores/as e críticos/as da TJ, mas a qual Rawls não se cansará de insistir e aprofundar ao longo de sua obra. Seja ela liberal ou não, o fato é que, do ponto de vista da justiça como equidade, uma sociedade falha em respeitar a dignidade das pessoas seja quando permite a violação de suas liberdades básicas, seja quando permite que elas tenham seus propósitos de sua vida estruturados pela desigualdade socioeconômica.

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IV

A escolha da estrutura básica como o objeto privilegiado e prioritário da justiça é uma das dimensões mais profícuas da TJ para a filosofia política do século XX. A contribuição de Rawls foi tamanha que podemos afirmar que, hoje, simplesmente não é possível fazer filosofia política sem atentarmos para a dimensão institucional da política. Isto é, para a natureza e o funcionamento de instituições políticas, legais, e econômicas, para a natureza das associações, para as implicações distributivas da família (especialmente após as duras críticas feministas à TJ), ou mesmo para o papel das normas sociais em nossos padrões de sociabilidade. A tese da prioridade da estrutura básica também é um dos motivos pelos quais cientistas políticos, economistas, e teóricos do direito aderiram tão rapidamente à revolução rawlsiana. Disso, contudo, não devemos concluir nem que essa tese não tenha sido duramente criticada, nem que suas implicações conceituais tenham sido esgotadas.

A prioridade da estrutura básica para a justiça é justificada por Rawls com base em duas características importantes de qualquer arranjo institucional. Em primeiro lugar, que instituições sociais são coercitivas — isto é, que sue funcionamento normal depende de recursos coercitivos — as quais não optamos voluntariamente por participar. Esses são arranjos os quais, em geral, entramos quando nascemos e saímos só quando morremos. Além disso, as sociedades modernas dependem de arranjos institucionais de natureza sistemática, isto é, responsáveis por governar, ainda que procedimentalmente, nossas escolhas e condutas de maneira pervasiva. Em resumo, para a teoria rawlsiana, viver em sociedade é viver sob regras comuns que são necessariamente coercitivas e exaustivas sobre nossas expectativas de vida. A justiça nos obriga a justificar a natureza e as consequências desses arranjos entre aqueles e aquelas que sofrerão as suas consequências.

Duas críticas particularmente pungentes costumam ser direcionadas, respectivamente, à unilateralidade e ao seu viés paroquial da tese rawlsiana. Críticos socialistas como G. A. Cohen, ou feministas como Susan Okin, argumentam que princípios responsáveis por governar a distribuição dos ônus e benefícios sociais não poderiam estar limitados apenas às estruturas formais da sociedade. Isto é, considerações de justiça social deveriam ter por objeto não apenas as estruturas legais que definem o espaço de escolhas nos quais agimos, mas também as escolhas e atitudes dentro dessas mesmas estruturas[13]. O principal motivo para realocar o “local” da justiça é a existência de relações injustas de poder que podem perfeitamente subsistir a arranjos institucionais formalmente equitativos, como por exemplo em uma divisão injusta de recursos no interior da família. Ao ignorar a dimensão interpessoal da justiça — ao ignorar que o pessoal pode ser político — a concepção de justiça rawlsiana pode tanto marginalizar problemas distributivos infra-institucionais como também acabar justificando o tipo de injustiça subjacente a esses arranjos. É perfeitamente possível imaginarmos que instituições sociais não-sexistas podem estar povoadas por indivíduos sexistas. Segundo G. A. Cohen, algo do tipo ocorreria com a justificação de incentivos econômicos anti-igualitários pelo princípio de diferença. Na verdade, a escolha (pessoal) dos agentes econômicos mais talentosos de condicionar sua maior capacidade produtiva a ganhos diferenciados no mercado de trabalho é um tipo de injustiça que, argumenta Cohen, poderia ser justificada pelo próprio aparato contratualista rawlsiano. Isso porque o fato (empiricamente verdadeiro) de que incentivos anti-igualitários estimulam uma maior produção econômica não possui um valor de justiça em si, mas precisaria ser justificado interpessoalmente pelos seus beneficiários para os membros menos beneficiados da cooperação social, o que geraria um tipo de chantagem distributiva: “ou bem vocês nos garantem uma parcela maior da riqueza social, ou pioraremos consideravelmente as suas expectativas de vida”.

O segundo problema da estrutura básica rawlsiana residiria na arbitrariedade de seu escopo nacional[14]. Críticos cosmopolitas da justiça rawlsiana como Thomas Pogge e Charles Beitz, costumam aceitar a prioridade normativa das instituições, mas recusam veementemente seu paroquialismo. Por estrutura básica, TJ entende uma sociedade idealmente fechada, seja em relação aos efeitos e responsabilidades para com os membros de outras sociedades, seja em relação às instituições e arranjos irredutivelmente internacionais existentes. Ora, se a prioridade da estrutura básica se justifica pelo caráter coercitivo e sistemático que as instituições exercem sobre nossas vidas, que razões nós teríamos para ignorar os efeitos pervasivos de estruturas básicas nacionais causadas em outras sociedades? Na verdade, a própria ordem econômica global (talvez ainda incipiente em meados do século passado) deveria ser, em si mesma, compreendida como um sistema de distribuição de benefícios e encargos, isto é, como uma estrutura básica global. Em um mundo extremamente desigual e tolerante com a miséria, no qual o local de nascimento representa uma circunstância tão moralmente arbitrária como nossa raça, nossa classe e nossos talentos dentro de um estado nacional, mas que, dado o abismo da desigualdade entre países possui um significado normativo ainda mais urgente, restringir a justiça social às fronteiras do Estado-nacional equivaleria a sacralizar a injustiça histórica do imperialismo e a arbitrariedade de arranjos cooperativos assimétricos desenhados para o regozijo do norte global. Como os teóricos e teóricas da justiça global insistem em nos lembrar, um mundo conformado por uma estrutura básica global exigiria princípios de justiça igualmente globais.

Uma questão bem menos explorada pela primeira geração de críticos e críticas do contratualismo rawlsiano, mas que tem ganhado novas dimensões neste começo de século, é o que podemos denominar como o problema das bases das institucionais da justiça distributiva. Esse problema contou com a dedicação metódica de Rawls — iniciada em TJ, e gradativamente aprofundada ao longo de sua obra — e pode ser formulado como a busca pelas condições de possibilidade institucionais de uma sociedade justa. Independentemente da unilateralidade ou do escopo da estrutura básica, devemos nos perguntar também quais instituições, ou mesmo sistemas socioeconômicos, seriam mais ou menos adequados para uma sociedade justa no sentido rawlsiano. Como vimos no final da seção anterior, as perspectivas institucionais de uma sociedade justa aos moldes rawlsiano pode ser surpreendente para quem tende a associar a teoria da justiça de Rawls a um tipo de capitalismo mitigado por instituições de bem-estar social — uma associação comumente encontrada em quem nunca passou da primeira parte, ou mesmo das primeiras seções, de TJ.

Rawls foi um filósofo político perfeitamente consciente dos riscos oligárquicos acarretados pelo aumento da desigualdade econômica (uma realidade socioeconômica generalizada entre as democracias liberais a partir dos anos 70). Desde a publicação da primeira edição de TJ (em 1971), até seus últimos trabalhos (década de 90), Rawls foi enfático ao sustentar que, caso queiramos conceber a justiça de um ponto de vista democrático, precisamos encontrar formas institucionais capazes de identificar e desmantelar arranjos socioeconômicos desiguais, bem como seus efeitos antidemocráticos na competição política, na igualdade de oportunidade, e nas relações de respeito mútuo entre cidadãos e cidadãs de uma democracia. Nesse sentido, podemos afirmar que a tese da prioridade da estrutura básica também implica a responsabilidade teórica na tradução institucional de exigências igualitárias abstratas. O problema das bases institucionais da justiça foi tão negligenciado nas primeiras décadas de recepção da filosofia rawlsiana que poucas pessoas notaram as implicações radicais — ou mesmo revolucionárias — produzidas pela tentativa de Rawls de compatibilização institucional entre a justiça como equidade e regimes socioeconômicos concretos. Essa compatibilização, iniciada na primeira edição de TJ (especialmente nos caps. 42 e 43), seria reapresentado e aprofundado ao longo de todo projeto rawlsiano, ganhando sua forma definitiva em alguns de seus trabalhos finais[15].

De acordo com Rawls, os dois únicos regimes socioeconômicos compatíveis com as exigências dos dois princípios de justiça seriam (i) uma forma democrática de socialismo ou (ii) aquilo que Rawls denominou, seguindo a proposta do economista inglês James Meade, de uma democracia de cidadania com propriedade (property-owning democracy). Ao terem que escolher quais bases institucionais seriam as mais propiciais à plena realização e à estabilidade de longo prazo dos dois princípios de justiça, as partes na posição original concluiriam que apenas duas únicas opções institucionais seriam seguras o bastante: ou um socialismo de mercado (liberal socialism), no qual instituições de mercado e a competição política conviveriam com a propriedade pública dos meios de produção, ou uma democracia de cidadãos e cidadãs proprietárias, na qual os meios de produção permaneceriam privados, mas as principais instituições sociais trabalhariam para a dispersão contínua de capital. As outras três possibilidades instrucionais aventadas na posição de escolha seriam consideradas como arranjos intrinsicamente incapazes de realizar institucionalmente a justiça como equidade. São eles, um capitalismo de livre-mercado (laissez-faire capitalism), um socialismo de comando central (state socialism), e um capitalismo de bem-estar social (welfare-stare capitalism). Não é preciso muito esforço para entender por que as duas primeiras possibilidades seriam incompatíveis com a justiça rawlsiana. Enquanto regimes socialistas de comando central necessariamente violaria as liberdades básicas (especialmente os direitos políticos e a liberdade ocupacional), um regime capitalista laissez-faire — mesmo em sua roupagem idealizada — seria incompatível com o valor equitativo das liberdades políticas, a igualdade de oportunidades efetivas, e o princípio de diferença. A rejeição desses dois regimes é, na verdade, uma espécie de resultado default da argumentação contida em TJ. Já a rejeição rawlsiana de um capitalismo de bem-estar social pode parecer um resultado bem menos evidente. Isso porque quando imaginamos o tipo de instituição compatível com o princípio de diferença tendemos a imaginar algo mais ou menos análogo à exitosa experiência socialdemocrata europeia ou, no contexto norte-americano, ao New Deal de Franklin Delano Roosevelt. Regimes nos quais o Estado seria responsável por taxar as rendas mais altas e redistribuí-las através de bens públicos universais, e nos quais o funcionamento do capitalismo seria mitigado pela criação de uma rede de proteção social responsável por insular os menos privilegiados dos imperativos do mercado.

Contudo, essa intuição, por mais enraizada que seja, é fruto de uma má compreensão da natureza igualitária do projeto rawlsiano. Para Rawls, um capitalismo de bem-estar social apresentaria, em uma escala menor, os mesmos limites institucionais que um capitalismo de livre-mercado: ele não seria capaz de garantir uma igualdade equitativa de oportunidades, não conseguiriam separar política democrática da influência dos mais ricos e, no caso de um sistema de proteção social com efeitos estigmatizantes (típico do modelo norte-americano), o funcionamento de suas instituições representariam uma violação direta do requisito de reciprocidade social. A razão para esse paralelismo entre os dois regimes é a de que todas as formas de capitalismo insulariam a riqueza privada, a posse de recursos naturais, e dos meios de produção, do escopo de princípios de justiça. Em uma democracia, a sociedade precisaria ter algum grau de controle institucional direto sobre a concentração de capital, seja por meio da participação democrática, da dotação universal e incondicional de capital a todas as pessoas, da abolição da herança, de um sistema de tributação marginal de tipo confiscatória sobre grandes fortunas, etc. (O que Rawls não aceitava, por outro lado, eram mecanismos de renda básica incondicional — em contraposição a mecanismos de capital básico incondicional da democracia de cidadania com propriedade — na forma radical proposta por seu colega belga Philippe Van Parijs[16]).

Independentemente da escolha de regimes e de suas especificidades institucionais, o que de fato chama atenção em relação no debate sobre as bases institucionais na filosofia rawlsiana é que sua teoria da justiça articule, justifique e — sobretudo — expanda a premissa constitutiva dos movimentos progressistas próprios do século XXI, a saber que uma sociedade verdadeiramente justa não é compatível com o capitalismo[17]. Passados cinquenta anos, ler e enfrentar o radicalismo circunspecto de John Rawls ainda representa uma experiência teórica insubstituível. Agora, o fazê-lo em uma sociedade como a nossa, marcada pela desigualdade extrema, pela profundidade de seu racismo, e pela precariedade de suas instituições e modos de convivência democráticos, pode representar algo a mais. Ler Uma Teoria da Justiça no Brasil pode ser uma experiência revolucionária.

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John Rawls

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Leituras Complementares

Além dos dois grandes livros de John Rawls, Uma Teoria da Justiça (1971/1999) e O Liberalismo Político (1993/1996) — dedicados, respectivamente, à justiça distributiva e à legitimidade política — e da apresentação final de sua teoria da justiça em Justiça como Equidade: Uma Reformulação (2001), o leitor ou leitora interessada na obra de Rawls conta com um verdadeiro universo (alguns diriam “indústria”) de publicações especializadas nos mais diferentes aspectos da filosofia rawlsiana. Apresento aqui uma seleção deveras pessoal de alguns trabalhos que considero particularmente instigantes:

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Thomas Pogge, John Rawls: His Life and Theory of Justice (Oxford University Press, 2007)

A obra oferece um retrato “de dentro” da revolução filosófica de TJ por um aluno e interlocutor direto de Rawls. O livro também oferece uma sólida introdução aos principais temas abordados em TJ e aborda algumas das críticas mais importantes ao projeto rawlsiano.

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Andrius Galisanka, John Rawls: The Path to a Theory of Justice (Harvard University Press, 2019)

Livro minuciosa sobre a gênese de TJ e seu contexto filosófico. Particularmente instigante no livro de Galisanka são os capítulos sobre a influência dos estudos teológicos, e do anti-fundacionismo de tipo wittgensteiniano, na formação intelectual do jovem Rawls.

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Álvaro de Vita, A Justiça Igualitária e seus Críticos (Editora Martins Fontes, 2007)

Inquestionavelmente uma das melhores obras sobre Rawls publicada em língua portuguesa. Apresenta a teoria rawlsiana de maneira precisa e rigorosa, contrastando-a com concepções de justiça rivais e valorizando os aspectos liberais de sua filosofia política.

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Samuel Freeman (ed.) The Cambridge Companion to Rawls (Cambridge University Press, 2002)

Obra de referência central com alguns dos interlocutores/as mais importantes da filosofia rawlsiana até o momento. Destaque especial para os verbetes de Thomas Nagel, artigo sobre as relações entre Rawls e as múltiplas acepções de liberalismo, de Thomas Scanlon, um ensaio brilhante (porém ligeiramente técnico) sobre os diferentes sentidos de justificação normativa em Rawls, e de sua ex-aluna, e atualmente baronesa, Onora O’Neill, uma crítica ao construtivismo rawlsiano de um ponto de vista kantiano.

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Samuel Freeman, “Capitalism in the Classic and High-Liberal Traditions”, em: Social Philosophy and Policy 28 (2), pp. 19-55, 2011

Artigo esclarecedor, escrito por um dos comentadores mais importantes de Rawls, sobre os diferentes significados do liberalismo na teoria política contemporânea. O artigo dedica várias páginas à relação sui generis entre a teoria de Rawls (e de John Stuart Mill) e a crítica ao capitalismo.

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G. A. Cohen, If You’re an Egalitarian, How Come You’re So Rich? (Harvard University Press, 2001)

Uma crítica imanente dos pressupostos normativos de TJ — e do liberalismo progressista de modo geral — de um ponto de vista socialista. G. A. Cohen é certamente um dos filósofos políticos mais importantes, e irreverente, do final do século passado.

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William Edmundson, John Rawls: Reticent Socialist (Cambridge University Press, 2017)

Trabalho representativo da nova geração de “rawlsianos de esquerda”. Edmundson reconstrói o argumento da posição original com um detalhe exegético heroico para concluir que, quer concordemos com Rawls quer não, sua filosofia constituirá a língua franca para o socialismo do século XXI.

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Notas:

[1] A Theory of Justice. John Rawls. Belknap Harvard Press 1971/rev. 1999. Edição brasileira: Uma Teoria da Justiça (tradução Jussara Simões/revisão Álvaro de Vita). Editora Martins Fontes 2008. As páginas citadas neste artigo referem-se à edição original de 1971.

[2] Em abril de 1970, auge da radicalização estudantil contra a Guerra do Vietnã, bombas incendiárias atingiram os escritórios do Centro de Estudos Avançados de Stanford, no qual a única versão datilografada de TJ havia sido armazenada. Por um golpe da fortuna, e contrária as expectativas pessimistas da direção de Stanford, o manuscrito acabou não sendo destruído pelo fogo.

[3] A omissão de Thomas Hobbes não é arbitrária: Rawls considera o contratualismo politicamente anti-igualitário de Hobbes, bem como suas encarnações mais recentes em economistas neoliberais, como teorias estritamente prudenciais, e não com teorias morais da justiça.

[4] A despeito de algumas tentativas iniciais, Rawls foi enfático ao restringir a sua versão de construtivismo normativo ao problema político da escolha de princípios de justiça.

[5] Cf. Christine Korsgaard, The Sources of Normativity (Cambridge University Press, 1996); Thomas Scanlon, What We Owe to Each Other (Harvard University Press, 1998); Stephen Darwall, The Second-Person Standpoint: Morality, Respect and Responsibility (Harvard University Press, 2006).

[6] De modo um pouco mais preciso: o projeto de eliminação do discurso “metafísico” na filosofia, de autores como Moritz Schilick, Rudolf Carnap, Hans Reichenbach, e A. J. Ayer, acabou por contribuir diretamente, e por favorecer indiretamente, a prevalência do que podemos denominar de não-cognitivismo ético, a tese segundo a qual juízos normativos não são nem verdadeiros nem falsos. Em sua forma mais extrema, o positivismo lógico atribui conteúdo cognitivo (proposicional) à apenas duas classes de sentenças: sentenças analíticas, cuja verdade seria estritamente formal (e.g. lógica e matemática) e sentenças sintéticas, cuja verdade seria verificável pela experiência imediata ou pelas ciências empíricas (e.g. física, química, economia, etc.). Qualquer outra forma de enunciado linguístico seria carente de conteúdo cognitivo (isto é, passível de ser verdadeiro ou falso de acordo com critérios partilhados) e, portanto, correria sério risco de constituir sentenças sem sentido semântico. É importante notar que um ceticismo normativo semelhante também é encontrado na filosofia continental do começo do século XX, e que teorias como as de Max Weber (uma forma de não-cognitivismo ético) e o marxismo clássico (um tipo de cientificismo indiferente à distinção entre fato e valor) constituem uma influência cética análoga em relação ao tratamento de problemas normativos pela filosofia política, ainda que evidentemente por caminhos bem diferentes.

[7] Cf. James Buchanan, The Limits of Liberty: Between Anarchy and Leviathan (Chicago University Press, 1977); David Gauthier, Morals by Agreement (Oxford University Press, 1987). O termo “neoliberalismo moral” foi cunhado por Álvaro de Vita, em A Justiça Igualitária e Seus Críticos (Martins Fontes, 2007), cap. 2.

[8] O argumento rawlsiano da arbitrariedade moral será o ponto de partida para o chamado igualitarismo de fortuna (luck egalitarianism), proposto por filósofos como Ronald Dworkin e Richard Arneson, para o qual o próprio conceito de justiça social é redutível à erradicação de desvantagens sociais imerecidas.

[9] Cf. John Harsanyi, “Can the Maximin Principle Serve as a Basis for Morality? A Critique of John Rawls’s Theory”, em:  The American Political Science Review vol. 69 n°2, pp. 594 – 606, 1975.

[10] Em uma entrevista na década de 90, Rawls nos conta que, antes de se ver obrigado a dedicar seus esforços filosóficos às críticas contra sua teoria, seu projeto original era o de pesquisar “outras coisas, em sua maioria relacionadas com a terceira parte do livro [TJ], dedicada à psicologia moral, a parte do livro de que mais gostei”. Ver “John Rawls: For the Record”, in: The Harvard Review of Philosophy Spring 1991, pp. 38 – 47.

[11] A auto-compreensão da justiça como equidade enquanto uma concepção de justiça fundada em certos ideais normativos – e não em direitos ditos naturais – é oferecida por Rawls em “Justiça as Fairness: Political not Metaphysical”, in: Philosophy and Public Affairs, 1985 n°14 (3), p. 369 n. 19. Tradução: “Justiça como Equidade: Uma Concepção Política, não Metafísica” (trad. Régis de Castro Andrade), em: Lua Nova: Revista de Cultura e Política ,1992 n° 25, nota 19.

[12] É preciso esclarecer um ponto frequentemente mal compreendido sobre o princípio de diferença. Costuma-se afirmar que, ao propor a justificação da desigualdade para os cidadãos e cidadãs mais pobres, Rawls estaria, em alguma medida, justificando as ambições da trickle-down economics, isto é, a teoria econômica segundo a qual o aumento da riqueza das classes proprietárias, ou da renda dos percentis superiores de renda de uma sociedade, é legítimo porque esse aumento favoreceria economicamente todas as pessoas, tornando a economia mais dinâmica. O erro da equivalência reside na diferença entre o ponto de referência (benchmark) empregado em cada um dos argumentos. O argumento prioritarista da justiça como equidade exige que as desigualdades entre as classes sejam comparadas contra uma situação de igualdade estrita entre todas as posições sociais, e não contra um status quo empiricamente dado e (potencialmente) injusto de saída. Essa exigência é expressa na subordinação do princípio de diferença aos demais princípios de justiça. A pergunta rawlsiana é: qual arranjo social, diferente da igualdade estrita, poderia favorecer maximamente os menos privilegiados? Já a trickle-down economics nos pergunta: qual aumento da concentração de riqueza poderia favorecer residualmente os menos privilegiados? A possibilidade de que a igualdade estrita entre as classes seja a melhor opção do ponto de vista dos mais pobres é retirada a priori da mesa de discussão pela classe de proprietários e seus economistas.

[13] Cf. Susan Okin, Justice, Gender and the Family (Basic Books, 1989); G. A. Cohen, If You’re Egalitarian, How Como You’re So Rich? (Harvard University Press, 2000).

[14] Cf. Charles Beitz, Political Theory and International Relations: Revised Edition (Princeton University Press, 1999); Thomas Pogge, World Poverty and Human Rights (Polity Press, 2008).

[15] Os textos mais relevantes são: Justice as Fairness: A Restatement, Harvard University Press, 2001 (Edição brasileira: Justiça como Equidade: Uma Reformulação, [Editora Martins Fontes, 2003]), o “Prefácio da Edição Revista (1999) (publicado na edição brasileira de TJ), e as aulas de Rawls sobre Marx em suas Lectures on The History of Political Philosophy, Harvard University Press, 2007 (Edição brasileira: Conferências Sobre a História da Filosofia Política [trad. Fábio Said], Editora Martins Fontes, 2012).

[16] Cf. Philippe Van Parijs, “Why Surfers Should be Fed: The Liberal Case for an Unconditional Basic Income”, em: Philosophy & Public Affairs vol. 20 n°2, pp. 101 – 131, 1991 (“Por que os surfistas devem ser alimentados: O argumento liberal em defesa de uma renda básica incondicional” [trad. Roberto Cataldo Costa/rev. Flávia Biroli] Revista Brasileira de Ciência Política n°15, pp. 229–263, 2014).

[17] O projeto de explorar o significado político das bases institucionais da justiça rawlsiana, têm inspirado uma nova geração de “rawlsianos de esquerda”, como Martin O’Neill, Elizabeth Anderson, Alan Thomas, e William Edmundson, a renovarem os fundamentos teóricos do socialismo.

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